quarta-feira, julho 29, 2009

O botox do mendigo

Numa dessas tardes de chuva – poderia ser qualquer tarde, já que a chuva não dá trégua – eu estava esperando um táxi na Rua Bela Cintra, perto da Consolação, quando me lembrei de um fato que ocorreu ali, na mesma esquina, há alguns anos.

Na ocasião, eu também estava tentando pegar um táxi, muito atrasado para um compromisso no centro, mas era uma dessas tardes quentes e abafadas, dessas que fazem a nossa irritação aumentar muito. Quando vejo, um morador de rua está se aproximando de mim. Antes que ele me dissesse qualquer coisa, eu já me antecipei.

- Hoje eu não tenho nada, estou sem troco.

Ele endureceu a expressão, me mediu de alto a baixo e retrucou:

- Eu pedi alguma coisa?

Fiquei sem jeito e me desculpei, dizendo que imaginei que ele fosse me pedir algum trocado. Ele me respondeu que não iria pedir nada, que tinha atravessado a rua apenas para me dizer que eu não deveria andar com a cara tão amarrada. Que aquela expressão sisuda (ele deve ter usado outro termo) me envelhecia muito.

- Posso chutar quantos anos o senhor tem? – ele me perguntou.

Disse que poderia. Ele chutou e acertou em cheio. O que é raro, porque – ainda bem – as pessoas costumam me dar um pouquinho menos de idade. Por enquanto.

- Mas com esta cara que o senhor estava fazendo, qualquer um daria pelo menos dez anos a mais pro senhor. O senhor precisa relaxar um pouco.

Durante esta breve conversa, vários táxis passaram, vazios, mas eu estava interessado em ouvir o que mais aquele homem descalço e com o corpo envolto por um cobertor vermelho e surrado tinha a me dizer.

- Eu sou dez anos mais jovem que o senhor – ele me disse. – Mas olhe para mim. Todo mundo vai dizer que eu pareço mais velho. E eu pareço mesmo bem mais velho que o senhor. Eu não tenho dentes, não me cuido e vivo bêbado o dia inteiro. Eu posso parecer mais velho, no meu caso já está tudo perdido mesmo. Mas o senhor não precisa parecer mais velho. O senhor pode mudar esta cara.

Fiquei um tempo em silêncio, olhando para ele e procurando que palavras usar para dizer o quanto ele estava certo. Tristemente certo. Mas não precisei pensar muito.

- Bom, naquela hora eu não pedi, mas agora eu peço – ele falou. O senhor tem um real aí pra me arranjar? E vou gastar com pinga, sim.

Abri a carteira e dei bem mais do que ele me pediu. “Nossa, hoje eu vou tomar vodca”, ele falou. Entrei no táxi e fui feliz para o meu compromisso, enquanto sua imagem se perdia no retrovisor, no meio de gente tão apressada e carrancuda como eu estava até cinco minutos atrás.

Naquela tarde, ele merecia um brinde. E eu também.

domingo, julho 26, 2009

Três coisinhas

Item 1.

Por absoluta falta de espaço, a revista Serafina deste domingo, dia 26, não pôde publicar uma frase que eu julgava essencial na matéria de capa sobre o Antunes Filho. Sei que este blog é infinitamente menos lido que a revista, mesmo assim, queria compartilhar a frase com vocês. Principalmente com os amigos do teatro. Ao ser perguntado sobre como ele via a crítica atualmente, Antunes disse o seguinte:

“A pior coisa que existe é a crítica amiga. Se um ator não está bem em determinado trabalho e o crítico amigo diz que ele está, o crítico está jogando este amigo no abismo. Por isso, eu peço encarecidamente aos críticos: deem uma chance aos seus amigos. Parem de falar bem deles”

Item 2.

No sábado, tentei ver o filme Inimigos Públicos, do diretor Michael Mann, em que Johnny Depp interpreta um lendário ladrão de bancos. Não consegui, estava tudo lotado. Então resolvi ver Lóki, o tocante documentário sobre a trajetória do ex-mutante Arnaldo Baptista. E saí de Lóki com a mesma sensação que tive ao ver Ninguém Sabe o Duro que eu Dei, sobre a vida conturbada de Wilson Simonal. Os dois documentários foram feitos, obviamente, mais sob o olhar da admiração. Mas o que me incomodou nos dois casos não foi isso. Saí incomodado com todos os depoimentos que colocaram tanto Simonal quanto Baptista nas nuvens, com todas aquelas frases de efeito que procuravam ressaltar o tamanho do talento, a genialidade às vezes incompreendida e depois o ostracismo dos dois músicos que, coincidentemente, passaram mais de duas décadas esquecidos dos amigos, do público e das gravadoras. Então eu faço aqui a pergunta que os documentários não fizeram: onde estavam, durante aqueles vinte anos, todas estas pessoas que agora correm diante das câmeras para falar bem dos seus queridos amigos injustiçados. Pode parecer estranho, mas a sensação que fica é que ninguém que agora corre para exaltar o Simonal e o Arnaldo Baptista estavam por perto quando eles realmente precisaram. Depois, diante das câmeras, é fácil elogiar, né? Segurar o ombro do amigo nas horas difíceis é que não tem glamour nenhum.

Item 3.

É claro que a gente observa bem os amigos. E, por mais queridos que eles sejam, não são todas as atitudes e comportamentos deles que a gente aprova – o que é muito saudável. Imagine que chatice seria se os nossos amigos fossem absolutamente perfeitos aos nossos olhos e se nós também parecêssemos perfeitos aos olhos deles. Ninguém aprenderia nada nunca – tudo já estaria pronto e seria um tédio só. O que me deixa um pouquinho preocupado às vezes é que eu acho que vira e mexe eu reproduzo tudo aquilo que me incomoda e chateia nos amigos. Ou seja: eu me vejo fazendo com o amigo “x” tudo aquilo que o amigo “y” fez comigo e eu não curti muito. Será que a gente não consegue reproduzir só aquilo que a gente gosta? Tem de imitar também o que é chato? Ô, saco.

quarta-feira, julho 22, 2009

Rachaduras

Eu admiro as pessoas fortes e decididas, aquelas que diante dos desafios tomam rapidamente a decisão que lhes parece a mais acertada e depois seguem resolutas por este caminho, aparentemente sem pensar em como teriam sido todos os outros. Eu gosto dos desafios e também clamo por eles – mas, quando eles finalmente surgem à minha frente, tenho vontade de me enfiar debaixo dos cobertores e pedir para que alguém de confiança decida por mim. E que só me chame quando tudo estiver definido. De preferência, da maneira mais prazerosa possível.

Um dia, há muito tempo, uma astróloga (que era também médica homeopata formada por uma faculdade conceituadíssima) me revelou que eu não tenho quase nada do elemento água no meu mapa astral. Segundo ela, minha carta astral é uma imagem tão ressequida quanto a superfície da Lua. Daí minha dificuldade em me renovar, em “me limpar” – usando as palavras delas – em lavar as mágoas passadas e seguir renovado rumo ao futuro. Eu sei que, nestes assuntos, a gente só acredita naquilo que é interessante. Mas infelizmente eu acredito nisso.

Não sei se por ausência de água ou excesso de sapatos empoeirados, o certo é que as mudanças me amedrontam, ainda que elas venham para por fim a uma situação da qual eu já andava exaurido. Talvez seja masoquismo pensar que o estresse conhecido seja preferível ao desafio do acaso, mas às vezes é assim que eu penso. Um dos personagens da peça A Noite do Aquário, que escrevi há três anos, diz mais ou menos o seguinte: “Se nós não vamos mudar mesmo, por que sair daqui? Dá menos trabalho”. Não que eu concorde com ele, mas é assim que eu ajo.

Neste exato momento estou sendo chamado a tomar uma série de decisões, a assumir uma série de novos desafios. São coisas pelas quais eu ansiei durante muito tempo – e pelas quais trabalhei às vezes arduamente. E então elas chegam e me dão medo. Elas chegam e, no meu íntimo, algo me diz que, no fundo, talvez eu não esperasse realmente pela chegada delas. E sinto vontade de me enfiar novamente debaixo dos cobertores e pedir para que me chamem só em novembro ou dezembro, quando tudo deve estar mais ou menos resolvido.

Charles Darwin levou uma vida inteira para defender a tese de que nós viemos dos macacos – eu aprecio Darwin desde sempre, mas sinto que no meu caso ele errou. Às vezes eu acho que vim do avestruz – em vez de descer das árvores e criar computadores e sinfonia, acredito que descendo de nobres exemplares que, na hora do vamos ver, enfiavam o pescoço no primeiro buraco que aparecesse. Para variar, num buraco seco, na terra, cada vez mais em direção à aridez, ao desidratado e escuro centro da terra. Longe da água que lava e purifica, longe da água que vai poder apagar até meus erros futuros.

Será este o meu destino?

quarta-feira, julho 15, 2009

A homeopatia da saudade

Nós não somos exatamente amigos. Sei que temos um carinho grande um pelo outro, mas não cultivamos a convivência que costuma ser a base das grandes amizades. Nos encontramos, quase sempre por acaso, no cinema, no teatro ou em alguma exposição. Nestas ocasiões, sempre nos cumprimentamos com carinho, perguntamos como anda a vida, nos brindamos com um beijo rápido e então cada um segue à procura do seu assento. Mas há algumas semanas, quando nos vimos pela última vez, foi um pouco diferente. Ela resolveu falar sobre a saudade do companheiro que perdeu no ano passado. Foi uma conversa que não se estendeu por mais de dez minutos, mas sinto que depois dela talvez nossos encontros nunca mais sejam iguais: não é para todo mundo que revelamos as nossas dores.

Ela me disse que estava vivendo o que, em sua logística muito particular, poderia ser definida como a terceira fase do luto – ou da saudade, que embora seja tão dolorida quanto o luto, ao menos é uma palavra mais poética. O primeiro momento da perda, ela me revelou, e vejam só que estranho, foi percebido mais pelo ouvido do que pela alma. De repente, ela me disse, era como se ela estivesse dentro de um túnel, um submarino ou uma câmara onde todos os sons chegavam distorcidos. Era o estranhamento do impacto, aquele momento em que o cérebro recusa-se a processar o que se ouve e por isso mesmo todas as vozes soam estranhas. E ainda que todas elas afirmassem a mesma coisa – ele se foi! – o cérebro distorcia o som, mascarava o significado das palavras, para que a mensagem não fosse compreendida em toda sua tragédia e dimensão. É uma fase que dura muito pouco, segundo ela. Não mais que alguns minutos. Depois disso, você precisa agir.

E então vem a segunda etapa, em que a dor transmuta-se em algo prático: há muito a ser feito. Pessoas têm de ser avisadas, papéis precisam ser assinados e os olhos devem estar secos para que a vida não se revele embaralhada até nos documentos, os braços devem estar abertos e aptos para as condolências, o juízo deve estar minimamente em ordem, para que as pessoas não pensem que você já enlouqueceu diante da solidão que se revela, talvez um sorriso seja necessário, para deixar claro que a perda já era esperada e que você estava desde sempre pronta. E, depois do adeus físico, começam as despedidas burocráticas: a conta no banco é fechada, os advogados começam a esmiuçar o espólio, correspondências precisam ser abertas – é um longo ritual em que o nome da pessoa começa a ser apagado de um certo tipo de história oficial.
Quando tudo isso está concluído – e no caso dela foi necessário quase um ano – chega a hora de se haver com a saudade em seu estado bruto. Tudo que precisava ser feito já o foi, agora todo o tempo pode ser consumido em lembranças – ou não. No caso dela, foi.

Então ela percebeu que a saudade é um sentimento que exige atenção e certos rituais. A saudade exige alimento. Uma ração diária não de dor, mas da falta. A saudade se alimenta daquilo que não temos mais para dar. Ouvi, então, a parte mais dolorida do seu breve relato. Ela me disse que começou a buscar nos outros aquilo que havia lhe sido roubado pela morte do companheiro. No olhar dos outros ela buscava o brilho dos olhos do marido que se fora. Ela buscava encontrar o mesmo tipo de humor, a mesma inteligência mordaz, a mesma observação cúmplice que denunciava anos de convivência, o mesmo retorno, o mesmo eco, a mesma comunicação sem palavras.

E então ela percebeu o quanto isto era cruel, com ela e com os outros. Ninguém conseguiria substituir aquilo que ela havia perdido – e nestas horas ela entendia que o que havia perdido era algo único, que jamais seria encontrado nos que haviam ficado, por mais que ela os amasse. E por mais que fosse amada por eles.

E foi neste ponto que nossa conversa terminou. Um pouco porque a peça que iríamos ver estava para começar, um pouco porque as lágrimas começavam a embaçar seus olhos. Desconfio que esta terceira fase da saudade ainda lhe consuma incontáveis dias, embora eu torça pelo contrário. Eu tive vontade de dizer algo inteligente e proveitoso, mas não consegui. Tive vontade, também, de dizer que se houvesse algo que eu pudesse fazer, eu não me furtaria. Mas nós dois, eu e ela, sabíamos que nada pode ser feito nestas horas. Um dia, esta dor e esta falta que ela sente agora vão ser encobertas pela fumaça do tempo. Mas eu sei, e ela também sabe, que muitos dias e noites se passarão, outras pessoas entrarão na vida dela e ela encontrará inúmeros motivos para sorrir, mas seus olhos, talvez contrariando seu desejo, vão continuar perseguindo nos outros o brilho dos olhos do amado que se foi. E não haverá nenhuma morbidez nesta hora: será apenas o amor, revelando mais uma vez que diante dele a morte não passa de uma piada.

domingo, julho 12, 2009

O toque final

Na quinta-feira à noite eu acompanhei, pela televisão, ao belíssimo concerto em comemoração aos dez anos da criação da Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Estava em companhia de José Roberto Jardim, grande ator e amigo maior ainda, que tocou num assunto sobre o qual eu também já havia pensado várias vezes. Ele desejava saber como se sentia aquele músico que, lá no fundo do palco, executava seu ofício somente no último minuto da sinfonia, fazendo vibrar aqueles imensos pratos metálicos ou batendo sem dó as baquetas sobre o couro esticado dos gigantescos bumbos, extraindo assim um som seco e grave como um trovão. Descobri, depois, que não se deve chamar aqueles instrumentos de bumbos - os músicos se referem a eles como tímpanos. Esses músicos ficam duas horas ali, me disse o Zé, observando atentos ao trabalho ininterrupto dos violinos, violocenlos e flautas, à espera de entrar em cena naqueles instantes em que a plateia já está quase pronta para aplaudir e sair da sala. O que eles devem pensar ao longo de toda sinfonia, ele me perguntou.

Pois bem, por uma dessas coincidências, no sábado assisti a uma entrevista do jornalista americano Gay Talese, famoso pelos perfis que publica há mais de 40 anos na imprensa americana. No meio da entrevista, Talese disse que, se fosse convidado a fazer o perfil de algum músico de uma grande orquestra, jamais escolheria o maestro, o spala, os sopranos ou os flautistas. Ele escolheria falar justamente daquele músico que parece trabalhar por apenas um minuto, levantando-se no fundo da orquestra como a dizer que a sinfonia terminou. Talese disse que ficaria ao lado deste músico, quieto, observando seus movimentos e, se fosse possível, tentando adivinhar seus pensamentos no meio daquela imensa massa sonora. Ou seja, tentando adivinhar com o que ele se ocupa enquanto todos ao seu lado já estão trabalhando há um tempão.

Gostei da coincidência, mas gostei ainda mais de algo que o jornalista disse pouco antes de terminar o programa também. É para se pensar muito a respeito, muito mesmo. Aqui vai:

"O mais importante na vida não são as respostas que temos, mas sim aquilo que nem sabemos como perguntar".

quinta-feira, julho 09, 2009

Trechos

Duas visões do amor para se pensar no fim de semana. Nenhuma foi escrita por mim, mas copiei direitinho. Espero que gostem.


"Sua incorrigível tendência ao exagero se refletia também na questão do amor, pois o que é amar com uma estranha profundidade, silenciosamente, sem ser correspondido, senão amar exageradamente? Exagerava em tudo. E enquanto eu me dizia tudo isso, me perguntei se os que amam dessa forma não são os que pensam que o amor é o essencial e veem no sexo apenas um acidente. Para mim, Fernando estava apaixonado pela ideia do amor e conhecia, portanto, a única fórmula para que ele durasse toda uma vida"

(Do conto Os Amores Que Duram Por Toda Uma Vida, presente no livro Suicídios Exemplares, do escritor espanhol Enrique Vila-Matas)


"Você tem que ser maior que os seus sentimentos. Não sou eu que exijo isso de você, é a vida que exige. Se não, você vai ser levado de roldão pelos seus sentimentos. Eles te levarão até o mar e você não será mais visto. Os sentimentos podem ser o maior problema da vida. Os sentimentos podem nos pregar peças terríveis. Eles me pregaram uma peça (...) agora já lidei com estes sentimentos. Me promete que você vai lidar com os seus"

(Do romance Indignação, de Philip Roth, com certeza um dos melhores livros do ano)

terça-feira, julho 07, 2009

Bola de cristal

Muita coisa para fazer e eu passo praticamente a tarde toda diante da televisão, acompanhando hipnotizado o funeral de Michael Jackson. Fui um entre milhões, acredito. Muitos amigos estavam fazendo o mesmo – e comentavam comigo os discursos e os números musicais por meio de torpedos. Fiquei pensando se havia algo de mórbido em assistir a um programa de televisão em que a metade inferior da tela era ocupada por um caixão. Claro que não estávamos diante de um morto qualquer, mas ainda assim cheguei a me estranhar: quase três horas com os olhos pregados em um programa em que se homenageava alguém que se foi há quase duas semanas – um prazo mais que suficiente, na atual velocidade do mundo, para que qualquer tragédia seja assimilada e esquecida. E ainda assim ainda estávamos ali.

Seria o poder da música de Michael Jackson? Seria o encanto dos seus passos inigualáveis? Seria a última parte de um show de aberrações do qual ele foi protagonista durante os últimos anos? Ou seria apenas a observação curiosa de uma dor que, em último caso, não precisa ser necessariamente a nossa? Ou seria apenas a nossa perplexidade ancestral diante da morte – que por fim irá igualar o mais desafinado entre nós, o mais perna-de-pau entre nós, a um gigante como Michael Jackson? Será que, ao observarmos aquele luxuoso caixão diante do gigantesco palco do Staples Center, em Los Angeles, não pensávamos que, a única certeza que ainda temos, é a de que um dia iremos compartilhar da mesma imobilidade na qual Michael Jackson mergulhou – sem tanta pompa, é claro. Um dia, enfim, seremos todos iguais: mudos e imóveis. Será que é isso?

Por mais bizarro que possa parecer, quando a cerimônia terminou eu estava com uma vontade imensa de procurar uma cartomante. Há muitos anos que não procuro uma. Não acredito em quase nada do que elas falam, mas as cartomantes ainda são as únicas a dizer que, com um pouco de cautela, perseverança e cuidado com as pessoas invejosas, todos os nossos planos podem dar certo. E ouvir isso é melhor que tomar Prozac. Para as cartomantes, a pessoa que irá mudar a nossa vida já está a caminho, talvez já tenha até chegado, a gente é que ainda não se deu conta. Se, estranhamente, a tal pessoa ainda não chegou, devemos ficar atentos, porque de setembro não passa. E depois vemos passar setembro, outubro e todos os meses seguintes sem que nada de excepcional tenha ocorrido. E então pensamos que talvez seja setembro do ano que vem – e nos animamos de novo. Isso o Prozac não consegue.

E depois elas detectam uma movimentação atípica na nossa vida profissional. Elas enxergam convites irrecusáveis e entrada de dinheiro. Mas novamente nos recomendam cautela, porque alguém em quem confiamos muito pode querer nos passar a perna. Com a saúde também está tudo bem – talvez um pouco de pressão alta e estresse. Por isso nos recomendam descanso e cuidado na alimentação. Por fim, elas nos abrem um sorriso e terminam a consulta assegurando que tudo está conspirando ao nosso favor. Depende unicamente de como iremos aproveitar a chance. Damos uma nota de R$ 50 para elas e saímos felizes de suas salinhas apertadas, coloridas e com cheiro de incenso. Por um ou dois dias, ficaremos ansiosos como quem espera um presente de Natal.

Daí a rotina nos empurra para o trabalho e todos os demais compromissos. No fim de semana seguinte, já teremos nos esquecido da cartomante e de todo otimismo contido em suas previsões. Talvez só nos lembremos de uma única coisa: a de que temos um futuro. Talvez por isso, depois do funeral do Michael Jackson, eu tive tanta vontade de procurar uma cartomante.

sexta-feira, julho 03, 2009

Assim e não assado

Um articulista do jornal Folha de S. Paulo escreveu esta semana um artigo muito curioso sobre como a medicina, mais especificamente a psiquiatria, resolveu tratar como doença, ou síndrome, o que até algum tempo atrás não passava apenas de comportamentos específicos. Assim, práticas como assaltar a geladeira à noite, colecionar coisas antigas, ter dificuldade em se desfazer de papéis sem importância, ser tímido ou expansivo já são assuntos para consultórios médicos – em alguns casos, até com necessidade de medicamento. Pode-se concluir, ao final do artigo, que qualquer comportamento que nos desvie um pouco do que seria o grande consenso social já pode ser curado, reprimido ou adaptado. Em pouco tempo, graças à lábia dos psiquiatras e a prescrição de novas drogas, todas as nossas arestas seriam aparadas – e a sociedade seria composta de pessoas insuportavelmente parecidas. Ou não.

Pensando nisso eu resolvi, mais uma vez, escrever sobre assuntos que eu não domino. E sobre os quais eu deveria manter uma prudente distância – mas a vontade de falar novamente venceu. O artigo, que poderia suscitar uma onda de preocupação e desânimo, me deixou feliz. Feliz por acreditar que nem todos enxergam esta questão pelo mesmo ângulo do articulista e, principalmente, por acreditar que existem pessoas que jogam todas as suas fichas na valorização das diferenças e na obtenção do prazer por meio delas.

Já revelei aqui que faço terapia há muitos anos e se tivesse de resumir em poucas palavras o que me empurrou para o divã diria que foi justamente a vontade de desaparecer na multidão, de conduzir os meus desejos e anseios na direção das grandes massas, de implodir em mim tudo aquilo que, a princípio, me distanciava da grande conduta social que ensina que crescemos para casar, ter filhos, conservar num emprego fixo, buscar algum tipo de prosperidade e segurança na vida profissional, engolir a rotina em doses diárias e assegurar-se de que a velhice jamais nos encontrará desprevenidos.

Tente fazer de mim uma outra pessoa, talvez eu tenha dito ao meu analista em nosso primeiro encontro. Ou, na medida do possível, faça de mim alguém muito parecido com todo mundo, inclusive na infelicidade. Me enquadre, eu devo ter solicitado. Diante de um pedido tão impositivo, percebo hoje que meu terapeuta precisou de muito tempo e de muito jogo de cintura para me desobedecer sem que eu me desse conta. Precisou de muito tempo para me mostrar que eu só teria algum valor se aprendesse a cultivar tudo aquilo em que eu queria dar fim. Que eu só seria reconhecido como pessoa, principalmente por mim mesmo, se eu percebesse que a diferença que tanto me incomodava era a minha digital neste mundo. Que aquilo que me fazia distinto, e por isso mesmo desconfortável em algumas situações e deslocado na maioria delas, era o que precisava ser cuidadosamente lapidado para se converter em fonte de prazer e alegria. E que se meu desejo às vezes resolvia cortar caminho por algum atalho escuro, que ótimo: era ali que eu seria apresentado à surpresa e ao acaso da vida.

Ser o que somos é algo que vamos aprendendo aos poucos. Não costuma ser fácil e muito menos indolor. Mas a alternativa a isso pode ser ainda pior: é a gente se transformar numa fotografia desfocada e arruinada pelo tempo, cujas feições não serão reconhecidas nem por nós mesmos daqui a pouco. E, para encerrar, existe coisa mais prazerosa do que assaltar a geladeira de madrugada, ainda que seja de vez em quando?