segunda-feira, abril 30, 2007

Carta aberta ao doutor Freud

Há algum tempo que venho pensando na terapia. Não na minha, especificamente - que faço há seis anos e que, por isso mesmo, acaba de se transformar na atividade mais longeva da minha vida depois do emprego no Jornal da Tarde. Nunca fiquei tanto tempo na mesma escola, na mesma academia de ginástica (este tópico chega a ser covardia, assumo) e nem com o mesmo carro. Seis anos que, vejo agora, passaram rápido demais e foram insuficientes para tentar explicar uma existência que se prolonga por muito mais tempo. A terapia, para o bem e para o mal, nunca vai alcançar a vida real. Um encontro casual na esquina, na saída do consultório, pode durar dois minutos e render no mínimo três sessões de análise ao final das quais continuaremos sem saber se o tal encontro, tão inocente, foi casual mesmo ou se nosso cérebro armou um plano diabólico durante o último ano para que, naquele exato momento, fôssemos obrigados a encarar alguém de quem preferíamos manter distância. Sei lá. Resolver alguma coisa na terapia é, para mim, um sonho tão impossível quanto o de conhecer a Superterra, o novo planeta que fica logo ali, a 20 anos-luz de distância deste nosso mundinho cada vez menos azul. E, ainda assim, há seis anos eu olho para o meu terapeuta com a esperança infantil de que ele encontre as soluções para problemas que nem dele são.

Depois de muito pensar sobre a terapia, cheguei à conclusão pessoal de que podem ser três os motivos que nos levam a pousar as costas sobre um divã: um trauma específico e localizado, o desejo de um aprimoramento pessoal também específico (uma espécie de upgrade que a gente costuma dar no computador de dois em dois anos desde que nossos arquivos pessoais sejam preservados), ou a tentativa de nos transformar em outra pessoa, definitivamente melhor do que esta que somos e da qual às vezes nos sentimos irremediavelmente cansados. Talvez eu tenha sido fisgado por esta terceira opção, a mais cruel, traiçoeira e ingrata entre elas. Mas acredito que, no fundo, é a que nos seduz a todos. Se vamos mexer em algumas de nossas estruturas, por que não colocar o edifício todo abaixo e reconstruí-lo com uma arquitetura mais moderna, funcional, cool, contemporânea, bela e isenta aos terremotos da vida? É um direito legítimo que temos, não é? Não fosse a nossa própria mente a primeira autoridade a embargar a nossa obra ainda tão incipiente, ainda tão no alicerce, ainda tão sujeita à menor das intempéries.

Não, não nos daremos o nosso próprio alvará para prosseguir com esta reforma tão radical. Não colocaremos nosso edifício abaixo, não implodiremos nossas estruturas e jamais construíremos um edifício mais belo no lugar deste que tantas vezes se revela capenga. No máximo, mudaremos um quadro de lugar, um detalhe na decoração, com muito esforço a cor da fachada, talvez. Mas sinto que cada um dos nossos cômodos continuará a ser do mesmo tamanho, nossos móveis prosseguirão obsoletos e cada vez mais difíceis de serem mudados de lugar, o capim continuará a crescer no nosso quintal, não teremos um jardim de inverno e nem carpas japonesas, continuaremos a riscar nosso carro nos limites estreitos da garagem da nossa alma, às vezes faltará água, às vezes o cobertor será curto, às vezes a geladeira estará vazia, às vezes as lâmpadas se queimarão no momento em que mais precisamos de luz. E ainda assim, quando tudo isso ocorrer, simultaneamente ou a intervalos mais suportáveis, continuaremos a abrir nossas janelas para que entre um pouco de sol e calor. E, no final da tarde, olharemos com certa ternura para esta nossa casa um pouco velha. E ficaremos felizes de saber que ela ainda é o melhor abrigo para a noite que se aproxima.

Balu num céu de girassóis...

Como um exemplar de brasileiro típico, deixei para ver no último dia de temporada o espetáculo Adubo, Ou a Sutil Arte de Escoar Pelo Ralo, do grupo Tucan, de Brasília. O folheto da peça, de um indiscutível mau gosto, não traduz a beleza, o lirismo e o impacto deste trabalho - desde já uma das melhores coisas de 2007 nos palcos da cidade. Adubo é um espetáculo que fala da morte de maneira obsessiva, por meio de colagens de textos, narrativas entrecortadas, cenas curtas e um ritmo que às vezes lembra um videoclipe. E que consegue uma proeza invejável: ao falar da morte, a paeça parece despertar um interesse incontrolável pela vida. Difícil apontar algum elemento que se sobressaia nesta montagem tão equilibrada: a direção é primorosa, o texto é de uma qualidade cada vez mais rara nos palcos e o elenco, bem, o elenco é um caso à parte: quatro atores habilidosos, que trafegam pela comédia, pela farsa, pelo drama, pelo musical e até pela tragédia. Sem um tropeço, sem um deslize, com a competência de músicos clássicos diante de uma partitura habilmente ensaiada. Adubo é um desses espetáculos que têm a força de empurrar o teatro um pouco acima e além do terreno mais ou menos seguro onde estamos acostumados a trafegar. Sem grandes recursos cênicos - o elemento mais eclético no palco é uma lousa em que os atores vão desenhando os cenários - Adubo é a prova de que o triplé texto-elenco-direção sobrevive ainda como a mais prazerosa equação teatral. A cena final, em que Balu, o cachorrinho atropelado no início do espetáculo revela que existe, sim, vida após a morte, e que nesta vida há girassóis amarelos - já entrou, sem exagero, para a história do moderno teatro brasileiro. É para ver e rever várias vezes - se eu não tivesse deixado para o último dia, claro.

sábado, abril 28, 2007

Detalhes tão pequenos de nós dois...

Roberto Carlos conseguiu, enfim, suspender a comercialização do livro Roberto Carlos em Detalhes, do jornalista e pesquisador Paulo César Araújo. Não li o livro - a vida de Roberto Carlos, para ser sincero, não me interessa tanto. Gosto muito de algumas composições dele - o disco As Canções que Você Fez pra Mim, de Maria Bethânia, só com as músicas de Roberto, é um primor. Mas Roberto, longe do microfone, parece ter pouco a dizer: ele nunca tem opinião formada sobre política, sobre o Brasil, sobre comportamento, sobre nada. É um Rei que parece viver de costas para o seu reino. Sabe-se pouco dele: que é supersticioso, que não gosta de marrom, que ninguém toca em seus cabelos e que, só há pouco tempo, resolveu tratar seu transtorno obsessivo-compulsivo. O que, e isso é fato, humanizou demais sua figura.

Roberto tem todo direito de ver sua intimidade longe das livrarias. É um direito dele e de qualquer outra pessoa que deseje passar ao largo desta mundanidade em que se transformou a nossa época. Mas me parece que os motivos que levaram o Rei a pedir a proibição do livro são tão banais: o que muda, na rotação da Terra, saber que a cantora Maysa tomou um litro de uísque em alguma noite dos anos 60? Ou que sua ex-mulher Maria Rita, a exemplo de todo doente terminal de câncer, sofreu antes de morrer? Ou que o próprio Roberto, garoto ainda, perdeu parte de sua perna num acidente de trem? Esses detalhes constituíram, segundo a imprensa, o estopim para que o cantor enfrentasse uma batalha judicial para proibir um livro que, de resto, parecia ser uma grande homanagem à sua indiscutível importância dentro da música popular brasileira.

Com a proibição, os leitores ficaram sabendo apenas daquilo que Roberto não gostou - três míseros relatos que não devem somar mais de duas páginas. E ficarão sem conhecer, provavelmente, milhares de outros fatos que contribuíram para que Robero Carlos se tornasse o maior nome da música nacional. Ele estava em seu direito de não gostar e proibir - e nem sei se isso configura exatamente um ato de censura. Soa mais como intransigência. Sobra, para o historiador Paulo Cesar ARaujo, uma triste lição: da próxima vez, ele deverá escrever a biografia de Ana Maria Braga, Suzana Vieira ou Luciana Gimenez. Elas jamais brigariam na justiça por ter sua intimidade revelada. E era bem capaz que saíssem por aí dizendo que o livro contou pouco...

quinta-feira, abril 26, 2007

Selton Mello

Entrevistei Selton Mello apenas uma vez. Foi em meados de 2003, quando ele estreava como diretor teatral no espetáculo Zastrozzi, que em São Paulo ficou em cartaz no Teatro Folha. A entrevista foi marcada para as 14h de uma terça-feira, na lanchonete America do Shopping Pátio Higienópolis. Cheguei no horário. Selton estava começando a almoçar e o assessor de imprensa me disse que a entrevista poderia ser feita enquanto ele comia. Achei melhor esperar. Nun ca gostei de entrevista durante o almoço: o entrevistado não come direito e a gente não pergunta direito também. Quando terminou o almoço, ele mandou me chamar. Assim que me sentei à mesa, ele pediu para que um garçom lhe trouxesse um milkshake de chocolate. Para ele. Tive a certeza de que nenhum ator preocupado em ser apenas um galã saradão tomaria um milkshake de chocolate imediatamente após o almoço. Durante boa parte da entrevista, ele manteve as duas mãos ocupadas: a esquerda, com um cigarro; a direita segurando o canudinho do milkshake. A entrevista foi publicada dois dias depois na capa do caderno de Variedades do Jornal da Tarde.

Depois desse nosso primeiro contato, voltamos a nos falar por e-mail, com uma frequência que eu gostaria maior. Selton Mello é, para mim, o grande ator do cinema brasileiro. Ainda que às vezes os filmes pareçam obrigá-lo a permanecer num tipo mais ou menos confortável, sempre se percebe nele uma queda incontida pela ousadia, uma vontade incubada de tentar o diferente, o inovador, o provocador. Selton faz, aqui, o que Johnny Depp faz em Hollywood: os dois poderiam passar o resto da vida fazendo apenas o que sabem fazer bem - atuar. Mas isso parece pouco para dois dois. A cada novo trabalho eles parecem ir mais fundo em algo que talvez nem saibam exatamente o que seja, contanto que seja diferente do anterior. E, se possível, mais ousado. Preservam a vida pessoal, não posam de gatinho, ficam feios se os papéis exigem, engordam, emagrecem e, o melhor de tudo, não estão nem aí para o politicamente correto. Duvido que qualquer um dos dois estivesse disposto a correr o mundo em busca de uma nova criança para adoção.

Logo após a estréia de O Cheiro do Ralo, voltei a falar com Selton, novamente por e-mail. De tudo que ele falou - e nem foi tanta coisa assim - houve algo que me chamou muito a atenção. Segundo ele, o filme representou uma viagem solitária, muito solitária. "Eu nem estava ali", revelou. Não sei como é o trabalho num set de filmagem, não sei como é ficar solitário no meio de técnicos, cameramen, diretores, iluminadores e mais uma porção de gente que deve circular pelos estúdios. Mas, ao ver o filme pronto - e o filme pronto é o que nos interessa, em última análise - senti que muita gente embarcou na viagem de Selton. Na tela, podem dizer tudo a respeito dele, mas nunca que ele está sozinho. Tudo me leva a crer que existe uma platéia cada vez mais ávida por acompanhá-lo em cada passo que ele dá.

sábado, abril 21, 2007

Um grito de independência no 21 de abril

Feriado enrustido de 21 de abril. Metade dos lugares funcionando, a outra metade fechada. Não sei se é mania de perseguição da minha parte, mas hoje, justo hoje, inventei de precisar dos serviços daquela metade que estava fechada. Do café aqui perto de casa a uma loja na Vila Madalena, onde eu precisava comprar um presente e dei com a cara na porta.

Sem pressa, resolvo caminhar por um parque perto da Doutor Arnaldo. Típica manhã paulistana: algumas crianças brincando na grama, passarinhos cantando nas árvores e labradores fazendo a festa nos postes e no pouco de terra batida que eles encontraram. De repente, um grito. Dali a pouco, o grito de novo - o mesmo grito. Não um grito de quem pede socorro, de quem está assustado ou foi surpreendido por um ladrão. Mas um grito dolorido, sincopado, sempre da mesma altura e com a mesma intensidade. Como o badalar de um relógio.

Havia um deficiente caminhando pelo parque, sozinho e não tão jovem. A cada dois ou três passos, era ele que emitia um grito. Um ruído seco que parecia fazer parte da sua anatomia, um gesto tão natural quanto balançar os braços enquanto se caminha. Talvez ele nem notasse mais os próprios gritos, como nós não notamos os nossos braços a balançar quando andamos. E então eu fiquei irritado - por mais horrível que seja confessar isso aqui, eu fiquei mesmo irritado. Aquele grito quebrava a harmonia de um pequeno mundo perfeito, verde e seguro: um mundo de crianças, passarinhos, labradores e adultos tomando água de coco. Um mundo de paisagem. E o grito, a cada vez que era emitido, corrompia esta nossa natureza morta.

Depois da irritação, a constatação: aquele grito era o diferente, era a voz do outro que me irritava por me lembrar que aquele mundo embrulhado para presente era tão dele quanto meu. E tive mais uma vez a certeza, embora sem surpresa, que conviver com o outro era aprender a ouvir e a aceitar seus gritos, ainda que eles venham a riscar o vinil das nossas vidas. Depois de mais algumas voltas, o grito parou. O deficiente tinha ido embora, provavelmente sozinho. O parque voltou a ficar em silêncio e eu também tomei o caminho de casa. Aquela quietude toda havia ficado sem graça.

segunda-feira, abril 16, 2007

Águaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

O mundo está acabando e parece que desta vez é sério. Jornais, rádios, tevês e sites na internet só falam nisso. Parece que a cada dia mais um pedacinho da Terra vai embora, mais alguns animais e plantas se extinguem, mais uma área de floresta vira cerrado, mais uma campina vira deserto, mais um rio exibe seu leito seco. A sensação que dá é de que chegou o síndico para dizer que a festa que estava bombando nas costas deste planeta acabou.

É impossível não pensar sobre isso em cada um dos nossos pequenos gestos diários. Viver está ficando cada vez mais chato em função desta paranóia toda. Sei que cada atitude preservacionista, por menor que seja, se torna urgente e necessária. Mas, de verdade, que saco... a cada vez que vou usar meu desodorante aerosol fico com medo de estar deixando um urso polar sem seu pedacinho de gelo no Ártico, a cada vez que tomo um banho de mais de dez minutos me vêem à mente milhares de criancinhas sem água para beber, a cada vez que vou dar uma caminhada pela avenida sumaré imagino minha pele sendo devorada por raios solares cujos nomes eu não sei. Putz, que merda, de verdade.

Fico me lembrando dos meus banhos de criança, quando eu só saía do chuveiro depois que minha mãe se lembrava de que havia um filho dela perdido em algum lugar da casa. Eu saía da água com os dedos enrugados...e ainda sujos, porque eu tinha aproveitado o banho para fazer qualquer coisa, menos me lavar. Também me lembro que lavar o carro e a calçada era quase tão divertido quanto ir à praia. Há alguns dias, quando estive em Jundiaí, minha cunhada me falou que tinha visto a vizinha lavando a calçada, com a gravidade de quem presenciara um estupro ou uma chacina. Agora a gente tem de se ensaboar com o chuveiro desligado, e tem de esfregar a louça com a torneira da pia fechada. E não tem nada mais sem graça do que espuma sem água...e não tem nada pior do que ficar com a pele meio grudentona porque ficou com o sabonete por muito tempo nela...E quando a gente vai passear na praia, não pode tomar sol. E quando vai passear no mato, tem de tomar cuidado e andar somente sobre as pedras, para não pisar em nenhuma graminha. Outro dia uma barata entrou voando pela minha janela do 13º. andar. Corri para pegar a latinha de rhodiasol mas, na hora de espirrar na bichinha, fiquei pensando que ela também podia ser o último exemplar de algum tipo de barata que vem sendo destruída por blá blá blá... fiquei sacudindo uma toalha até ela escapar pela janela de novo. Eu sei que era só mais uma barata, mas dizem que a gente já matou tanta coisa neste mundo, mas tanta coisa, que eu não quis carregar mais esta culpa, a de ter matado alguma barata sagrada de asas rosadas... sei lá...

Tenho dois gatos, o Pirulito e a Ritinha. Eles ficam o dia inteiro tomando banho... de língua. Estão sempre limpos, mas sempre secos. Não sabem o prazer que é, ou que era, passar a agenda da semana inteirinha na cabeça enquanto a água morna ia caindo do chuveiro, cantar umas dez músicas bem compridas do Legião Urbana enquanto o banheiro ia ficando todo embaçado e as pontas do dedo enrugadas, assobiar, imitar os outros, falar mal de alguém bem baixinho, escrever o nome no vidro do armário enquanto a água ia escapando do box... É muito chato saber que, daqui a algum tempo, eu terminarei meus dias como o Pirulito e a Ritinha, me lambendo inteirinho na hora do saudoso banho....

terça-feira, abril 10, 2007

Problemas? Chamem um big brother

Eu fui informado, embora não tenha conseguido apurar se a notícia procede, que a Rede Globo, alarmada com os baixos índices de ibope da novela Paraíso Tropical, estaria pensando em convocar, em regime de urgência, o Alemão, vencedor do último Big Brother, para entrar na trama e turbinar a audiência. Segundo a fonte que me revelou esta informação, um ator de novelas, o autor Gilberto Braga e seus assistentes estariam criando às pressas um personagem para o loirão de cabelo arrepiado que está um milhão de reais mais rico desde a semana passada.

Odeio os big brothers. Todos eles, sem exceção. Da simplória cabeleireira Cida aos vários caubóis que passaram pelo programa, daquela altona que só sabia vomitar ao gay baiano metido a escritor, do Bam-Bam à legião de marombados e gostosonas, odeio a todos eles. Não é um ódio pessoal, desses que levam a gente a atravessar a rua ou dar meia-volta na entrada de uma festa só de saber que a pessoa capeta está lá dentro. É o ódio do que eles representam, da mediocridade que eles lapidam durante três meses em rede nacional, é o ódio à mesquinhez, às falcatruas, à falta de talento e sensibilidade, à ausência de criatividade, à preguiça intelectual, às tramóias, aos joguinhos armados para saber quem derruba quem, às calcinhas e cuecas deixadas no meio da sala, às ceninhas ensaiadas debaixo dos edredons e a toda maldita carga genética que parece moldar a personalidade de cada um deles. Sei que eles não são culpados por tudo isso - antes, são umas pobres vítimas desta sociedade que parece valorizar somente quem surge na tela de uma grande emissora de televisão ainda que para fazer em público aquilo que deveríamos ter vergonha de fazer trancados no banheiro.

No entanto, é preciso olhar com atenção para eles. E com respeito - embora, ao menos no meu caso, sem deixar o ódio de lado. Se Alemão for mesmo convocado para tirar Paraíso Tropical da mesmice, é porque o público, de alguma forma, está dando um recado aos programadores de televisão: um recado de que a fórmula está gasta, de que um novo tipo de herói ou vilão precisa ser urgentemente redesenhado, que a narrativa perdeu o fôlego e que algo precisa ser feito às pressas, para ontem. Se uma trama escrita por Gilberto Braga, comprovadamente um dos melhores novelistas do Brasil, e que traz no elenco atores do porte de Wagner Moura e Tony Ramos, precisa pedir socorro a um big brother, é sinal de que algo vai mal. É sinal de que a Globo está voando com seu transponder desligado e há um sério risco de uma grande colisão logo ali na frente.

Nesta terça-feira, durante a coletiva de apresentação do projeto de teleteatros da Cultura, o diretor Antunes Filho implorou diante de uma dezena de novos diretores que terão sua primeira experiência televisiva: "Façam alguma coisa de novo na televisão, por favor, dêem um novo respiro a este veículo, inovem!!! O grande público, que não é chamado para as coletivas, está dando seu ultimato de outra maneira: chamem um big brother para colocar a novela nos eixos. Um big brother não é solução pra nada, mas talvez seja interessante, para os programadores e diretores de televisão, ouvir o pouco, o muito pouco que eles têm a dizer. Já que o público, pelo visto, está dando o seu recado.

domingo, abril 08, 2007

Se eu fosse um teórico...

Há alguns momentos na minha vida, e este é um deles, em que eu gostaria sinceramente de ser um teórico. De ter a capacidade que alguns teóricos têm de traduzir em frases concisas algumas idéias e impressões que eu tenho e que insistem em não combinar bem com as palavras. De ser dotado de uma capacidade quase cirúrgica de traduzir a vida e os fatos. Sempre acho que, se tivesse estudado mais, em quantidade e afinco, talvez eu pudesse ter me transformado em um teórico. Mas a vida me jogou muito cedo nas redações dos jornais, ambiente em que raramente a pressa permite o exercício de uma escrita muito elaborada.

Há dois anos, durante um almoço no Festival de Teatro de Curitiba, a amiga Marici Salomão, respeitada no meio teatral por sua habilidade de transitar entre a produção artística e a análise desta própria produção, me deixou com o garfo parado entre o prato e a boca ao me dirigir a seguinte questão: "Roveri, você não tem medo de estudar mais? Não tem medo de adquirir um conhecimento teórico que, em vez de ajudar, pode vir a bloquear os seus escritos? Eu tenho", ela me confessou. Como toda boa lição, a gente precisa de algum tempo para assimilar. Se eu pudesse responder hoje para a Marici, eu diria: "Eu também tenho".

No entanto, hoje, exatamente hoje, é um daqueles dias em que eu gostaria de poder escravizar as palavras, de modo a obrigá-las a dizer exatamente aquilo que eu gostaria de dizer. Escrevo tudo isso ainda sob o impacto da estréia de A Noite do Aquário, peça de minha autoria dirigida por Sérgio Ferrara, em cartaz às sextas-feiras no Teatro dos Satyros Um. Na minha breve carreira de dramaturgo, tive o privilégio de trabalhar com diretores de inquestionável competência. Gente como Luiz Valcazaras, Ruy Cortez, Elias Andreato, Alberto Guzik, Ivam Cabral, Marcelo Mansfield, Paulo Autran, Gabriel Villela (estes dois últimos em leituras dramáticas) e agora com Ferrara. E, embora tenha aprendido a amar o resultado final que eles me apresentaram, não deixo de me perguntar: em que exato momento se opera o milagre de colocar em pé alguma coisa que, originalmente, nasceu deitada no papel? E quais os detalhes, as dificuldades e, principalmente, as opções que eles adotam neste complicado trabalho de parto? Que mistério é este, ou talvez fosse melhor dizer que sensibilidade é esta, que os induz a remover uma frase de um determinado lugar para colocá-la na íntegra, lá na frente, em um lugar novo para ela? E também para quem a escreveu. Que "escolhe de sofia" é esta que os obriga a, entre centenas de frases de um texto impresso, apontar aquelas que não são dignas de chegar ao palco? E, acima de tudo, que truque de ilusionismo os diretores empregam para que, ao final de um espetáculo, a gente se seduza por algo que deveríamos ter sido os primeiros a ver - e não fomos. Eu não os entendo: e talvez por isso os admire e respeite tanto. E nem quero conhecer os seus mistérios. Eu os prefiro assim, sacerdotes medievais que andam de ônibus, têm e-mail, tomam cerveja e jamais, jamais me revelam sua caixa de truques. Ainda que eu pedisse. Mas aprendi a não pedir.

É por isso que eu gostaria de ser um teórico. Se fosse, talvez eu entendesse melhor esta apropriação que os diretores fazem daquilo que escrevemos para nos devolver em forma de espetáculo vivo. Por outro lado, se fosse um teórico, um grande teórico, talvez não sentisse a indescritível surpresa que acompanha cada estréia, o peso na garganta e a vontade de chorar. E de sair por aí, feito um louco pela cidade, a distribuir rosas e charutos para os estranhos, anunciando que uma criança nasceu. Uma criança que talvez não venha a mudar o mundo e talvez nem seja lembrada daqui a algum tempo. Mas que já operou um pequeno milagre: concebida em papel, ela nasceu gente. A todos estes diretores, meu carinho e meu respeito eterno, pela paciência com que abriram as cortinas da minha casa, para que a luz e os convidados pudessem entrar.

Se eu fosse um teórico, talvez eu tivesse escrito isso de maneira muito mais clara e inteligível. Mas meus amigos, meus amigos queridos, sabem do que estou falando.

quinta-feira, abril 05, 2007

Você tem fome de quê?

A coluna do psicanalista Contardo Galligaris, publicada semanalmente na Folha, é uma das primeiras coisas que leio nas manhãs de quinta-feira. O que não quer dizer que eu concorde integralmente com suas opiniões, mas não consigo deixar de admirar suaa capacidade de apresentar argumentos muito convincentes na defesa, ou apenas na apresentação, de suas teses. Hoje ele escreveu sobre o rabino Henry Sobel, acusado de roubar quatro gravatas de grife em Palm Beach, na Flórida. Foi um artigo revelador por me chamar a atenção sobre uma coisa absolutamente óbvia, mas na qual eu não havia pensado: Sobel não precisa roubar gravatas, pois sua situação financeira deve ser confortável o bastante para que ele adquira mais gravatas do que seu pescoço seja capaz de suportar. Da mesma maneira que a atriz Winona Ryder, e da mesma maneira que o estilista Ronaldo Ésper, flagrado roubando vasos de concreto de um cemitério em São Paulo. Todos podiam pagar por aquilo que estavam roubando, explicou o psicanalista. Então, por que roubam? Porque querem, e sobre isso os psicanalistas adoram chafurdar, prejudicar a si próprios, sofrer, arranhar sua reputação até se revelarem, acima de tudo, como simples mortais.

Estas explicações cumprem um papel muito interessante. À medida que atraem a atenção da ciência os furtos migram do terreno da contravenção para o da psicanálise. Assim, quem pratica o roubo deixa de ser simplesmente um ladrão e passa a ser uma pessoa acometida de algum problema emocional normalmente grave. Não tenho nada contra essa explicação. Digo mais: acredito até que qualquer um de nós estejamos sujeitos a mais esta desordem emocional.

Mas, ao terminar de ler a coluna, não pude deixar de pensar em uma jovem mãe paupérrima que foi condenada a oito meses de prisão por roubar uma lata de manteiga Aviação na cidade de Jundiaí. Uma latinha de manteiga que, se não me engano, não custava mais do que R$ 3. Ao ser presa, ela alegou que seu filho, de dois anos, tinha amanhecido naquele dia com vontade de comer pão com manteiga. Só isso, pão com manteiga. Ele não queria passear no shopping, não ansiava por um novo brinquedo eletrônico, um play station, nada disso. Seu desejo, naquela triste manhã, era de ver sua boquinha lambusada em uma fatia de pão com manteiga. E por isso a mãe roubou a latinha, para aplacar a fome do filho, que na cabeça dela devia ser muito mais alarmante do que qualquer tese psicanalítica sobre o roubo. Ela terminou presa em flagrante e, depois de oito meses de cadeia, não havia aparecido colunista algum, psicanalista algum, cientista social algum para tentar explicar à sociedade o gesto desesperado daquele mãe. A ciência não está interessada em presentear com explicações aqueles que roubam por que têm fome. Talvez não seja um coisa tão glamourosa de lermos logo de manhã, enquanto tomamos café com pão com manteiga.

segunda-feira, abril 02, 2007

A noite do aquário


Esta é a primeira imagem de A Noite do Aquário, peça de minha autoria que integra o projeto E se Fez a Praça Roosevelt em 7 Dias. O projeto, embora eu seja suspeito para falar dele, é fantástico. Os Satyros convidaram sete autores (eu, Mário Viana, Alberto Guzik, Marici Salomão, João Silvério Trevisan, Jarbas Capusso e Mário Bortolotto) para escrever sete peças inspiradas na Praça Roosevelt, cada peça dedicada a um dia da semana. A mim coube a sexta-feira. Todas as peças já estão prontas e serão mostradas na sexta-feira santa, dia seis de abril, dentro de uma maratona teatral de 14 horas. Depois elas entram em cartaz, a partir de domingo, em temporada regular. Uma peça por dia, sempre às 19h.


A Noite do Aquário é um drama sem concessões. Uma história que eu tinha vontade de contar havia vários anos. E que, felizmente, eu não contei antes. Este projeto dos Satyros foi a melhor maternidade que a peça poderia ter. A história se passa em um lugarejo à beira-mar, esquecido no tempo. Todos ali vivem em função de um pequeno porto, que agora vai ser fechado. É um relato dolorido sobre uma mãe (Clara Carvalho, genial como sempre) e seus dois filhos, José, vivido com impressionante distanciamento por Germano Pereira, e Pedro, a quem o jovem Chico Carvalho presenteou com uma bondade comovente. A direção é de Sérgio Ferrara, diretor talentoso com quem eu queria trabalhar desde que comecei a escrever para teatro. Clara, Germano e Chico sempre foram, e eu não sou bobo, atores em que eu prestei muita atenção. Aqueles nomes que você guarda na manga e diz para si mesmo: um dia, vou tomar coragem e mostrar um texto meu para eles. Nem precisei fazer isso: Serginho Ferrara saiu na frente e eles toparam o trabalho.


Mas qual a ligação entre eles e a Praça Roosevelt? A sinopse da peça pode ajudar a explicar. Um dia, o marido da personagem de Clara a troca por outra mulher e vem tentar a vida em São Paulo. Consegue um emprego de eletricista na construção do Edifício Copan. Escreve ao filho mais novo para contar sobre São Paulo. Ao ler a carta, a mãe resolve vir para São Paulo, em busca do marido. Não o encontra, e termina desconsolada na Praça Roosevelt. É noite de sexta-feira e a solidão da mãe é interrompida por uma série de aplausos frenéticos dirigidos a uma jovem cantora que se apresenta na Praça Roosevelt pela primeira vez: Elis Regina. Ou melhor, Elis Regina antes de se tornar aquela Elis Regina que ninguém consegue esquecer. Esta é parte da história, há mais, muito mais a ser dito. Mas aqui não é lugar para isso. A Noite do Aquário poderá ser vista todas as sextas, às 19h, no Satyros. Um grande amigo, depois de ler o texto, disse que é uma história sobre coisas sem saída. Acho que não. Eu prefiro achar que é uma história sobre a passagem do tempo - algo que não podemos controlar e que nem sempre joga ao nosso favor. Mas há tanta ternura embutida no drama daquela pequena família que talvez haja saída para todos. Espero que sim.