quarta-feira, dezembro 08, 2010

Magiclick

Domingo passado fui visitar meus pais, que moram em Jundiaí. Levei para minha mãe um presente mais que modesto: um acendedor de fogão, uma bugiganga que custa menos de 15 reais em qualquer banca de camelô. Claro que não se tratava do presente de Natal. Mesmo minha mãe, que a vida toda sempre demonstrou não dar a mínima para presentes de Natal, ficaria ofendida com um presente tão sem charme. Comprei-o porque, na última vez em que estive lá, minha mãe disse que o acendimento automático do fogão havia pifado e ela, depois de anos, se vira obrigada a resgatar as caixinhas de fósforos.

Nenhum relato pode ser mais cotidiano e pueril que este. Mas a banalidade do ato termina por aqui. Minha mãe não conseguiu fazer o acendedor funcionar, seu polegar direito, tão necessário para o gesto, talvez como o resto do seu corpo já esteja mais fraco é débil. Minha mãe não está doente, nada disso. Ela está envelhecendo – o que talvez, para os nossos conceitos atuais, seja pior que adoecer. Constrangida diante da família, como se carregasse nas mãos um revólver que não conseguiu disparar num momento de necessidade, ela passou o acendedor a meu pai, na esperança de que ele tivesse melhor sorte.

Meu irmão, eu e minha sobrinha, como se possuídos por um abjeto acesso de vitalidade do qual viríamos a nos arrepender no momento seguinte, exibimos para os dois como era fácil, prático, elegante e viril fazer brotar uma chama amarelada na ponta do acendedor. Depois desta tripla exibição, meu pai tentou e também não conseguiu.

É um relato de nada, uma coisinha tão à toa e por isso mesmo tão dolorida. Saber que a velhice - e a debilidade que ela acarreta - não precisa de grandes fracassos físicos para revelar sua face. Dispensa gritos noturnos, incontinência urinária e as traições da memória. Num almoço de domingo, diante de toda família, um maldito acendedor nos revelou que meus pais há muito deixaram de ser jovens. Não era segredo para ninguém, há anos que nunca foi. Mas lembrar do desconforto e da frustração presentes no rosto deles, duas pessoas idosas metaforicamente incapazes de produzir fogo, o segredo da vida, é algo que machuca legal.

domingo, dezembro 05, 2010

Cabecinha dura

Nos últimos meses, minha memória inventou de me punir. De cada dez lembranças que me veem à cabeça, assim do nada, nove não são lembranças boas. Não acredito que eu tenha me convertido em uma pessoa mórbida ou derrotista – ainda que eu tenha sempre cultivado estes dois defeitos (será que são defeitos mesmo ou apenas um providencial freio para que a gente não se transforme em um babaca deslumbrado?) não acho que eles tenham fugido do controle de uma hora para outra.

As tais lembranças que vira e mexe me atazanam não têm nada a ver com mortes ou outros episódios igualmente tristes. São apenas um conjunto mais ou menos tolerável de decepções, de gafes, de mal entendidos, de pequenas mágoas que talvez pudessem ser evitadas, mas não foram. Então, nos últimos meses, quando minha memória decide resgatar algumas coisas do meu arquivo morto, só por pirraça resgata justamente os momentos em que fui patético – deixando encobertos pelo pó do tempo os momentos em que não o fui. Talvez fosse querer demais ser visitado apenas pelos episódios do passado em que eu marquei o gol – mas também não precisava ser assombrado por aqueles em que eu perdi o pênalti e ainda fui vaiado. Tudo me leva a crer que eu tenha desenvolvido uma memória seletiva ao contrário – só as chateações é que estão sendo preservadas pela minha massa cinzenta cada dia mais ranzinza.

Estou fazendo o possível para acreditar que existe algo de positivo nisso. Talvez minhas memórias se mostrem mais interessadas em me educar do que em me punir – é como se, ao recuperar uma mancada de dez anos atrás, meu cérebro procurasse me dizer que eu não estou livre de novas mancadas, mas que aquela mancada específica eu não preciso mais reproduzir. É amarga, mas não deixa de ser uma lição. Meu medo é de que, a continuar assim, minhas memórias assumam o papel de uma grande mãe universal, disposta a me deixar de castigo até que eu peça perdão e jure não fazer mais traquinagens.

Se este é o lado positivo da questão (haja otimismo nesta constatação), também existe o lado que chega a ser quase desesperador. É ele que me diz que, por mais que o tempo passe, por mais que a gente acredite ter ganhado alguma sabedoria e por mais que a gente tenha se esforçado para refinar os nossos sentimentos em relação ao mundo e a nós mesmos, a gente não precisa de mais do que dez minutos para trocar os pés pelas mãos de novo. Basta botar a cara para fora que a gente vai começar a errar, a tropeçar, a dar cabeçada e a magoar a quem não devia. E, muitas vezes, esta pessoa a quem a gente magoa tanto, é aquela que invariavelmente trazemos de volta para casa noite após noite: nós mesmos.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Agulha

O Louco Amor de Yves Saint-Laurent, documentário sobre a vida e a carreira de um dos gênios da alta-costura francesa, em exibição na Mostra Internacional de Cinema, tem um título enigmático: depois de duas horas de exibição, saí sem entender o que havia de louco no relacionamento de 50 anos que o estilista manteve com o empresário e colecionador Pierre Bergé. Seria justamente a longevidade da relação? Nos dias que correm, loucura seria conviver com a mesma pessoa ao longo de meio século? Não me parece que este tenha sido o sentido do documentário, que só reforçou em mim uma antiga suspeita de que a convivência, ainda mais as duradouras, é um tipo de coquetel que exige uma dose de paciência e respeito muito maior do que de loucura. Ao menos por parte de um dos envolvidos.

Não por coincidência, o documentário abrange os 50 anos que Saint-Laurent viveu ao lado de Pierre Bergé – período em que ele se consolidou como um dos maiores estilistas do mundo e, ao lado do parceiro, também um dos maiores colecionadores de arte moderna do planeta. Após a morte de Saint-Laurent, Bergé decidiu se desfazer desta monumental coleção que incluía mais de 700 itens, entre quadros de Picasso, Mondrian e Matisse. Num concorrido leilão realizado pela Christie’s, no Petit Palais de Paris, as peças, juntas, movimentaram mais de 200 milhões de euros.

Mas tudo isso é estatística. O que me atraiu no documentário não foram as geniais criações de Saint-Laurent, muito menos a grandiosidade de seus quadros e esculturas – imagens que, tanto umas quanto outras, já estamos cansados de ver. Atraiu-me muito mais a disposição do diretor Pierre Thoretton em investigar a história de amor que, a exemplo da fama e da fortuna dos dois, também crescia de alguma forma – ou nem sempre. O emocionante depoimento de Bergé parecia demonstrar que ele não estava apenas interessado em passar adiante seus objetos de arte, mas também a história do seu relacionamento.

Sem que Saint-Laurent tivesse vivido para dar sua versão sobre a história, o que me sobrou foi a ideia, talvez errônea, mas sempre presente em minha cabeça, de que os relacionamentos quase nunca são feitos em porções igualitárias de amor e dedicação: me parece que sempre sobra para alguém a tarefa de carregar o piano. Me parece que alguém tem sempre de ceder, de ponderar, de ir embora já sabendo que vai voltar quando o outro chamar, de perdoar e, acima de tudo, de acreditar que mesmo quando o teto está desabando sobre o casal, tudo não passa de apenas mais uma crise. Claro que, partindo do pressuposto que um papel como este deva ser representado, é bom que seja em sistema de revezamento.

De tudo que foi dito e mostrado no documentário, uma frase persiste na minha cabeça. Ao se recordar dos anos em que Saint Laurent passou mergulhado no álcool e nas drogas, Bergé confessou que chegou a sair de casa. Ele se mudou para um hotel na mesma rua em que eles moravam. “Eu queria estar perto quando Saint-Laurent me chamasse de volta. Eu não conseguiria mesmo viver longe dele”.

É assim. Alguém vai e alguém chama de volta. E, quem foi, muitas vezes atende este pedido. Seriam dois lados da mesma moeda?

sexta-feira, outubro 15, 2010

Tateando

Noite dessas, zapeando pelos canais a cabo da televisão, coisa que raramente faço, parei para ver um documentário sobre uma cientista inglesa envolvida em trabalhos ambientais nas florestas da Indonésia. A insônia e a prostração realmente nos empurram para alguns programas que provavelmente evitaríamos em dias de juízo perfeito. Mas eu sempre tive interesse nestas pessoas que, sabe-se lá se por vocação, engajamento ou desilusão amorosa, abandonam a família, os amigos e o burburinho da civilização para se esconder em alguma floresta onde seus dias serão ocupados na observação de pássaros exóticos, grandes primatas e na ação perversa de caçadores. O objeto de estudos desta cientista, cujo nome não me recordo, eram os orangotangos.

O documentário exibiu uma foto da cientista de 30 anos atrás – quando ela chegou à floresta. Era uma morena bonita e de olhos claros, a quem não deveriam faltar pretendentes e uma vida social mais agitada em sua Londres natal. Mas ela preferiu passar a vida – ou os chamados melhores anos da vida – em meio a filhotes de orangotangos que estão aprendendo a subir em árvores. Já no fim do programa, ele encarou a câmera e disse. “Foi para isso que eu nasci, para estar aqui e cuidar destes animais”.

Ninguém precisa dizer muito mais do que isso para ganhar o meu respeito, a minha admiração e, confesso, a minha inveja. Sou realmente fascinado pelas pessoas que sabem por que motivo elas nasceram. Eu provavelmente já gastei mais da metade do meu tempo nesta vida e ainda continuo tateando – acho que sei tanto da vida quanto naquele momento em que o médico me ergueu, olhou para minha mãe e disse: é menino. Gosto realmente das pessoas que encaram um trabalho (ou alguma outra atividade parecida) como se fosse uma missão – e que procuram cumpri-la de uma maneira que parece não haver dúvidas de que se trata realmente daquilo ali e não outra coisa. Como eu poderia ter uma certeza assim tão grande na vida se eu sou daquele tipo de pessoa que, numa doçaria, depois de ter dado a primeira mordida num brigadeiro, se arrepende na mesma hora, achando que deveria ter pedido o quindim.

Creio que eu não sinta inveja da vida que aquela cientista leva na selva – eu acho que voltaria correndo para a cidade depois de dormir a primeira noite numa barraca . Mas o que me atraiu nela – e em outros casos semelhantes – é a convicção de estar fazendo algo no que realmente se acredita. A maioria de nós não poderia dizer a mesma frase sem correr o risco de esbarrar na hipocrisia. Faço uma série de coisas das quais gosto, sou levado a fazer outras tantas por necessidade de sobreviver, mas a coisa em si, a coisa suprema, sobre a qual eu poderia dizer que é nela que a minha existência se ampara, esta ainda, infelizmente, eu não encontrei.

Sinto quase o mesmo tipo de admiração por aquelas pessoas que passaram por uma experiência que mudou suas vidas – em épocas de mineiros soterrados e resgatados, dispenso as experiências traumáticas. Falo de coisas mais prosaicas, de gente que diz assim: puxa, a natação mudou minha vida, depois que comecei a nadar, sou outra pessoa. Ou sou outra pessoa por que parei de fumar, ou por que li determinado livro que abriu todas as portas da minha percepção, ou por que descobri Deus em determinada religião, ou por que eu fui tocado pelo bem...

Eu olho para mim e me vejo como uma pessoa que também faz várias e diferentes coisas, que também procura algum conforto nas artes, na convivência, na natureza e na realização profissional. Mas que guarda, para o bem ou para o mal, uma espécie de disco rígido no fundo da alma – que funciona direitinho mas é difícil de ser tocado – seja por uma poesia de Fernando Pessoa seja pelo prazer de ver um orangotango escalando sozinho a primeira árvore de sua vida.

sábado, setembro 04, 2010

Salgado

Tarde dessas, saindo de um trabalho em Higienópolis, eu descobri a felicidade disfarçada de coxinha de frango na padaria Barcelona. Havia muito que eu não comia uma coxinha. No ano passado, impaciente com minha falta de empenho em reduzir meus níveis de colesterol, meu médico me obrigou a cumprir uma dieta restritiva que expulsou do meu cardápio várias coisas que me deixavam feliz: coxinhas, empadinhas, sorvete, linguiça, doces, chocolates e tantas outras que, a bem da verdade, conseguimos passar sem, mas a vida fica um pouco mais sem graça longe delas.

Brinquei com o médico que a gente estava vivendo tempos comedidos demais. Ele, sorrindo, concordou, afirmando temer que, dentro de alguns anos, no andar desta carruagem em que o prazer está se tornando quase que algo nocivo, a gente levantaria de manhã, tomaria um copo de água, depois um antidepressivo, uma folha de alface na hora do almoço e o remédio para baixar o colesterol antes de dormir. Exageros à parte, depois da morte do amigo Alberto Guzik eu tenho pensado muito nesta equação perversa que parece eliminar a felicidade da fórmula da longevidade.

Calma lá, sei que fui a extremos. Bem por isso eu disse exageros à parte. Reconheço que não é assim tão difícil tentar ser saudável, praticar esportes, comer menos, dormir melhor e ficar longe do cigarro, do álcool, do sal, do açúcar, das frituras, do café, do pãozinho francês, da carne vermelha, do tomate com agrotóxico. Meu medo é que, preocupados em obedecer a todos estes quesitos, a gente se esqueça de ser viver de forma desencanada. Se esqueça de exagerar um pouco, de se entregar a um certo descompromisso que um dia a gente experimentou na vida e do qual agora anda fugindo a todo instante.

Aquela coxinha representou, para mim, o que as famosas madeleines devem ter representado para Marcel Proust – embora eu seja infinitamente menos talentoso para narrar a minha busca pelo tempo perdido. Mas, enquanto aquela casquinha crocante (maldita fritura!) derretia em minha boca, me lembrei de como já fui mais festeiro, de como eu costumava me entregar mais às festas, às baladas e a uma ou outra coisinha ilícita que rolava nestes lugares, de como eu precisava dormir menos e de como a gente era mais tranquilo em relação a tantas coisas que hoje ocupam tanto espaço no nosso dia.

Ainda retornando ao Guzik, outro dia eu brinquei, com um amigo comum, que talvez fosse editorialmente mais interessante mudar o nome do romance inédito que o Guzik nos deixou, Estátua de Sal de Sodoma. Eu disse para o amigo que com certeza as vendas seriam maiores se o livro passasse a se chamar Estátua Sem Sal de Sodoma – um título mais com a cara destes tempos em que a gente se preserva tanto, mas tanto que de vez em quando vem a pergunta: mas para quê? Não sei, talvez a gente queira viver mais e melhor, o que seria um anseio justo. Mas será que existe alguma lógica em querer viver mais e melhor num planeta que está cada vez menos hospitaleiro com a nossa espécie?

E, para terminar este post tão desanimado, digo aqui que acabo de ler na revista Veja uma matéria de seis páginas sobre as crueldades indescritíveis que cometemos contra os animais mundo afora apenas para que a nossa mesa seja farta de carnes cada vez mais suaves e sem músculos, de patês que deslizem cada vez com mais elegância sobre as nossas torradas importadas e de elixires que consigam o milagre de fazer o nosso pau subir quando todo o tesão do mundo já nos abandonou. E me deu uma tristeza tão grande de ser gente, tão profunda que, se eu não corresse o risco de ser internado, passaria a noite urrando e mordendo a canela de dor, como fazem os ursos da China a cada vez que perfuram seus abdomes para extrair a bile que os malditos chineses acreditam ser afrodisíaca.

Tem dias em que viver é muito triste e muito foda. Com ou sem sal.

segunda-feira, agosto 30, 2010

Por um dia de Stallone

A cada vez mais eu tenho certeza de que não poderia ser um cara fortão. Se fosse, acho que eu viveria brigando. Pois nunca vi uma época em que a delicadeza estivesse tão fora de moda. Tenho alguns amigos fortões, como o José Roberto Jardim e o Nicolas Trevijano que, além de atores, são campeões de kung-fu. Campeões mesmo, com troféu em casa e uma flexibilidade corporal que lhes permite passar o cotonete usando os dedos dos pés. Sempre admirei a força e a destreza dos dois – não por que eu seja um amante das lutas marciais. Mas porque eu imagino como seria bom encarar o barnabé que está conversando no cinema e mandar ele calar a boca. Como eu não sou nem o Nico e nem o Zé, eu faço uma cara feia para o barnabé. Se ele não parar de falar, faço outra cara feia e dou uma bufada. Se mesmo assim ele continuar falando, eu levanto e mudo de lugar – porque sei que dentista está caro e deve ser muito humilhante apanhar no cinema, ainda mais se a gente está com a razão. O bom do Nico e do Zé é que eles têm coração de manteiga e paciência de mãe – justamente por serem fortes e saberem disso, evitam brigar. Nunca vi nenhum dos dois metidos em qualquer confusão. Acho que, enquanto desenvolviam os bíceps, eles cuidavam também de estimular a paciência. Eu já estou numa fase bem distinta: não desenvolvi os músculos e estou perdendo a paciência a cada dia.

Se eu fosse um cara fortão, juro que eu encarava. Mas a última briga que tive foi aos 11 anos, no quarto ano primário. Dei uma guarda-chuvada na cabeça de um menino chamado Paulo, que tinha me dado um pontapé na bunda. E terminou aí a nossa contenda. Daquele dia até hoje, só dei um soco. E foi no computador, num dia em que a energia caiu e eu não tinha salvado nada do que tinha escrito. Além de perder tudo, fiquei com o maior medo de ter quebrado o computador. Felizmente, minha falta de força no muque preservou todas as plaquinhas do meu computador.

Não sou adepto da violência, não mesmo. Mas acho que algumas pessoas precisam levar uns sopapos para aprender a viver em sociedade. Na sexta-feira de manhã, em Higienópolis, um aluno de auto-escola parou o carro para que eu e uma babá com duas crianças, uma no colo e outra no carrinho, atravessássemos a rua na faixa de pedestre. Nada mais justo, correto e esperado da parte de um motorista, ainda mais em treinamento. Pois não é que um espírito de porco que estava no carro de trás começou a buzinar feito um louco e a ofender o aluno da auto-escola, só porque ele tinha parado pra gente cruzar a rua na faixa de pedestre? Não dá vontade de ir lá, pegar o cara pelos colarinhos e mandar ele enfiar a buzina no rabo? Mas como a gente não quer confusão, atravessa a rua correndo e fica quieto.
Outro dia, numa sessão lotada do shopping Frei Caneca, um carinha conversou com a namorada, em voz alta, o filme inteiro. Atendeu a três ligações do celular e fez outras duas. Pedi por favor para ele deixar a gente ver o filme. Pedi três vezes. Ele não deu a mínima. Como o cinema estava lotado, não adiantava bufar, fazer cara feia e mudar de lugar. Engoli em seco e tentei acompanhar o filme como se o carinha estivesse na sala da casa dele e eu fosse um convidado indesejável. Então eu me pergunto por que é a gente que sempre tem de ceder?

Contei este caso para uma amiga e disse para ela que, se eu fosse um cara fortão, teria dado um bofete na cara daquele desgraçado. Porque eu acredito que um cara, que apanha num cinema na frente da namorada, vai pensar duas vezes antes de abrir a boca no próximo filme. Minha amiga ficou horrorizada com a minha teoria. Ela disse que violência gera violência, que ele podia ter uma arma no carro, sair do cinema na mesma hora e chamar uns amigos para me descer o cacete no fim do filme ou tomar qualquer outra atitude que viesse a me prejudicar. “Esses caras não têm nada a perder”, ela me disse. “O melhor que a gente tem a fazer e desviar e ficar quieto”.

Concordo com ela. Mas que eu tive uma vontade quase incontrolável de dar uns cola-brinco naquele escroto, ah, isso eu tive. Do mesmo jeito que quis encher de porrada o motorista de Higienópolis. Mas de nada adianta. Tenho certeza de que hoje o carinha do cinema continua atazanando a vida de quem se sentar ao lado dele, do mesmo modo que o motorista de Higienópolis segue buzinando e ofendendo quem é educado no trânsito.

E a gente, que procura ser um pouco decente e educado, só se ferra, em todas as ocasiões. É a gente que tem de mudar de lugar, é a gente que tem de pedir por favor, é a gente que eternamente faz o papel do palhaço. Não estranhem se um dia me virem entrando numa academia de boxe. O mundo tá ficando tão hostil que é bom que algumas pessoas saibam que, depois do terceiro por favor, a gente também é capaz de se fazer ouvir com o punho fechado.

sexta-feira, agosto 27, 2010

Fechado para reformas

Um aviso aos amigos queridos que costumam passear por aqui: estou passando por um período de muito trabalho e pouca inspiração. Queria que fosse o contrário, mas a gente precisa se adaptar ao que temos, não é?
Como gosto muito deste espaço e costumo elaborar um pouco o que vou escrever (não sei se tal elaboração reflete no resultado, mas ao menos existe a intenção), achei melhor ficar um pouquinho quieto para não ser inconsequente e morrer pela boca.
Eu acho que logo as coisas se acalmam e as ideias voltam. Não que elas tenham me abandonado, longe disso - elas estão sendo consumidas em outros projetos um pouco menos lúdicos do que este blog, mas igualmente necessários.
Espero, em breve, ter algo novo para contar.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Unha e carne

Depois de assistir ao filme Vincere, do diretor italiano Marco Bellocchio, passei alguns dias acreditando que as mulheres são capazes de amar de forma muito mais obsessiva que os homens. Entenda-se por obsessão o ato da entrega, da fidelidade e da dedicação ao outro de uma maneira tão cega e radical, que a própria vida de quem ama é posta em rico. E, no caso do filme, destruída.

O filme retrata Benito Mussolini antes de ele se tornar líder do partido fascista e ditador italiano que se uniria a Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial. O filme tem uma atmosfera opressiva, com personagens amedrontados diante de uma Itália convulsionada pela ascensão de um regime totalitário. A ordem é obedecer e calar. Mas uma jovem e bela mulher, Ida Dasler, dona de um salão de belezas, não faz nem uma coisa nem outra. Prefere propagar a quem estiver disposto a ouvir (e ninguém parece estar, a menos que seja para prejudicá-la) que ela é a verdadeira mulher de Mussolini, com quem teve um filho batizado com o mesmo nome do ditador. Mais eu não conto. O filme está em cartaz no CineSesc.

Fiquei com a imagem e a atitude temerária daquela mulher na cabeça. E imaginei se um homem, nas condições em que ela se encontrava, seria capaz de amar e manter-se fiel da mesma maneira. Longe de mim acreditar que a capacidade de amar e manter-se fiel em meio ao caos seja um atributo exclusivamente feminino. Penso que os homens também sejam capazes de sacrifícios semelhantes, porém, e nestas histórias sempre existe um porém, julgo que os homens são educados de forma a encontrar alguma praticidade neste jogo amoroso. Em função disso, acreditava eu, eles resistiriam um pouco mais antes de se atirar à fogueira por causa de um amor.

Este conceito permanecia quase consolidado na minha cabeça até semana passada, quando um amigo, sem avisar da visita, bateu em minha porta. Achei estranho, já que hoje em dia nem os amigos mais íntimos surgem sem um telefonema prévio. Durante as duas horas em que ficou em casa, não foi de outra coisa que ele falou a não ser do quanto estava sofrendo...por amor. Tanto que tinha adquirido uma doença psicossomática que o fazia lembrar de sua paixão opressiva todas as vezes em que se olhava no espelho. A garota com quem ele tinha se envolvido, e que no dia da visita já o havia trocado por outro, não era assim uma Mussolini, mas sabia muito bem como pisar de salto alto num coração desavisado. O amigo não dormia mais, tinha mudado seus hábitos no bairro para não encontrá-la nas ruas e passava os dias a escrever cartas quilométricas em que tentava convencê-la de que ele era o homem da vida dela. Porque, na cabeça dele, ele já estava mais do que convencido disso.

Depois que ele foi embora, o filme me voltou à cabeça com uma nitidez impressionante. Separados por 70 anos de história, meu amigo e a personagem Ida Dasler se reencontraram por uma tarde em minha casa. E deste encontro me sobrou uma lição: se o assunto é padecer por amor, os homens também conseguem ser muito bons nisso.

sábado, julho 31, 2010

Susto

Faz um tempinho, fui visitar minha mãe e a encontrei muito nervosa. Uma prima dela havia tentado o suicídio pouco antes de eu chegar. Alguns parentes tinham acorrido à casa dela, a prima. Como eram vizinhas, estranhei a ausência de ambulância ou qualquer outro veículo de socorro na rua. Perguntei como estava a prima e minha mãe respondeu que ela já estava se recuperando.

Estranhei e pedi detalhes da história. Minha mãe contou que a prima, que estava enfrentando alguns quadros de depressão, tinha acordado especialmente triste naquela manhã. Mal saíra da cama. O marido dela foi trabalhar mas, por andar preocupado com o caso, resolveu dar uma passadinha em casa na hora do almoço. Encontrou a mulher desacordada, com uma garrafa de cerveja e um frasco de remédios, ambos vazios, em cima do criado-mudo. Assustado, ele chamou parentes e vizinhos e então começaram a reanimar a mulher. Em pouco tempo, ela acordou. Meio grogue, sem falar coisa com coisa. Deu um olhar de desprezo para toda aquela gente que enchia o quarto dela, virou de lado e voltou a dormir.

Só então o marido foi examinar o frasco de remédio que a mulher havia mandado goela abaixo. Era homeopatia. Ela tomou uma garrafa de cerveja com 30 bolinhas de açúcar. Ao ser acordada pelo marido, devia estar somente bêbada e feliz.

“E a senhora está tão nervosa por causa disso?”, perguntei. “É, desta vez foi homeopatia”, respondeu minha mãe. “Mas vá saber da próxima....”

sexta-feira, julho 23, 2010

Reloginho

"Meu problema é que eu nasci cedo demais, comecei tarde demais e agora não dá mais tempo"

Do personagem Mamma Rose, no finalzinho do musical Gypsy

quarta-feira, julho 21, 2010

Vapt-vupt

Saí para almoçar com um amigo que eu não via fazia um tempinho. Ele me contou que, dia desses, conheceu uma garota enquanto ia para a padaria. Eles se cruzaram na rua e ela olhou com insistência para ele, o que o encorajou a pedir o número do telefone dela. Ela deu. Naquela mesma noite, ele lhe telefonou. Ela disse que morava ali no bairro, e que ele estava convidado a visitá-la na mesma hora. Ele foi. Rolou.

Depois desse primeiro encontro, ele foi lá outras vezes. Na última vez em que a visitou, ele estava voltando da padaria. E ele terminou seu relato com a seguinte frase, na minha opinião já histórica. "Eu ando tão pouco romântico, mas tão pouco romântico que, saindo da padaria, eu passei na casa dela, fiz o que tinha de fazer e, ao chegar em casa, o pão ainda estava quentinho".

O Itaú me dá uma saudade do Unibanco

Se é que é possível se gostar de um banco, confesso aqui que gostava muito do Unibanco. Não só gostava, sinto uma imensa saudade . Eu achava o Unibanco um banco simpático por várias razões. Em primeiro lugar, por ele patrocinar um dos cinemas mais bacanas da cidade, o meu predileto não apenas pela programação, mas por que ali eu pagava meia...algo que, nos dias atuais, tem de ser levado muito em consideração. Em segundo lugar, porque as agências do Unibanco que eu freqüentava, na Rua Heitor Penteado e na avenida Paulista, não tinham aquela pavorosa porta eletrônica e eu nunca fui obrigado a deixar meu cinto, meu celular e minhas moedinhas naquela gavetinha para poder entrar na agência. Em terceiro lugar, porque raramente estas agências tinham fila (vai ver que é por isso que elas foram fechadas). E, finalmente, porque tudo o que eu não conseguia resolver pela internet, eu conseguia resolver pelo telefone. Os gerentes me conheciam e confiavam em mim.

Em dezembro do ano passado, uma gerente do Unibanco me ligou para dizer que minha conta estava sendo migrada para o Itaú, onde eu encontraria o mesmo nível de atendimento que desfrutava no Unibanco. Melhor dizendo, minhas duas contas, uma como pessoa física e outra como pessoa jurídica. Acho que ninguém precisa ser um expert em serviço bancário para concluir que é muito mais fácil centralizar estas duas contas em uma mesma agência, não é? Pois o Itaú não pensa assim. Eles transferiram minha conta de pessoa física para uma agência e a de pessoa jurídica para outra. Quando fiquei sabendo disso, logo pensei: vai dar merda. Não deu outra.

Somente agora, depois de seis meses sendo cliente do Itaú, consegui um cartão da conta da pessoa jurídica para poder transferir meu dinheirinho para a conta de pessoa física. Até então, passei seis meses indo até uma papelaria a três quadras da minha casa para passar um fax solicitando a transferência. Isso mesmo: fax, no século 21. Claro que na maioria das vezes, o número do fax estava ocupado, e eu tinha de voltar mais tarde. Teve uma segunda-feira em que consegui passar o fax na quarta tentativa. Comecei às dez da manhã e só consegui às três da tarde. Eu não acreditava em mim mesmo, subindo e descendo o dia inteiro com um fax nas mãos.

As agências do Itaú vivem lotadas. Tentar falar com um gerente pelo telefone é um teste de paciência que nem um budista aguenta. E, claro, eles têm porta eletrônica e a gente só entra no banco se estiver praticamente pelado.

Sei que este post é o mais chato que eu já escrevi na vida. Mas ele tem um motivo: fiquei sabendo que, pelo segundo ano consecutivo, o Itaú lidera a lista de reclamações no Procon no setor bancário. Esta é minha humilde contribuição para descer a lenha neste banco chato.

quinta-feira, julho 15, 2010

Um pequeno grande filme

É raro de acontecer, mas às vezes acontece. Você leva para casa um filme do qual nunca ouviu falar, só porque conhece um ou dois atores do elenco e não havia nada mais interessante à disposição. Está uma noite fria e chuvosa, a novela das oito já acabou e você não tem a mínima vontade de tirar o carro da garagem nem para ir ao aniversário da própria mãe. Está com preguiça de ligar para os amigos, já cansou de ficar na frente do computador e então, ao olhar de lado, vê esquecido num canto o tal filme para o qual você já torceu o nariz. Bom, não custa dar uma olhadinha de dez minutos, você pensa. E coloca o filme no DVD sem imaginar que está prestes a experimentar a uma hora e meia mais bacana dos últimos dias.

O filme em questão é Eu e Orson Welles, do diretor Richard Linklater, o que para mim não quis dizer muita coisa, pois sou péssimo para guardar nomes de diretor. Fui pesquisar e vi que ele já tinha feito Antes do Pôr-do-Sol e O Homem Duplo. Talvez eu esteja sendo otimista demais, mas, na minha opinião, trata-se do pequeno grande filme mais simpático do ano. É a história de um estudante nova-iorquino de 17 anos, ator e músico promissor, que consegue de maneira insólita um papel na montagem de Júlio Cesar, de Shakespeare, que Orson Welles, então com pouco mais de 20 anos, está dirigindo no decadente teatro Mercury, em Nova York.

Grande parte do filme transcorre durante os ensaios da peça – em que o gigantesco ego de Orson Welles pisoteia um time de atores tão esforçados quanto medrosos. Não fui adiante com a pesquisa, mas acredito que o filme é baseado em uma história real, tem todo o jeitão. Sedutor, mulherengo, arrogante e absurdamente talentoso, Welles é aquele cara que todos odeiam, mas de quem querem ficar perto porque sabem que alguma coisa muito boa ele tem para ensinar. Às vésperas da estreia do espetáculo, tensos e inseguros, os personagens de Welles e do jovem ator ainda encontram tempo para se apaixonar pela mesma mulher, a belíssima Sonja, secretária do teatro vivida pela atriz Claire Danes, que por sua vez está muito mais interessada em conhecer o poderosíssimo David O. Selznick, que está fechando o elenco para as filmagens de ...E O Vento Levou.

Para quem curte cinema, teatro e literatura, o filme é tão bacana quanto um happy hour ao lado de amigos queridos. Não tem assim a força de uma baladona, mas a gente volta para casa muito mais feliz.

segunda-feira, julho 12, 2010

Desculpem o nosso atraso

Vejo o goleiro Bruno lendo a bíblia na cela de um presídio mineiro. Me vem à lembrança a imagem do casal Nardoni também com a bíblia nas mãos numa penitenciária paulista. Concluo que a bíblia é um livro que chega um pouco tarde aos lugares em que deveria chegar. Se a houvessem lido um pouco antes, talvez Bruno e o casal Nardoni não tivessem feito o que são acusados de fazer. Alexandre e Ana Carolina Jatobá haviam rompido, para mim, a barreira do inominável. Nunca consegui visualizar a totalidade da barbárie pela qual eles foram julgados e condenados. A cena, na minha imaginação, termina no momento em que Alexandre teria carregado a filha, já inconsciente, até a janela. O que veio depois eu consigo ler e mesmo assistir nas reconstituições feitas pela polícia. Mas não consigo imaginar. Existe em mim um freio mental – criado talvez mais pela covardia do que pela nobreza – que me impede de produzir tais imagens na cabeça. Simplesmente me sinto incapaz de imaginar um pai soltando uma garotinha de cinco anos da janela do sexto andar de um edifício. Sou capaz até de escrever, mas não de visualizar. Agora, no caso da ex-modelo Eliza, ocorre o mesmo. Minha imaginação, com muito custo, vai até o momento em que ela é morta por asfixia por um dos capangas do goleiro. A sequencia de horror que irá terminar num canil de rotweilers também não se processa na minha imaginação. Quando a gente achava que Alexandre Nardoni havia atingido uma marca inigualável na competição da maldade humana, vem alguém e quebra seu recorde.

Vejo também, em prantos, a mãe de Eliza diante das câmeras de televisão. Algo muito conservador em mim, uma força retrógrada e reacionária que às vezes me assola – como o vilão Mr. Hyde assolava o doutor Jekyll, já que O Médico e o Monstro está na moda – me faz lembrar que esta mãe agora banhada em lágrimas abandonou Eliza quando ela tinha poucos dias de vida, talvez meses. Não sei qual foi o motivo deste abandono, e eu não teria a mais remota condição de julgar esta mulher. Mas é que eu não consigo afastar um pensamento daninho. A exemplo do que ocorreu com a bíblia de Bruno, eu tenho a impressão (vejam bem, o termo é impressão) de que as lágrimas da mãe de Eliza também chegaram atrasadas vários anos. Olho para ela e, antes de enxergar a mãe da filha morta, eu enxergo a mãe da filha abandonada. Paciência.

E vejo, ainda, as ações espetaculares promovidas pelas polícias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais para solucionar o assassinato da ex-modelo. São imagens que levam ao deleite as câmeras do Jornal Nacional. E, como no caso da bíblia e das lágrimas, também me pergunto se nada poderia ter sido feito um pouco antes, quando Eloíza denunciou o goleiro por agressões, ameaças e indução ao aborto. Somente agora, oito meses depois de a modelo ter oferecido uma prova de urina ao Instituto Médico Legal, sai o resultado confirmando a presença de substâncias abortivas no material que ela entregou. Tudo me soa atrasado, criminoso e inconseqüente em relação à vida de uma jovem – até o momento em que as câmeras de tevê são ligadas. Daí surgem a bíblia, as lágrimas e as buscas. Eliza, mesmo, esta não surge mais.

Para terminar, vale o registro da dupla alegria que a Espanha nos ofereceu neste fim de semana. A primeira, pela vitória na Copa; a segunda, por ter dado asilo aos presos políticos que Cuba começou a libertar. Mais de 60 presos (incluindo aí os familiares) devem chegar a Madri nas próximas horas. Faz um tempinho que apenas dois, somente dois, atletas do boxe haviam pedido asilo político para o presidente Lula. Mais do que depressa, ele despachou os dois de volta para a formosa ilha de Fidel. Que lição a Espanha está nos dando, no campo do futebol e no das relações internacionais. Já que está bem velhinho para aprender a primeira lição, Lula poderia, ao menos, se esforçar para aprender a segunda.

segunda-feira, julho 05, 2010

Vrummmmmmmmmmm

Primeira marcha: há pouco mais de um ano, quando a Lei Seca entrou em vigor, escrevi um post um pouco irritado aqui. Se não me engano, a lei entrou em operação num fim de semana. No primeiro domingo de vigência da lei, me lembro de ter ido com dois amigos jantar no restaurante Mestiço, numa travessa da Rua da Consolação. Pedi uma caipirinha de frutas vermelhas (na época eu não sabia que caipirinha de frutas vermelhas não é bebida de homem, me contaram algum tempo depois) e um chope. Quando terminou o jantar, um dos amigos, que mora em Pinheiros, me pediu uma carona. Eu sabia que, naquela noite, a cidade estaria infestada de blitze da Lei Seca e que, se fosse parado no caminho, poderia perder a carteira de habilitação por causa da minha caipirinha boiola e do chopinho. Dirigi com tanto receio e preocupação como se estivesse transportando um cadáver no porta-malas. Foi sobre isso que falei naquele post. Agora a lei está completando um ano e a fiscalização voltou com tudo. Sempre que estou voltando para casa enfrento congestionamentos na avenida Doutor Arnaldo , causados pela fiscalização. Respeito a lei, mas confesso que não entendo algumas coisas. Por exemplo: o motorista de uma Kombi, dirigindo completamente embriagado, atropelou e matou três pessoas na Rodovia dos Imigrantes neste fim de semana. Conduzido à delegacia, ele pagou uma fiança de R$ 1,2 mil e foi solto imediatamente, como se tivesse passado por cima de uma garrafa pet jogada na pista. Não parece estranho uma lei tão severa que coloca na rua um motorista ainda embriagado que acabou de assassinar três pessoas? Com uma fiança de R$ 1,2 mil fica tudo certo?

Segunda marcha: alguém já tentou parar o carro nas imediações da Faap? Eu já, e confesso que é impossível. Há uma legião de flanelinhas atuando ali. Eles colocam cones no meio-fio para reservar as vagas na rua para os estudantes da faculdade. Uma tarde dessas, parei o carro numa dessas vagas. O flanelinha veio feito um louco pra cima de mim, perguntando quanto tempo eu ocuparia a vaga, já que ela estava reservada para um estudante. Respondi que não sabia e fui embora. Quando voltei, ele tinha entortado completamente a placa dianteira do meu carro. Será que ninguém da CET nunca viu esta barbaridade que os flanelinhas fazem ao lado da Faap, sob as barbas de todo mundo? Descobri, depois, que para reservar as vagas, eles recebem por mês dos estudantes, como se fossem donos de um estacionamento. Fico pensando se eles, os flanelinhas, não racham a grana com quem deveria investigar e punir esta atividade ilegal numa das regiões mais visadas da cidade.

Terceira marcha: o único lugar em que ouço música é no carro. Vá entender. Mas não tenho o hábito de ouvir música em casa. Eu só consigo trabalhar no mais absoluto silêncio. O aparelho de som aqui de casa só funciona quando vem alguém me visitar – daí é legal colocar uma musiquinha. É por isso que, quando descubro um CD interessante, aumenta meu prazer de dirigir. No momento, estou ouvindo um CD antigo, chamado 20th. Century Blues, da genial Marianne Faithfull. Eu tenho este CD há pelo menos dez anos, mas havia me esquecido completamente dele. Esta semana, revirando umas gavetas, eu o encontrei e corri no carro para ouvir. Desde então, dirigir voltou a ser um imenso prazer. Ela tem uma versão de um clássico chamado Boulevard of Broken Dreams que é de chorar. Aliás, o disco todo é de chorar. Coloco o CD pra tocar, dou partida e, como raramente acontece, não tenho vontade de chegar a lugar algum enquanto não termina a última canção. Apenas vou indo, vou indo... Até que um dia a gente chega a algum lugar.

sábado, junho 26, 2010

Alberto Guzik

Conheci o Alberto Guzik no final dos anos 80. Ele já era um crítico de teatro respeitado e eu estava dando meus primeiros passos no jornalismo, como redator de cidades do Jornal da Tarde. Guzik trabalhava no caderno de Variedades, uma editoria que, na época, contava com muita gente de peso – o editor Edison Paes de Mello, o saudoso crítico de cinema Edmar Pereira, os repórteres Celso Fonseca, Isabela Boscov e Renata Lo Prete, a crítica de dança Helena Katz, o também crítico Rubens Ewald Filho e tantos outros que, com o tempo, foram abandonando o JT em busca de lugares em que seus talentos pudessem se expandir. Eu tinha um pouco de vergonha deste povo da Variedades, confesso. Enquanto eles cobriam a Mostra de Cinema, o Carlton Dance, o Free Jazz e entrevistavam artistas como Lou Reed e B.B.King, eu fazia matérias de acidentes de trânsito, buraco de rua e aumento do IPTU. Então, no finalzinho de 1989, eu recebi uma proposta de emprego da Fiat. Ia ganhar um pouco mais, trabalhar do lado de casa e ter todos os fins de semana livres – uma regalia que, ainda hoje, deve ser o sonho da maioria dos jornalistas.

Quando eu comuniquei à direção do Jornal da Tarde que havia recebido esta oferta de emprego, eles me fizeram uma contra-proposta irrecusável para o meu bolso e para o meu acanhado ego: aumento de salário e transferência imediata para o Caderno de Variedades, com uma mesinha e um computador bem ali, ao lado daquele time que me botava medo. Alberto Guzik foi um dos primeiros a vir falar comigo. “Você já decidiu se vai para a Fiat ou fica para trabalhar aqui com a gente?”, ele me perguntou. Achei estranho, pois eu nem imaginava que ele estivesse acompanhando esta negociação. Respondi que ainda estava analisando as propostas, mas que provavelmente eu ficaria no jornal. “Decide logo, a gente aqui está agoniado. Nem sei por que, mas a gente está agoniado. A gente quer que você fique”.

Este foi o primeiro diálogo dos milhões que eu teria com o querido amigo, o mestre, o incentivador e o pau pra toda obra Alberto Guzik, este profissional brilhante e desmesuradamente inteligente que acaba de nos deixar. É muito difícil, beira o impossível, falar sobre o Alberto Guzik quando a dor da perda ainda está fatiando o nosso peito. Mas penso que seria ainda mais difícil não falar nada. Eu acho que todos nós, aqueles que tivemos a chance e a honra de conviver com o Guzik, estamos nos sentindo como naquele momento em que a gente prende o dedo na porta do carro, mas ainda não doeu. A gente tem um segundo para olhar o dedo, já roxo, e se preparar para a dor abissal que nos atingirá no momento seguinte. A partida do Guzik nos prendeu a todos, nosso corpo, nossa alma, nossos corações na porta de um grande carro e daqui a pouco vai doer muito. Sei que ele não queria que doesse, sei que ele gostava de deixar a tragédia para os limites do palco que ele soube esquadrinhar como ninguém, mas como não sentir dor quando a gente, à deriva neste mar revolto que é a vida, olha para o lugar onde sempre esteve aquele farol e agora o farol apagou?

O Guzik não era um sujeito fácil, justiça seja feita. Era reclamão, ranzinza, impaciente, não gostava de ser aporrinhado e não fazia o mínimo esforço para demonstrar que gostava de alguém se na verdade não gostava. Com ele era tudo na lata: se ele não gostava muito de você, o melhor que você tinha a fazer era não forçar a barra, porque conquistar sua simpatia à força era uma tarefa impossível. Vi muita gente que tentou e se estrepou. Mas até nessas horas ele era divertido – às vezes, se comportava como aquela tia birrenta que existe em toda família, sempre disposta a dizer o que deve ser dito, mesmo que seja no almoço de Natal.

Mas, caso ele fosse com a sua cara, meu Deus, ele iria ficar do seu lado e te defender como um cão de guarda. Ia te incentivar, ia te elogiar, ia te comparar a gente infinitamente mais talentosa que você, ia fazer o seu cartaz para todo mundo que ele conhecesse, ia cuidar da sua auto-estima como um contador deveria cuidar das nossas finanças. E ia fazer tanto esforço para te convencer que você era bom que, depois de duas cervejas, você ia estufar o peito e se achar do caralho. Quem teve a chance de compartilhar da amizade e da convivência com o Guzik sabe que eu não estou exagerando. E até quem não o conheceu pessoalmente, mas acabou ficando íntimo dele por meio daquele blog já saudoso que ele atualizava todos os dias, por meio dos livros ou das críticas que ele escreveu, também vai poder atestar que não há exageros nas minhas palavras.

Eu sempre tentei me disciplinar para acreditar que a gente vai embora desta vida quando chega a hora de a gente ir. Mas no caso de algumas pessoas, como o Alberto, a gente vai achar sempre que elas desrespeitaram esta regra e foram embora antes, muito antes do que deveriam. Ele tinha planos de escrever um novo livro (previamente batizado de “Eu e o meu Câncer”, no qual narraria sua experiência com a doença que o levou), queria fazer o novo espetáculo dos Satyros ao lado do Ivam Cabral e do Rodolfo Garcia Vasquez, dois dos representantes mais queridos da família que ele escolheu formar, e queria, acima de tudo, acompanhar o crescimento da SP Escola de Teatro, que ele batalhou tanto para ajudar a implantar e não teve a chance de ver nem o primeiro dia de aula. Ô, vida sacana!

Durante os vários anos em que trabalhamos juntos no Jornal da Tarde (período em que eu tive o privilégio quase único de ler suas críticas em primeira mão e, por meio delas, aprender o pouquinho de teatro que talvez eu saiba hoje), chegamos a marcar nossas férias para a mesma época e assim poder viajar um pouco. Me diverti e aprendi muito nestas viagens com o Guzik – sem ser pretensioso ou pernóstico, ele sempre tinha algo interessante e curioso a dizer a respeito dos lugares, das pessoas, dos museus, das igrejas. O Guzik era o judeu que mais entendia da vida dos santos, dos milagres, das penitências e da fé católica que eu conheço. Eu vivia dizendo que ele seria impedido de entrar na sinagoga se não parasse com esta mania de saber tanto sobre os mártires cristãos.

E então, eis que esta última viagem ele resolveu fazer sozinho. Mas foi tão generoso com todos os amigos e admiradores que passou os últimos quatro meses embarcando um pouquinho por dia, para a gente ir se acostumando com a ideia de que uma hora dessas o voo dele ia mesmo ser anunciado. Alguns amigos, ou outras pessoas queridas que nem próximas são, mas que a gente gostou delas a vida inteira,vão embora tão depressa que a gente leva um tempo imenso para acreditar que eles realmente se foram. Com o Guzik, não. Ele foi indo embora um pouquinho por dia para que a gente fosse se habituando a tocar a vida sem a presença dele.

Guzik foi um advogado que nunca exerceu a profissão, jornalista, crítico de teatro, professor, romancista, dramaturgo e, nos últimos anos, ator – o ofício que, desconfio, talvez lhe tenha dado mais prazer, orgulho e satisfação. Às portas de completar 60 anos, contrariando a prudência e o conselho dos amigos, abandonou a crítica e foi fazer teatro lá na Praça Roosevelt. Ficou pelado, se vestiu de mulher, aprendeu a cantar e deixou-se invadir por um salutar desbunde que sepultou a sisudez do respeitável mestre. Só então se permitiu uma maior proximidade (e amizade também) com a classe artística – uma categoria que, em seus tempos de crítico, ele admirava mais de longe, talvez para não embaralhar as coisas e manter límpido seu critério de avaliação

Vou procurar guardar como lembrança cada um desses talentos do Guzik. Porém, nestes últimos meses, ele revelou que, ao lado do homem cerebral, vivia um guerreiro, um cabra-macho que encarou a doença com uma coragem e uma força que mereceram até um elogio do Drauzio Varella, médico mais do que habituado a cuidar de pacientes com a mesma doença. Não desanimou, não deixou de acreditar em sua recuperação e permaneceu firme em campo até o último minuto da prorrogação. Mas uma hora o jogo tinha de acabar

Boa viagem, amigão. A gente vai ficar mais pobre, a gente vai ficar mais triste e a gente vai ficar mais burro por aqui. Mas vai, também, ficar mais teimoso para continuar acreditando que cada dia que temos aqui é um grande dia. Mesmo que seja um grande dia triste.

P.S. No início da noite do sábado, quando deixávamos o Crematório de Vila Alpina, havia uma lua cheia tão linda, mas tão linda no céu, que eu desconfiei que era o nosso grande amigo nos dando de presente o seu último truque de artista: por uma fração de segundo, ele fez a beleza ser maior que a dor.

terça-feira, junho 22, 2010

Urna

Antes que as pessoas desistam de ler este post já na segunda linha, adianto que não vou fazer aqui uma defesa da candidatura tucana à presidência da República. Só quero contar que, na noite de segunda-feira, enquanto o povo do CQC bombava na África do Sul e a Globo exibia um filme de ação com o Antonio Banderas, eu vi a entrevista do José Serra no programa Roda Viva, da Tevê Cultura.

Que Serra não é um candidato simpático, não há dúvida. Que ele se mostra impaciente com os jornalistas, isso também não é segredo. Que ele não está preocupado em agradar à custa de demagogia, também é de domínio público. Como também não deve ser segredo o fato de que seu conhecimento do Brasil é enciclopédico. Fiquei abestalhado com a quantidade e diversidade de dados, números, históricos e minúcias que ele apresentou para justificar cada uma de suas respostas. Nem o Google consegue ser mais rápido que o raciocínio do Serra na hora de lançar mão de estatísticas, pesquisas e estudos para ilustrar ou endossar suas teses.

Se eu fosse a Dilma Rousseff, também estaria com medo de participar de debates, sabatinas e grandes programas de entrevista, principalmente depois deste passeio do Serra pela bancada do Roda Vida. Mesmo com todo o apoio e carisma do Lula, deve ser difícil para ele entrar sozinha na jaula dos leões e mostrar a que realmente ela veio.

Repito: não estou fazendo propaganda serrista, não defini meu voto e não tenho absolutamente nada contra a Dilma – aliás, estou fazendo um esforço considerável para ter alguma coisa a favor, mas está difícil. Só sinto que, depois de uma hora e meia ouvindo José Serra, fica muito difícil não admitir o óbvio: tecnicamente ele é o candidato mais preparado nesta corrida presidencial. Tecnicamente, repito. Mas eu sei que as eleições devem ter um quê de Copa do Mundo: nem sempre o mais preparado tecnicamente é o que chega lá. No caminho da vitória ou do gol há paixões, torcidas, conchavos, bolões e até vuvuzelas dispostas a fazer muito barulho para confundir a cabeça do eleitor.

segunda-feira, junho 21, 2010

Aprendiz de feiticeiro

Finalmente as pessoas se deram conta de que está nascendo um novo Galvão Bueno. Ele se chama Tadeu Schmidt, está ganhando um espaço absurdo na cobertura da Copa do Mundo e reúne todas as condições para, em pouquíssimo tempo, superar o seu mestre. Acredito que, para as milhões de pessoas que estão vendo os jogos da copa, foi uma alegria muito grande, quase uma vingança, saber que nesta segunda-feira o bordão "Cala a Boca, Tadeu Schmidt" foi o campeão de postagens no Twitter, chegando a superar o histórico Cala a Boca, Galvão. Espero que sirva de alerta para o jovem profissional, que ainda não se decidiu se é repórter, humorista, poeta, cronista ou bufão. Se ele continuar no ritmo em que está, e com o prestígio que vem recebendo da emissora em que trabalha, daqui a alguns meses sentiremos muita saudade do Galvão Bueno. E a postagem campeã do twitter provavelmente será: Volta, Galvão Bueno.

O problema é que o mundo está tão de cabeça para baixo, com os valores tão invertidos, que provavelmente ao ser informado de que virou a estrela do twitter nesta segunda, ainda que por motivos tortos, o jornalista vai respirar feliz e convicto de que está no caminho certo. Na próxima vez em que aparecer na televisão, com certeza hoje à noite, ele terá uma nova crônica tão, mas tão chata, que passaremos a acreditar que Pedro Bial é Carlos Drummond de Andrade.

sexta-feira, junho 18, 2010

Minha dívida com Saramago

Fui informado por um amigo, na hora do almoço, que o escritor português José Saramago tinha morrido. Fiquei surpreso, um pouco triste, mas daí, como sempre acontece em casos do tipo, a gente comenta a última coisa que soube, ou leu, a respeito desta pessoa que acabou de partir e retoma a nossa vida no mesmo instante. Desta vez, como eu tinha um compromisso profissional na hora seguinte, retomar a vida exigiu pouco esforço.

Resolvi agora escrever algumas linhas sobre o Saramago porque eu tenho uma dívida pessoal com ele. Não, eu nunca o conheci e nem o vi pessoalmente. Não, ele nunca soube da minha existência. Mas isso não impediu que eu tivesse uma grande dívida com ele, uma dívida que eu estou tentando pagar há quase dez anos, mas os juros parecem se agigantar mais rapidamente do que minha possibilidade de recuperação financeira e moral.

Em 1997, Saramago publicou um livro chamado Todos os Nomes. Não acredito que este livro tenha passado em branco, mas seguramente não alcançou o mesmo êxito de títulos como O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Ensaio Sobre a Cegueira. Todos os Nomes narra a história angustiante de um personagem chamado José, funcionário do Registro Civil de Lisboa, que leva uma vida assustadoramente medíocre e insuportavelmente monótona. Ele está muito próximo de ser um ninguém, um nada, um ser humano que, depois de 40 anos de vida, não deve ter encontrado uma única razão que justificasse o seu nascimento. O seu José sempre me pareceu uma versão um pouco mais moderna, embora tão insignificante quanto, do senhor Akaki do conto O Capote, de Nicolai Gogol – dois sujeitos tão insípidos que, se um dia suas mães os encontrassem na rua, seriam capazes de dizer: engraçado, parece que eu conheço este homem, mas não me lembro de onde.

Quando terminei de ler Todos os Nomes, eu estava assustado. Muito assustado. Porque, mais do que um personagem de ficção, o seu José se erguia como a imagem do nosso descuido. Era como se ele me dissesse, ou nos dissesse, para suavizar um pouco a ameaça, que se não tomássemos as rédeas de nossas vidas e fizéssemos delas algo interessante e prazeroso, era ele, o seu José, que a gente iria encontrar logo mais adiante.

Dois anos depois de ler o livro, algumas circunstâncias me empurraram para a terapia. Talvez fosse mais elegante dizer que as circunstâncias me conduziram para a terapia, mas, no meu caso, o que valeu foi mesmo um empurrão – da vida e de dois ou três amigos. Então, na primeira sessão, uma sexta-feira fria e chuvosa, em que eu cheguei ao consultório antes do psiquiatra e tive de esperá-lo no corredor, começou minha dívida com o Saramago. O médico me perguntou o que tinha me levado até lá. Contei algumas coisas provavelmente normais de se contar numa situação dessas, falei de uma tristeza aqui, de uma decepção ali, de um vazio cá, lá e acolá, e finalmente fiz o meu estranho pedido de paciente novato. “Por favor – pedi ao psicanalista – não deixe que eu me transforme no seu José”. Ele perguntou quem era o seu José. Como o livro estivesse ainda muito quente na minha memória, tentei ser o mais fiel possível na hora de descrever aquele homem que eu queria eliminar do meu futuro.

Já se foram quase dez anos daquela sexta-feira chuvosa e, se alguém me perguntasse, ainda hoje, o que eu fiz de mais relevante neste tempo todo, eu responderia, sem medo de soar piegas: eu continuo fugindo do seu José. E, como nos pesadelos, evito olhar para trás. Tenho um sincero e justificado medo de que, por mais que eu tenha me esforçado para me distanciar dele, seu hálito continua roçando o meu ombro.

terça-feira, junho 08, 2010

Feliz aniversário, Guzik

O amigo Alberto Guzik faz aniversário nesta quarta-feira, dia 9. Vai passar a data na UTI do Hospital Santa Helena, onde foi internado há mais de cem dias para uma cirurgia delicada, é verdade, mas que teve todas as complicações possíveis. É muito triste. Mas eu – e acredito que tantos outros amigos que estão acompanhando esta luta diária do Guzik – faço um esforço danado para não me entregar à tristeza. Penso que, se ficarmos tristes, estaremos de alguma forma traindo toda a força, garra e mesmo a alegria que o Guzik tem demonstrado durante este grande período de internação, em que ele já venceu uma pancreatite e está bravamente nocauteando uma infecção hospitalar.

Eu acho que os nossos inimigos deviam ser bem grandes, para que a gente pudesse encará-los na luta ou fugir deles se fosse mais prudente. Mas estes inimigos invisíveis de tão pequeninos são os piores – eles parecem saber a hora exata em que a gente se tranqüilizou e baixou a guarda para planejar um novo ataque. Mais que um paciente, estou começando a acreditar que o Guzik é um general de guerra, um herói com quatro estrelas no ombro que já aprendeu que o inimigo não dá tréguas. Ele sempre soube que a guerra seria dura – talvez não tanto quando está sendo, é verdade -, por isso nunca permitiu que o desânimo chegasse perto. Nas várias vezes em que estive no hospital, encontrei o Guzik ora feliz, ora irritado, muitas vezes querendo pular daquela cama, desligar todos os fiozinhos e entrar correndo no primeiro teatro de portas abertas que encontrasse pela frente. Mas desanimado, isso nunca.

A última vez em que estive com ele foi na quarta-feira, 26 de maio, faltando três dias para ele enfrentar uma nova cirurgia – prevista para ser a penúltima. Mas nem sempre nas guerras as coisas saem conforme o planejado. Tamanha era a disposição do Guzik que, se eu fechasse os olhos, seria capaz de jurar que aquela conversa estava sendo levada num boteco, numa praia, numa pracinha ensolarada – jamais num hospital. Eu e o ator Chico Ribas ficamos com ele por mais de uma hora, tempo suficiente para que ele falasse mal das novelas que era obrigado a ver – a tevê do quarto dele só sintonizava os canais abertos – e perguntasse tudo sobre as peças e filmes que estávamos vendo, às festas a que estávamos indo, os projetos, os anseios, a vida que continuava a correr normalmente para além das paredes daquele quarto.

Pouco antes de irmos embora, ele disse que estava absolutamente confiante no resultado da cirurgia que faria no sábado. Talvez eu não me lembre de cor, mas são grandes as chances de ele ter usado estas palavras: “Eu não consigo deixar de ser otimista. E olha que eu até tento, mas não consigo. Na minha cabeça, tudo vai dar certo e eu vou poder ver os últimos jogos da Copa na minha casa. É só nisso que penso e acredito. Às vezes, aparecem uns pensamentos ruins, é verdade. Mas eles não duram nada. Aparecem e já vão embora”.

Eu nunca fui muito bom para acreditar nestes lances de energia e pensamento positivo. Mas agora é um bom momento para mudar de opinião. Tô mandando um abraço imenso, um beijão e os votos de melhor aniversário do mundo pro Guzik. Neste mesmo dia do ano que vem, se Deus quiser, a gente vai poder fazer tudo isso pessoalmente.

sábado, junho 05, 2010

Papel carbono

...e então a gente se dá conta de que aconteceu com a gente também.

Não se trata aqui de falar de algo específico, mas de um conjunto de coisas, um grande conjunto de coisas. A gente olha apressadamente para o espelho e poderia jurar que viu a imagem do nosso pai refletida ali;

se trai na hora de fazer algum comentário e percebe que a sua mãe poderia ter dito aquilo – e você a chamaria de uma velha careta e conservadora;

se esquece de que algumas coisas que anda fazendo são justamente aquelas coisas que algum tempo atrás você criticava e tinha a certeza, uma certeza arrogante, de que jamais as faria, não você;

se surpreende ao notar que já está, agora, na metade de um caminho que até algum tempo atrás você tinha certeza de que não iria trilhar;

se entristece a notar que sua fé está bem menor, e o tamanho da sua fé, em si e no resto da humanidade, era algo que o enchia de orgulho;

não ri mais das coisas que costumava rir, por prudência, recato, medo de parecer idiota ou por que não acha nada mais daquilo engraçado, o que vem a ser a pior das hipóteses;

dá uma olhada na agenda, na de papel, e não sabe onde foram parar alguns amigos, logo aqueles que era difícil imaginar a vida sem eles, e você não apenas imagina a vida sem eles, agora você toca a sua vida sem eles;

você abre o armário e tem vontade de jogar fora tantas coisas que já não dizem mais nada e você nem se lembra mais por que as guardou mesmo;

escondido do mundo e de si próprio, você se lembra de uma época em que ficava abismado ao ver algumas pessoas escondidas do mundo e de si próprias;

reserva para o mundo um olhar triste e desesperançoso, o olhar de um médico diante de um paciente precocemente condenado, e se recorda do tamanho do medo – e da piedade – que sentia quando flagrava um olhar como este que agora é o seu;

pensa em voltar e começar uma nova estrada, mas vê que o combustível está acabando, que não se lembra mais de onde as estradas começam e decide seguir pois, dos males o menor, você já está na metade do caminho mesmo;

é acometido por aquela sensação desconfortável e pretensiosa de que já viu quase tudo, de que tudo foi, é ou está condenado a ser igual, quando seu despreparo diante da vida é a prova mais evidente de que ainda não viu quase nada;

e o cansaço, e o cansaço, e o cansaço...

...e então a gente se dá conta de que aconteceu com a gente também.

segunda-feira, maio 31, 2010

Pedaço de mim

Comecei a ler ontem, e já passei da metade – o que não chega a ser um grande feito, visto que são apenas cem páginas – o último livro do escritor americano Philip Roth publicado no Brasil, A Humilhação. Mesmo quando não chega a ser genial, como no caso de A Marca Humana, Casei com um Comunista ou Indignação, Philip Roth se mantém como um autor muito acima da média.

A Humilhação trata de um tema que seguramente representa um pesadelo para atores, músicos, escritores ou qualquer outra pessoa que trabalhe com arte: a perda da inspiração e do talento. Um dia, você acorda e se dá conta de que não consegue – ou não sabe – mais fazer aquilo que sempre fez bem e que permitiu a você chegar aonde chegou – supondo que a gente tenha chegado a algum lugar.

Sob este aspecto, é um relato assustador, paranoico até. Por mais que as pessoas que convivem com o velho e famoso ator Simon Axler, o protagonista do livro,insistam em dizer que ele continua talentoso e carismático, ele sabe que foi abandonado por aquela centelha cujo brilho (que agora se percebe efêmero) o diferenciou dos demais atores de sua geração.

Mais que o abandono da mulher, dos filhos e da própria juventude, este parece ser o mais dolorido dos abandonos. O abandono de si próprio, aquele que te conduz a uma situação em que você não se reconhece mais capaz de fazer o que fazia, não se sente mais seguro para arriscar e acredita que o mundo a sua volta converteu-se em uma imensa camada de gelo fino, pronta a te engolir no primeiro passo que der. A mulher e os filhos podem ter ido para algum lugar conhecido onde sempre vai ser possível encontrá-los, a juventude provavelmente se consumiu em todos os espelhos nos quais você se mirou – e fez o mesmo com todos os seus amigos – mas o mais difícil é encarar, como no caso do personagem, uma parte de você, talvez a melhor delas, que resolveu te abandonar.

Sem deixar vestígios, sem dizer para onde foi e, o que é pior, deixando a impressão de que é para sempre.

sexta-feira, maio 28, 2010

Coxia

No início do ano, eu estava voltando do Rio de Janeiro, sozinho no carro, quando um policial rodoviário me parou. Ele pediu meus documentos e perguntou o que eu fazia da vida. Respondi que era jornalista. Nestas ocasiões, eu acho sempre mais prudente dizer que sou jornalista. Quando a gente responde que também escreve para teatro, as pessoas costumam ficar muito decepcionadas ao descobrirem que a gente não escreveu nem Irma Vap e nem Romeu e Julieta.

“O senhor é repórter do jornal O Globo?”, ele então me perguntou. Respondi que não, que eu morava em São Paulo e escrevia para publicações daqui. “Hum...sei... que negócio é esse de publicações?” Falei que eu era jornalista autônomo e escrevia para vários lugares... só que nós, jornalistas, costumamos chamar estes ‘lugares’ de publicações. “Entendi”, ele falou. “Então o senhor tem coluna?” Calmamente expliquei que não. Que eu não era colunista de lugar algum, que escrevia matérias quando os jornais e revistas me pediam. “Sei...sei...mas o senhor escreve sobre o quê?” Àquela altura, eu compreendi que a curiosidade dele não teria fim enquanto eu não fosse absolutamente didático. Expliquei a ele que eu escrevia sobre teatro, sobre peças que estavam entrando em cartaz, que entrevistava atores, diretores, escritores de peças, enfim, que basicamente eu escrevia sobre tudo que se referia a teatro.

Ele me olhou, fechou os documentos e me entregou a carteira. “Puta moleza de vida. Vai ser policial pra ver o que é bom, vai”.

Talvez alguém ficasse ofendido com isso. Eu, sinceramente, acho estas histórias uma delícia. Elas revelam um certo desconhecimento, ou uma certa ingenuidade, sobre o ofício do teatro. Mas eu sempre acho que é tudo muito saboroso. Há alguns anos, eu estava jantando no restaurante Luna di Capri com o ator Pedro Henrique Moutinho, que atuava em uma peça minha, O Encontro das Águas, ali pertinho, no Satyros. Chegou um casal para jantar e eu vi que eles tinham assistido à peça naquela noite. O cara disfarçou, disfarçou, até que chegou pro Pedrinho e perguntou: “Oi,você é o ator da peça que eu acabei de ver, né? O Encontro das Águas?”. O Pedrinho respondeu que sim. “É que eu tenho uma curiosidade sobre teatro. Você tem de falar toda noite esta mesma coisa ou se um dia você quiser mudar pode?” O Pedrinho explicou que tinha de ser toda noite igual, a mesmíssima coisa. “Nossa, deve enjoar, né?” Disse isso e voltou para junto da namorada.

A última variação sobre o mesmo tema é bem recente. Aconteceu na semana passada. Eu estava fazendo esteira, na academia, quando chegou um professor novo. “Roveri, é verdade que você escreve peça de teatro?”, ele me perguntou. Reduzi um pouco a velocidade da esteira, que já não era muito alta mesmo, para tomar fôlego e dizer que sim. “Puxa, que legal. Mas você escreve só a peça ou escreve a história também?” Reduzi mais um pouquinho a velocidade. “Olha, normalmente, eu escrevo a peça e a história, tudo junto. É um pacote só”. Ele arregalou os olhos. “E o roteiro, quem escreve?” . Respondi que eu escrevia a peça, a história, o roteiro, os diálogos, os nomes dos personagens, tudinho. “Caramba, deve cansar, né?”

Ô, se cansa!

quarta-feira, maio 26, 2010

Brioche

"De tanto fazer o que é razoável, perde-se a dignidade"

Do dramaturgo francês Michel Vinaver, mais afiado do que nunca aos 83 anos.

terça-feira, maio 25, 2010

Morrer na praia

Semana passada vi pela televisão um programa especial sobre o projeto Tamar, instituição mantida pela Petrobrás para cuidar da preservação das tartarugas marinhas na costa brasileira. O apresentador conversou com os biólogos do projeto sobre os diferentes tipos de tartaruga que habitam as praias do Brasil, seus hábitos, tamanhos e uma ou outra peculiaridade. Até aí, nada demais.

O que me chamou a atenção foi a última parte do programa, quando repórter e biólogo acompanharam de madrugada o nascimento de centenas de tartaruguinhas. Podiam ser milhares, se as raposas não vissem nos ovos de tartaruga, enterrados na areia a 50 centímetros de profundidade, uma iguaria dos deuses. Mas até aí, tudo bem também – é só a natureza seguindo o seu curso.

Então as tartaruguinhas começaram a aparecer. O biólogo explicou que elas levaram três dias lutando contra a areia para vencer aqueles 50 centímetros que as separavam da superfície. Não entendo nada de tartarugas, mas depois de ouvir esta explicação, passei a acreditar que elas já chegavam à superfície completamente exauridas. E ainda tinham pela frente a última etapa de seu difícil parto: correr até o mar. E neste percurso, talvez de uns dez ou 20 metros, a maioria delas morria nas garras dos caranguejos, que estavam ali, à espreita, esperando apenas que elas saíssem de seus ninhos, depois de três dias de trabalho árduo, para virarem banquete de fim de noite.

E então eu vi ali uma grande e cruel metáfora da vida: há os que dão um duro danado e há os que chegam e levam tudo. A gente esperneia, reclama, sofre e depois se dá conta de que até na natureza (ou principalmente nela) é assim mesmo que as coisas são – um trabalho insano e desesperado para tudo terminar na boca dos caranguejos. Como faço parte da natureza também, espero ansioso pelo meu dia de caranguejo.

quinta-feira, maio 20, 2010

Páginas

“Você é daquelas pessoas que, por princípio, já não esperam nada de nada. Há tanta gente, mais jovem ou mais velha que você, que vive à espera de experiências extraordinárias – dos livros, das pessoas, das viagens, dos acontecimentos, de tudo que o amanhã guarda em si. Você não. Você já aprendeu que o melhor que se pode esperar é evitar o pior. É essa a conclusão a que chegou, tanto na vida privada como nas questões gerais e nos problemas do mundo. E quanto aos livros? Aí está: justamente por ter renunciado a tantas coisas, você acredita que seja certo conceder a si mesmo o prazer juvenil da expectativa num âmbito bastante circunscrito, como este dos livros, em que as coisas podem ir bem ou mal, mas em que o risco da desilusão não é grave”

Do escritor Italo Calvino, no capítulo de abertura do livro Se um Viajante Numa Noite de Inverno

terça-feira, maio 18, 2010

Ilusão infantil

É quase uma fábula. Mas com final nem tão feliz.

Um amigo me contou ontem que quando ele era garoto, por volta de dez anos, costumava perguntar aos amiguinhos assim: “Hei, você gosta da Hebe Camargo?” Os amiguinhos respondiam que não. Então ele fazia outra pergunta: “E de missa, você gosta?” Os amiguinhos respondiam que também não.

Então ele voltava para casa muito feliz, repetindo a si próprio que se ninguém gostava nem da Hebe e nem de missa, quando eles crescessem não haveria mais nem Hebe e nem missa.

“Cresci, fiz 40 anos e a Hebe Camargo nunca esteve tão em evidência e nunca vi tantas missas e tantos cultos na televisão como agora. Você pode me explicar o que foi que aconteceu”, ele me pediu.

Se alguém souber a resposta, juro que conto pra ele.

domingo, maio 16, 2010

No alvo

"No concurso chamado 'a vida', não deve haver nem vencedores e nem perdedores; a única disputa que eu reconheço não é a com seus semelhantes, mas com sua própria imperfeição, na qual o único adversário é você mesmo. Porque o mais difícil não é vencer seu próximo, mas amá-lo e dividir com ele essa curta felicidade que é a vida"

Do escritor e roteirista russo Aleksandr Gálin

sexta-feira, maio 14, 2010

A vida é sonho

Sou uma pessoa que sonha muito. Não aquele tipo de sonho com o sucesso, dinheiro ou uma vida longa e feliz. Os sonhos aos quais me refiro são aqueles que ocorrem à noite, enquanto durmo. Acredito que todas as noites. Muitos sonhos. Já li que todas as pessoas sonham todas as noites – e mesmo os animais sonhariam. A diferença é que algumas pessoas se lembram dos seus sonhos, enquanto que outras não. Sou um digno representante do primeiro time. Me lembro de tudo com tanta clareza que, às vezes, meu estado de humor durante determinados dias parece estar intimamente ligado aos sonhos que tive à noite. De tão mirabolantes que são, evito contar meus sonhos aos amigos, com medo de ouvir deles que estou inventando tudo. Nos meus sonhos há lugar para todo mundo, desde os amigos mais íntimos, passando pelos conhecidos até chegar em gente como George Clooney, Madonna e Brad Pitt. Nos meus sonhos, eles falam português fluentemente e moram todos em Jundiaí, cidade em que nasci e que até hoje é o cenário de quase todos os meus sonhos, embora eu tenha saído de lá há mais de vinte anos.

Ao lado da casa em que passei a infância, havia um bar, com uma mesa de sinuca. Em um destes sonhos, passei uma tarde inteira jogando sinuca com a Julia Roberts. O problema do sonho é que ninguém sabia quem ela era, só eu. E todos os outros fregueses só queriam que a gente desocupasse logo a mesa. Em outro sonho, chegou um circo bem mambembe na cidade, e instalou sua lona puída no fim da rua, em um grande terreno baldio de terra vermelha. Eu gastei toda a lábia que tinha para tentar convencer o dono do circo a dar uma chance para um amigo meu, que era cantor e estava disposto a se apresentar ali, de graça. De tanto implorar, o dono do circo concordou com que meu amigo cantasse apenas duas músicas – e nem aplaudido ele foi. Meu amigo era o Caetano Veloso. Como estes, há dezenas de outros. Até com o papa eu já sonhei. No meu sonho, cansado e com dor de cabeça, o papa sai na janela do Vaticano e atira um balde de água nos milhares de fiéis que estavam ali só para vê-lo. Depois, pega o microfone e manda todo mundo à merda.

Se eu fosse um paciente que gastasse as sessões de terapia apenas para contar os sonhos, eu não teria tempo de conversar sobre mais nada. Só menciono os meus sonhos para o terapeuta quando eles fogem demais da minha compreensão. Mas demais mesmo. Daí eu peço alguma ajuda, pois acredito que talvez eles estejam querendo dizer alguma coisa que foge à minha compreensão. Como no caso de três sonhos recorrentes, que me acompanham há vários anos e eu ainda sofro para decifrar os seus enigmas.

No primeiro deles, eu estou de volta ao exército. Eu realmente servi o exército, passei um ano inteirinho lá e dei baixa como cabo. No sonho, eu estou de volta ao meu primeiro dia no exército, justamente na hora de receber a farda. Tento explicar a todos que eu já prestei o serviço militar, que não tenho mais idade para ser recruta e que minhas obrigações com os milicos estão quitadas. Ninguém acredita em mim e me obrigam a ficar. Terei, então, mais um ano pela frente para marchar, prestar continência e disparar tiros para lugar algum.

No segundo sonho, existe uma casa imensa, praticamente um palacete, bem na frente da casa em que eu vivia na infância. No sonho, esta casa gigantesca pertence à minha família, mas não podemos nos mudar para lá. Da janela da casa pequena em que eu nasci, eu passo horas observando aquela mansão à nossa espera. Só há uma rua a nos separar dela, podemos quase tocá-la – mas nem eu e nem ninguém da minha família tomamos posse da casa. Estamos condenados (e conformados) a viver na casa pequena. Em algumas situações, recebemos a visita de parentes e amigos. Então, os levamos até o portão e exibimos, orgulhosos, aquela bela casa da frente que nos pertence. Mas, como nós, é na casa pequena que as visitas também entram.

O terceiro sonho é o mais angustiante. Estou conversando com alguém, qualquer alguém, e de repente os ânimos vão se alterando e a conversa dá lugar a uma discussão absurda e violenta. Neste momento, na hora de defender meu ponto de vista e meus interesses, eu perco a voz. Quero falar, quero brigar, quero discutir e minha garganta não emite um único som. Acordo dilacerado diante daquela mudez tão inoportuna e dolorida.

Sei que deve haver algumas explicações para estes sonhos, das mais banais às mais complexas. Na minha cabeça, já tentei interpretá-los de todas as maneiras. A prova de que eu falhei é que estes sonhos continuam me visitando com uma imensa frequência. Mas não me aborreço mais. Porque, quando estes sonhos chatos dão uma trégua, eu posso jogar sinuca com a Julia Roberts e agendar shows para o Caetano Veloso. Não é pouca coisa.

domingo, maio 09, 2010

Dúvidas I e II

Primeira dúvida
A toda hora a ciência nos surpreende com novas descobertas. Telescópios espaciais nos presenteiam com imagens deslumbrantes do universo, antropólogos comprovam que existem genes do neanderthal correndo soltos em nosso sangue e a cada dia parece haver menos segredos no campo científico a serem revelados. Só uma coisa os cientistas não conseguem desvendar: onde é que o apresentador Fausto Silva compra aquelas camisas com brasões no peito?

Segunda dúvida
No dia do jogo entre Corinthians e Flamengo pela Libertadores da América, a rádio Bandeirantes fez uma pesquisa com centenas de torcedores. A resposta mais ouvida foi a seguinte: eles não se importavam em ver os seus times fora da competição, desde que o Corinthians fosse eliminado. A reportagem quis saber, no fundo, o que os torcedores mais desejavam. A resposta: que, em primeiro lugar, o Corinthians se ferrasse, pouco importando se os times para os quais eles torciam também levassem a pior.Se o futebol, em alguns casos, reflete um pouco a nossa vida do lado de cá dos estádios, será que a gente também não se importa em se dar mal, desde que os outros se ferrem mais ainda? Dá um medo de pensar assim....

terça-feira, maio 04, 2010

O bom filho à casa torna...

Se este espaço fosse uma criança, teria morrido de inanição nas últimas semanas. Não me lembro de outro período em que eu tenha sido tão relapso com este blog. Dei início e apaguei vários posts. Nada do que eu começava a escrever me parecia interessante. Se não era interessante a mim, imagine aos outros. Já antecipo, para evitar futuras decepções, que o que segue abaixo talvez não seja interessante também, mas espero que sirva de aquecimento para alguém que estava tão afastado deste pequeno confessionário virtual.

Foi o trabalho que me deixou longe. O excesso de trabalho, quero dizer. Gosto de trabalhar, mas não muito. Resolvi perder a vergonha de confessar isso diante de uma sociedade que parece admirar tanto os workaholics. Eu não admiro, sinto muito. Por mais excitante e compensador que seja o trabalho, sempre achei que quem passa 18 horas por dia enfurnado nele está tentando fugir de alguma coisa. Generalizar é um erro, eu sei. Mas todas estas pessoas que se orgulham em dizer que dormem cinco horas por noite e passam o resto do tempo trabalhando me dão um pouco de medo. Medo de mim, principalmente, porque na presença delas – e elas são muitas – eu me sinto um vagabundo. A cada dia eu aprendo a admirar mais os meus dois gatos, que dormem 18 horas por dia e tentam ser felizes nas seis que restam.

Nestes últimos tempos, no entanto, estive bastante afastado deste ideal felino de ser. Não cheguei às 18 horas de trabalho, e nem pretendo. Mas acho que me aproximei bem das 12 ou 13, o que também me parece bastante. Ao final de uma jornada deste porte, minha cabeça está esvaziada. Preciso recarregar a bateria longe de computadores e telefones. Volto-me, então, aos livros, filmes, programas televisivos de baixíssima qualidade – e eles existem aos montes – ou cervejinha com os amigos. Este último quesito é o meu predileto. Ainda mais quando os amigos não exigem discursos bacanas, posturas políticas ou raciocínios muito elaborados.

Falando em amigos, tenho vários que conseguem se dedicar a sete ou oito projetos simultaneamente. Eu, quando tenho três, já jogo a toalha. Meu cérebro não é multifuncional. Ele opera para trabalhar em um projetinho de cada vez – ao menos se esforça para fazê-lo bem. Só depois de concluído um trabalho, é que consigo pensar em outro. Paguei caro nas vezes em que desrespeitei este meu jeito: acordo de noite preocupado com prazos, perco o apetite diante de resultados finais que não me agradam e sinto uma compulsão para pegar o telefone e dizer para quem me contratou que estou abrindo mão de tudo. Como acho péssimo fazer isso, estou cada vez mais no lema devagar e sempre.
Assim, sempre que notarem minha ausência prolongada por aqui, podem apostar em duas coisas: ou é muito trabalho ou é vagabundagem total. Torçam pela segunda alternativa!

Drops 1: fui assistir ao filme Alice, de Tim Burton, alguns dias depois de ver o filme do Chico Xavier. Com todo respeito que o filme do Daniel Filho merece, cheguei à conclusão de que, em Alice, a vida que nos espera depois que a gente vai pro buraco é muito mais bacana e divertida. Se a gente vai mesmo encontrar alguém do lado de lá, espero que seja o Chapeleiro Maluco.

Drops 2: tenho ido ao menos uma vez por semana visitar o querido amigo Alberto Guzik no hospital. O Guzik, quando estava bem, era uma dessas pessoas que conseguiam se envolver em dez atividades simultaneamente. E eu nunca entendi como ele conseguia dar conta de todas elas. Deve ser genético, porque mesmo agora, preso a uma cama de hospital, ele consegue estar muito mais informado do que eu sobre o mundo aqui fora. Ele sabe de todas as estreias, todos os filmes e todas as festas. Acho que ele tem um anjinho da guarda muito fervido, que sai todas as noites para descobrir o que está rolando do lado de cá do hospital.

segunda-feira, abril 19, 2010

Um domingo para visitar Clarice

Como deve ter ocorrido com muitos leitores, fiquei fascinado pelo universo de Clarice Lispector ainda na adolescência. Aquela narrativa entrecortada, que desafiava a gramática que ainda estávamos aprendendo, aquela urgência em expelir as ideias, como se a morte pudesse surpreendê-la antes do final do parágrafo, e principalmente aquela tragédia iminente pronta a nos assombrar na linha seguinte. Tudo me fazia crer que não havia no mundo literatura mais apta para confortar o sobressalto e as incertezas dos corações jovens do que a literatura de Clarice. Ou para atirá-los de vez no abismo, como muitas vezes ocorreu comigo.

Mas o tempo foi passando e, por prudência ou covardia, o coração foi se aquietando. Os livros de Clarice, então, foram sendo empurrados para o fundo da estante por outros autores que escreviam com menos sangue e tremor nas mãos. Ou, como disse certa vez o jornalista Ruy Castro a respeito de Elis Regina, com menos vinagre na voz. Já adulto, e bem adulto, fui reler A Paixão Segundo G.H., um dos títulos de Clarice que haviam me tirado do prumo no primeiro ano da faculdade de jornalismo. E a temível barata que tanto me afugentara, já não me assustava mais. Nem asco, nem dor. Talvez uma curiosidade, ou a saudade de alguém que eu tinha sido. Ou, ainda, o temor de não saber quem havia mudado tanto: eu ou a barata. O certo é que devolvi o livro a uma das gavetas aqui de casa, onde a tal barata deve sofrer até hoje com a falta de ar.

Falei sobre isso há algum tempo com um amigo, ele ainda um leitor assíduo de Clarice. Ele disse que entendia este meu desapego pela obra da escritora, embora com ele a situação tivesse sido inversa: quanto mais o tempo passava, mais ele a apreciava e dependia dela. E usou uma imagem ao mesmo tempo linda e perigosa para definir Clarice. “Ela era uma escritora com o fio desencapado”. Pode parecer bobo, mas eu gostaria de ter dito isso.

Então, no domingo, fui ver o espetáculo Simplesmente Eu: Clarice Lispector, solo que deu a Beth Goulart o prêmio Shell de melhor atriz do ano no Rio de Janeiro. Não é o caso de falar muito sobre o trabalho de Beth aqui – ainda que seja imprescindível dizer que em cada respiração do espetáculo percebe-se a inteligência e a dedicação de uma atriz talentosa e obcecada pela perfeição. Na composição de quatro personagens presentes em contos e romances de Clarice e na ousada representação da própria escritora em cena, com seus maneirismos e sotaques, Beth Goulart demonstra que levou a sério os anos que passou a pesquisar a vida e a obra da escritora.

Com todo respeito à bossa nova, eu diria que o espetáculo foi me conduzindo com a suavidade de um barquinho que vai enquanto a tardinha cai. Achei estranho, porque toda aquela paz parecia não combinar com o universo desencantado da escritora. Até que as águas se tornaram turvas, as ondas agitadas e os trovões no céu anunciaram o fim da brincadeira: agarre-se quem puder porque, de agora em diante, o dedo imortal de Clarice vai machucar a nossa ferida. O nocaute veio nos minutos finais, nos quais a atriz, tendo apenas o rosto iluminado, eleva uma estranha prece a Deus. Uma prece que fala das nossas ansiedades, do nosso desejo de sermos amados e da salvação que só se revela quando conseguimos amar o outro, do nosso medo da morte e do que vem depois dela (se é que algo virá), da nossa inutilidade aos olhos da natureza, incapaz de nos diferenciar de um rato morto na estrada, do nosso apetite de vida e da nossa vontade absurda de que este Deus a quem rezamos exista e possa nos ouvir. Ao final, Clarice diz que tem somente um desejo: a de que ela possa ter, na hora de partir, uma mão amiga para segurar a mão dela. E isso já teria sido o bastante.

Quando o espetáculo acabou, entendi que, naquele momento, a arte havia conseguido ser mais forte que a religião. Não sei se vou me reaproximar da literatura de Clarice, não sei mesmo. Mas senti que sobre aquelas palavras finais poderiam ser erguidos templos e estátuas. Clarice Lispector escreveu ali os dez mandamentos do homem moderno, sem falar em pecado, cobiça ou inveja. Mas, paradoxalmente, falando sobre algo que é muito mais perigoso que tudo isso junto: a vida.

quinta-feira, abril 08, 2010

Gasparzinho

Na noite de quarta-feira, participei de uma demorada reunião em um café ao lado de um cinema de shopping. Enquanto a chuva desabava lá fora, o trânsito estava caótico e a vontade de todo mundo provavelmente era de ficar em casa, eu me surpreendia com o tamanho das filas diante das salas que exibiam o filme sobre o Chico Xavier. Achei que aquela visão era tudo o que a família Barreto havia desejado para o seu Lula, O Filho do Brasil. Ainda não assisti ao filme do Chico Xavier, mas fiquei sinceramente feliz ao ver tanta gente no cinema numa noite tão inóspita. Chico Xavier é o nosso Avatar que não precisou de óculos 3D para enxergar os desejos do público.

Eu sempre simpatizei com o espiritismo, embora não consiga acreditar em quase nada do que os espíritas dizem. O que não chega a ser um demérito para a religião, pois também acho complicado acreditar que Maria concebeu uma criança sendo virgem e que Cristo, antes de experimentar ele próprio o milagre da ressurreição, tenha trazido de volta à vida alguns mortos que julgava ou queridos ou importantes. E que, depois de ressuscitado, tenha subido aos céus com corpo e tudo. Prefiro acreditar no muito pouco que a ciência consegue nos explicar e deixo as questões celestiais para um outro momento da vida, quem sabe para quando a vida estiver perto do fim e a gente então, por medo e covardia, decide se apegar a qualquer coisa.

Pensar desta forma não faz de mim uma pessoa mais feliz. Ao contrário. Na maioria das vezes fico desesperado com tantas perguntas sem resposta e com a aparente inutilidade de nossa existência. Eu invejo (olha aí um pecado!) quem tem fé. Mas a fé dos convictos, não a fé de quem acha prudente acreditar em algo para garantir um cantinho gostoso no além. Invejo os que acreditam sinceramente que Deus nos ouve, que olha por nós, que um dia mandou seu filho único para dar um upgrade na nossa humanidade tão mesquinha. Invejo quem acredita de coração que exista um lugar melhor à nossa espera, que iremos encontrar as pessoas queridas que já foram e que, neste lugar, a nossa alma vai ficar bem mais bacana do que ela é hoje em dia. São todas coisas nas quais eu gostaria de acreditar, mas tenho uma dificuldade imensa. A fé deve ser algo que deixa as perguntas de lado. Se a gente já começa duvidando, nem adianta entrar no jogo.

Eu tenho um amigo muito querido que há algum tempo decidiu aproximar-se do espiritismo. Ele ficou, mesmo, uma pessoa mais feliz, mais leve e mais compreensiva. Mostra-se sempre disposto a ajudar quem precisa e o mau humor é uma condição que ele riscou do seu cotidiano. Então ele me conta algumas coisas que aprendeu no centro espírita e eu penso: ai, meu pai, como minha alma é rasteira e incrédula. Eu juro que tento crer nas coisas que ele me diz, como na existência de hospitais espirituais nos quais a nossa alma vai ser tratada após a nossa morte, em todos os entes de luz que vão nos ajudar no momento da travessia, nos estágios que faremos antes de decidirmos reencarnar novamente, em todos os obstáculos e provações que optaremos por encontrar na nossa próxima vida, nas nódoas espirituais que carregaremos justamente por não termos cuidado do nosso corpo.

Além de duvidar de tudo isso,eu não consigo entender como é que todo mundo de repente fica bom só porque morreu. Nos relatos que ele me conta, parece não haver mais lugar para raivas, ciúmes, decepções, invejas e angústias depois do nosso último suspiro. Extinguem-se todas as maravilhas e os horrores das paixões humanas. Então, é como se todos os males do mundo fossem responsabilidade do nosso corpo de carne. Liberta da nossa forma humana, a única forma que conhecemos e que a natureza levou milhares de anos para delicadamente esculpir, a nossa alma, enfim, conheceria a bondade e a perfeição. Repito: eu gostaria de acreditar, mas como é difícil.

Sei que alguém iniciado no espiritismo vai dizer que este meu raciocínio é de um primarismo que assustaria até uma alma-penada. Mas é a minha maneira de pensar a respeito deste assunto a partir das informações que coletei ao longo da vida. E não foram, confesso, informações preguiçosas. Mais de uma vez eu me esforcei para ler os livros psicografados, mas nunca consegui passar da página dez. Não por que eles sejam mal escritos (e são mesmo, paciência!), mas porque todos trazem uma ingenuidade comovente. Tão ingênuos e tão comoventes que eles, às vezes, levantam-se como ameaça à nossa inteligência e ao nosso discernimento.

Há alguns dias eu falei para um amigo (que parece ser tão incrédulo quanto eu eu) que apesar do meu ceticismo, eu também tenho medo de que tudo acabe nesta vida aqui. Tenho medo de que somente a escuridão profunda e eterna estará à nossa espera – em contrapartida, não teremos consciência para sofrer com isso. Então, eu disse a ele, para evitar decepções futuras e ausência total de comunicação, eu já vou deixar escritas umas 10 ou 12 cartas psicografadas que serão lidas em intervalos de um mês após a minha morte. Tudo isso já para adiantar as coisas. Não sei ainda o que vou dizer nestas cartas, mas espero ter tempo para pensar. E, para não fugir à regra, prometo que só vou falar de coisa bacana. Espero que ninguém me desmascare.

terça-feira, março 30, 2010

Trem fantasma

CINCO COISAS QUE ME DÃO MUITO MEDO. PELA ORDEM DO SUSTO;

1) A capa da revista Rolling Stone, com o Pedro Bial escovando os dentes. (se tivesse escovado direitinho, desde criança, os dentinhos dele seriam mais branquinhos, né?

2) A atriz Suzana Vieira vivendo Maria, mãe de Jesus, no espetáculo da Paixão de Cristo em Nova Jerusalém (de Virgem Maria ela não tem nada, talvez só a idade aproximada da personagem)

3) O quadro de Marco Luque no programa CQC (supostamente, ele deveria dar respostas engraçadas para perguntas dos telespectadores. Mas a gente só ri, de alívio, quando o quadro termina)

4) O cenário, o figurino e as barbas postiças da série A História de Ester, na Record (é tudo tão feio que a sala da casa da gente parece que foi decorada pelo Sig Bergamin)

5) Ver a Xuxa fazendo comercial de shampoo (se ela tivesse cabelo, ia ser bem bacana)

terça-feira, março 23, 2010

SOS Mulher

Já adianto que este não é um post feminista, ainda que sua intenção primeira seja sair em defesa das mulheres. Não sei se elas precisam, mas vou defendê-las mesmo assim. Nas últimas semanas, dei de prestar mais atenção nos comerciais de tevê e passei a sintonizar o rádio do carro em emissoras de notícias – acho que ando mais preocupado em saber das condições do tempo e do trânsito do que das novidades do mundo pop. Ou ouço notícias ou o CD Iê Iê Iê, do Arnaldo Antunes, que para mim faz as rimas mais simples e bacaninhas da música brasileira. Pois nesta minha recente imersão em notícias e comerciais, percebi o seguinte: a onda do politicamente correto, que decidiu preservar os anões, os gays e os gordos, não está nem aí pra mulherada. Em grande parte dos comerciais, elas continuam a aparecer como gastonas, fúteis ou como obstáculos para a felicidade dos seus maridos.

Muita gente caiu de pau no comercial da cerveja Devassa, que trazia uma Paris Hilton toda insinuante na janela de um apartamento na orla carioca. Tanto fizeram, que o comercial saiu do ar. Um amigo jornalista, cheio de fontes no mundo corporativo, me garantiu que aquele corpão nem era o da Paris Hilton. A loira americana, sem bunda e sem peitos, teria precisado de uma dublê nas gravações do comercial. Só a carinha de queixo pontudo era mesmo dela – o resto, todas aquelas curvas sinuosas, era produto brasileiro mesmo. Mas eu nem achei aquele comercial de cerveja tão ofensivo assim.

Para mim, muito pior é uma propaganda que está sendo veiculada agora, de uma cerveja que quer ser chamada de cervejão. Para poder sair e beber com os amigos, o rapaz do comercial tem de deixar o cartão de crédito com a namorada, que vai passar o dia esfolando a conta bancária do coitado. É um casal que realmente se merece. O que o comercial no fundo quer dizer? Que a liberdade tem, literalmente, um preço medido em cifrões: o rapaz aceita pagar por um dia livre na companhia dos amigos e a moça concorda em receber. Em troca de uma sandália nova, ou de um vestido da estação, ela não está nem aí para que o companheiro vai fazer. Realmente muito dignificante. Não sei se é machismo de minha parte, mas custo a acreditar que numa operação como esta a mulher leve alguma vantagem. Como nestas grandes transações financeiras, eu acho que ela está comprando a parte podre do negócio.

No sábado, acho que mais por birra do que por distração, fiquei no carro ouvindo um programa especial sobre o evento Risadaria, uma reunião de comediantes que se estendeu por todo fim de semana no Ibirapuera. Uma amiga insistiu muito para que eu fosse com ela, mas eu fujo desta onda de stand-up comedy com o mesmo empenho que uma criança foge de salada de legumes. O programa do rádio era o seguinte: vários repórteres pediam para que os participantes do Risadaria contassem algumas piadas publicáveis no ar. Foi tão engraçado quanto ouvir o boletim dos congestionamentos nas marginais. Quase todos os comediantes contaram piadas sobre mulheres burras, feias ou depravadas. Fiquei ouvindo o programa por quase meia hora: contabilizei uma piada sobre criança gulosa, outra sobre velhinhos e todo o resto foi sobre mulheres. Um comediante disse que ter ciúme de mulher feia era tão desnecessário quanto colocar no seguro um Fiat 147. Outro contou a piada de um detetive que, ao ser contratado para seguir os passos da mulher de um homem desconfiado, encontrou a sua própria mulher, loira, é claro, no quarto de um motel – de onde a retirou na base de chutes e pontapés. Entendi, com tristeza, que parte dos nossos humoristas ainda vive de fazer pinturas nas cavernas.

Para completar minha semana feminina, leio na Folha de S. Paulo, de domingo, uma entrevista em que a atriz Lúcia Veríssimo diz que tem aprendido muita coisa com a velhice. Lúcia Veríssimo tem 51 anos. A coisa anda tão ruim para o lado das mulheres que uma delas, ainda bonita e famosa aos 51 anos, aceita que a velhice já chegou... Muito triste.

quarta-feira, março 10, 2010

Café pequeno

Há dois meses foi inaugurado um restaurante sérvio na Vila Madalena. Um casarão quase de esquina, de paredes revestidas com páginas de jornais impressas em alfabeto cirílico e uma simpática varanda onde é possível ouvir um tipo de música que me pareceu cigana. Antes, no mesmo endereço, funcionou por pouquíssimo tempo um restaurante de comida mineira que eu visitei apenas uma vez, na companhia do amigo Márlio Vilela, um mineiro bem mais original do que a refeição que nos foi servida. Sou curioso por estes cardápios meio exóticos ao nosso paladar, como o catalão, o húngaro, o peruano. Embora, sempre que visite um lugar assim, talvez por medo eu peço o prato que me soa mais familiar. No caso do restaurante sérvio, onde estive no último domingo, optei por um peixe cozido com legumes. Mais banal, impossível. O que valeu a visita, no entanto, ainda estava por acontecer.

O garçom, vestido com roupas militares, perguntou se eu gostaria de um café expresso ou do café turco. Pedi o expresso. Ele me disse, então, que se eu optasse pelo turco, o dono do restaurante, que nasceu em uma localidade próxima a Belgrado e está no Brasil há seis anos, iria ler minha sorte na borra do café. Cortesia da casa, ele me explicou. Óbvio que troquei o pedido. Meu café turco chegou em uma xícara grande e, com ele, algumas instruções. Antes de tomar, eu deveria esperar dois minutos, até que a borra se depositasse no fundo. Depois de tomar, eu deveria virar a xícara, esperar cinco minutos e chamar pelo dono. Foi o que fiz.

O dono, rapaz simpático e de bom papo, veio, se apresentou e sentou-se à mesa. Perguntou se eu era destro ou canhoto e então segurou a xícara com as duas mãos. Minutos de um silêncio apavorante, enquanto ele manipulava a xícara como quem está diante de um diamante de incontáveis quilates. “Eu não vejo futuro”, ele me nocauteou. “Que ótimo”, eu respondi. “Então eu nem vou pagar a conta”. Concentrado, ele retomou a leitura. “Eu vejo que em sua vida está tudo redondo”. Olhei preocupado para a minha circunferência e pensei que o cara sabia o que estava dizendo. “Você....”, ele prosseguiu.... “você é uma pessoa que demora muito tempo para reformar a casa. Hum... você demora uns dez anos para reformar a casa”. Desde quando os astros se preocupam com a reforma da nossa casa, eu ia dizer, quando ele continuou. “Eu vejo uma torre, um farol, um farol de mar...E vejo também um vulcão, um vulcão em cima de uma base muito sólida”. Perguntei se isso era bom. Ele respondeu que achava que era, porque a erupção do vulcão podia ser um grande acontecimento. Sempre que a televisão mostra erupção de vulcão, as pessoas estão correndo, apavoradas e sujas de cinza. Achei que as coisas estavam piorando legal.

Então ele pediu para que eu colocasse o dedo indicador dentro da xícara, girasse-o na borra de café de forma a produzir um furinho e fizesse um desejo. Obedeci. “Eu vejo um desejo muito fraquinho”, ele falou, enquanto eu tentava tirar aquela porra de café de debaixo da minha unha. “É um desejo fraquinho mesmo, viu. Nem sei se vai se realizar. Se for se realizar, vai demorar muito, mas acho que nem vai. Dá uma olhada na xícara, seu desejo é este buraquinho em forma de cisne aí no fundo”. Olhei a xícara e disse a ele que aquilo lá no fundo parecia um pato, e não um cisne. “Eu também acho que é um pato”, ele me disse. “Eu só falei que é um cisne para ficar um pouquinho mais bonito”.

Paguei a conta e fui embora. De todas as vezes em que visitei videntes e cartomantes, esta foi, disparada a melhor. Porque eu comi um peixinho bom, por um preço justo e o dono do restaurante não me enganou como as cartomantes sempre fizeram: ele deixou claro que sabia do meu futuro tanto quanto eu. Ou seja, nadinha!

segunda-feira, março 08, 2010

Variações sobre o mesmo tema

Toda semana tem a sua notícia trágica, ainda que não seja de grande impacto na mídia. A da semana passada, na minha opinião, veio do outro lado do mundo. Um casal de coreanos foi capturado pela polícia, após cinco meses de fuga, acusado de não alimentar a filha, um bebê de cinco meses, que morreu de inanição. Chocante, sim. Mas o que vem a seguir é pior: viciados em Internet, os dois passavam mais de 12 horas por dia em uma lan house, obcecados por um joguinho em que deveriam criar uma filha virtual. Enquanto se dedicavam ao bebê do computador, a filhinha de verdade, cujas fotos são estarrecedoras, morria de fome sobre um colchão na sala da casa.

Sem querer soar obsoleto, há algum tempo que a internet, a despeito de todas as suas vantagens e maravilhas, tem enlouquecido algumas pessoas. A Folha de S. Paulo publicou, neste domingo, reportagem mostrando uma série de jovens que, à mesa dos restaurantes, ficam checando e-mails em seus iPhones, deixando os interlocutores com caras de idiota. Já passei por isso e posso atestar que é uma sensação de desprezo irremediável: você ali, convidado que foi para jantar, fica observando seu anfitrião entretido com e-mails e notícias, sem ter nada mais a fazer além de contar as casquinhas de pão que caíram sobre a toalha do restaurante.

Na última sexta-feira, ludibriado pelos elogios da mídia, fui ver Direito de Amar, longa de estreia do estilista Tom Ford, um dos filmes mais bregas que já vi nos últimos tempos. Na sua tentativa de ser um esteta do cinema, quem sabe nos moldes de um Luchino Visconti, Ford nada mais fez do que colecionar imagens que ficariam bem num vídeo promocional de algum motel barato. Mas o povo da moda diz que Tom Ford é Deus e que seu filme tem uma beleza titânica...então, fiquemos assim: quem acreditar nisso, que corra para o cinema mais próximo.

Mas não é sobre o filme da tela que eu queria falar, e sim do filminho que rolou a duas poltronas da minha: assim que as luzes se apagaram, um sujeito relativamente conhecido do mundo cultural da cidade tirou seu iPhone do bolso e começou a checar os e-mails. Primeiro, os leu. Depois, passou a responder um a um. Feito isso, gastou o tempo restante da projeção a ler notícias e incomodar o público com a luzinha que escapava do seu aparelho. Fico pensando se não é mais barato fazer isso em casa. Mas talvez ele more sozinho, e então é mais legal ir ao cinema mostrar o quanto a gente é antenada com a tecnologia.

Eu ainda estava com este episódio na cabeça quando uma amiga me ligou, no início da tarde de ontem. Ela tinha combinado de almoçar com um amigo, mas nada do sujeito aparecer. Ela ligava na casa dele e ninguém atendia, no celular dava caixa postal. Já eram quase três horas quando ela, finalmente, conseguiu falar com o cara. Ele estava em outra cidade e ficou surpreso com o telefonema da minha amiga. “Como assim?”, ele perguntou. “Eu avisei você que não ia almoçar”. Indignada, minha amiga respondeu: “Avisou como? Não me ligou no celular, não me ligou em casa. Para mim, o almoço estava em pé”. E então ele explicou: “Eu avisei pelo facebook”. O que a gente faz com um sujeito desses? Ou seja, agora a gente combina algo com alguém e tem de ficar conectado no facebook, no Orkut e no twitter para saber se o compromisso continua em pé? É isso que o futuro nos reserva?

Já contei aqui que a primeira coisa que fiz neste ano foi sair do twitter. Poucas coisas me deram tanta alegria. Estou no facebook sei lá por qual motivo: nunca usei esta ferramenta para nada. Acho que nem foto eu tenho lá. O que eu preciso dizer, para os poucos e bons amigos que tenho, digo ao vivo ou pelo telefone. Ou por e-mail, que acho bacana também. Porque são formas discretas de comunicação. Digo o que interessa a mim e a eles, e não ao restante do povo que vive conectado. Saí do twitter quando me dei conta de que quase todo mundo usava aquele espaço para falar de si próprio, do sabor do miojo que tinha comido, do chocolate que tinha comprado para a filha e de quantos banhos havia tomado nos dias de calor. Eu vivia me perguntando por que raios eu tinha de saber de tudo isso? Fechei minha conta e fiquei bem feliz.

Hoje eu penso o seguinte: a gente usa o twitter não para dizer aos outros o que estamos fazendo. Usamos para convencer a nós mesmos de que estamos fazendo algo produtivo, de que nossos dias iguais têm uma pitadinha de excitação aqui e ali, de que nosso cotidiano massacrado pela rotina pode parecer interessante aos olhos dos outros. Pois não parece. Nem aos olhos dos outros e nem aos nossos próprios. Infelizmente esta é a nossa vida. Pode ser a nossa danação, ou a nossa delícia, dependendo de como encararmos o fato. Divulgamos o que fazemos na tentativa – saudável, eu acredito – de nos enganar, de nos dar uma importância que na realidade nem sempre temos. Afinal, levar o gato para tomar banho pode até nos fazer feliz. Mas eu pergunto: o mundo precisa saber disso?