domingo, maio 15, 2011

Segundo tempo

Comecei muito tarde na ficção. Somente no final de 2001 escrevi meu primeiro texto não jornalístico. Até então, produzir matérias para jornais e revistas já me mantinha satisfeito e apaziguado com o teclado. Este primeiro texto se chamava O Fantasma de Nova York – um pequeno conto, três páginas apenas, sobre um homem de 30 e poucos anos que trabalhava em uma das Torres Gêmeas. Em 11 de setembro, dia dos atentados, ele decidira saltar do metrô duas estações antes da habitual para fazer a pé o resto do trajeto. Estava na rua, a algumas quadras do trabalho, quando viu o primeiro avião se chocar contra uma das torres. Ficou ali até o segundo choque e a consequente queda dos edifícios. Em meio a tanta dor, ele interpretou a tragédia como um renascimento. Se tivesse feito seu percurso habitual, estaria morto naquele momento. Ao nascer de novo, naquela manhã de terça-feira, resolveu sepultar a vida anterior: abandonou os pais e a mulher, tomou um ônibus interestadual e foi tentar uma nova vida em algum recanto esquecido dos Estados Unidos. Ao voltar, três anos depois, encontrou, no antigo flat em que morava, um atestado de óbito em seu nome, expedido pela prefeitura de Nova York.

O objeto deste conto sempre foi uma das minhas obsessões. Desde adolescente que eu sonho com a possibilidade de ser outra pessoa em outro lugar, uma espécie de segundo tempo da vida, um jogo com novas regras e novos participantes. Não sei se teria coragem de algum dia me zerar desta maneira, mas ontem, ao ler uma das obras-primas do escritor Arthur Schnitzler, Breve Romance de Sonho, o livro que serviu de inspiração para Stanley Kubrick fazer seu último filme, De Olhos Bem Fechados, constatei, talvez um pouco aliviado, de que estou longe de ser o único a me ocupar com tais devaneios.

Transcrevo aqui um trecho do romance em que o personagem principal, o médico Fridolin, também flerta com a ideia de que uma nova vida, em outras paisagens e rodeado de estranhos, pode ser possível:

“Sentia uma leve pena de si mesmo. Apenas de passagem, não como um propósito qualquer, veio-lhe a ideia de dirigir-se a uma estação ferroviária, tomar um trem para onde quer que fosse, desaparecer para todos os que o conheciam, ressurgindo em algum lugar no estrangeiro para começar uma vida nova como outra pessoa, um novo ser humano. Lembrou-se de certos casos notáveis que conhecia dos livros de psiquiatria, aqueles das assim chamadas existências duplas: de repente, um homem desaparece, deixando para trás uma vida bastante ordenada, some, retorna meses ou anos mais tarde, não se lembra de onde esteve ao longo desse tempo, mas, depois, é reconhecido por alguém que o havia encontrado em alguma parte de um país distante, sem que ele próprio se lembre de coisa alguma. Decerto, tais coisas aconteciam raramente, contudo, ainda assim, eram casos comprovados”.

Quem sabe um dia... somente trocando o trem por um avião. Me parece mais contemporâneo.

segunda-feira, maio 02, 2011

Zé Renato

No segundo semestre de 2003, tive o prazer de participar, durante dois meses, de uma oficina de direção teatral ministrada pelo querido e já saudoso Zé Renato na Faap. Não é o caso de me estender aqui sobre o muito que aprendi nesta breve convivência com ele e nem do quanto passei a gostar e respeitar ainda mais o homem e o profissional de teatro. Amigos que tiveram a chance de conviver mais com ele poderão falar sobre seu talento e sua extrema generosidade com muito mais propriedade que eu. Tomo a liberdade de falar de Zé Renato apenas para recordar de uma historinha linda e emocionante que ele nos contou numa das tardes daquele ano.

O fato se deu em 1964, alguns meses depois do golpe militar. Zé Renato estava no Rio, selecionando o elenco para uma montagem da Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht. Ele não conseguia encontrar uma jovem cantora para um dos papéis de destaque da peça. Havia testado várias, sem se entusiasmar particularmente com nenhuma delas. Se não me engano, era o único personagem para o qual Zé Renato ainda não havia encontrado um intérprete – o que estaria atrasando o início dos ensaios. Até que um dia, quando ele já se encontrava à beira do desespero, apareceu uma atriz magrinha e tímida, chamada Marília Pêra, que acabou levando o papel.

No dia seguinte, quando o elenco da peça já estava completo, o comediante Ary Toledo procurou Zé Renato para dizer que havia encontrado a garota perfeita para o papel. Zé Renato agradeceu dizendo que, desde a tarde anterior, o papel já tinha dono. Ary Toledo não se conformou. Insistiu para que Zé Renato ao menos ouvisse a garota, ainda que fosse por uma questão de educação. Meio a contragosto e irritado por perder um precioso tempo de ensaio, Zé Renato foi ouvir a tal garota cantar.

“Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida e até hoje me recordo de cada palavra que aquela menina cantou só para mim”, contaria Zé Renato diante dos aprendizes inebriados da sua oficina de direção.

A tal garota que com muito custo ele foi ouvir tinha 18 anos, havia acabado de chegar de Porto Alegre e se chamava Elis Regina.

quarta-feira, abril 20, 2011

A Maria Callas na cadeira da cozinha

Não são os terremotos, os tsunamis ou o derretimento da calota polar que me fazem acreditar que deve haver algo de errado com o clima. O que me leva a pensar que alguma coisa está mudando na natureza é ver que até na Sexta-Feira Santa agora faz calor. E até onde minha memória me permite viajar, eu garanto que não era mesmo assim. Desde quando aquelas sextas-feiras frias e tristes da minha infância, quando não havia nada mais animado a fazer além de esperar pela procissão que passava na frente de casa, deram lugar a praias com sol e tempo bom? Este sim, para mim, é um dos mistérios da fé. Naqueles dias santos, havia uma melancolia e um inexplicável temor diante da morte que, penso eu agora, estavam intimamente ligados às nuvens cinzentas que cobriam o céu da minha cidade. Era um convite natural à tristeza que, felizmente, parece que abandonamos.

Me lembro de minha mãe dizendo que, em seus tantos anos de vida, nunca ter visto uma Sexta-Feira Santa ensolarada. Para ela, talvez, a natureza em si fosse uma católica praticante que recolhesse parte do seu brilho em respeito ao deus morto. Meu pai não se barbeava naquele dia e nós, crianças, deveríamos ficar longe da tevê e do rádio. Tínhamos reforçada a recomendação de, especificamente naquele dia, não brigar na rua e nem dizer palavrões, ao menos em voz alta. Era proibido rir alto, correr ou jogar bola no campinho esburacado. Acho que era proibido ser muito feliz também.

Diante de tantas restrições, talvez eu me obrigasse a encontrar algum encantamento naquele dia, alguma brechinha para me extasiar no meio de um ritual de cores escuras, velas mal-cheirosas e estátuas de semblantes doloridos e machucados. Encontrei o tal encantamento numa misteriosa figura feminina. Ela tinha o rosto coberto por véu e um pano amarelado nas mãos que, mais tarde vim a saber, trazia a imagem da face de Jesus. Para mim, aquela mulher, chamada Verônica, era o que havia de mais misterioso e fascinante na Procissão do Senhor Morto.

Ao longo do percurso da procissão, todos paravam, se não me engano nove vezes, para ouvi-la cantar. Uma dessas paradas se dava bem em frente ao portão da minha casa. Quando a procissão se aproximava, minha mãe arrastava para a calçada uma cadeira que em pouco tempo iria se converter num minúsculo palco sobre o qual Verônica soltaria sua voz fina, dolorida e potente, enquanto desenrolava o pano amarelado com a imagem do rosto do Cristo martirizado. O que ela está cantando, eu perguntava para quem estivesse mais perto. Devia ser algo em latim, já que ninguém nunca me respondeu satisfatoriamente. O canto da Verônica era o acontecimento mais aguardado de um dia em que nada mais deveria acontecer. Com o tempo, aquela mulher que eu ingenuamente acreditava ganhar vida só no dia da procissão, deu um toque de Natal para a minha Sexta-Feira Santa. Ela era uma espécie de Papai Noel entristecido que trazia um único presente: a voz misteriosa e incompreensível que fazia uma serenata pungente na frente da minha janela.

E durante anos eu aguardava a procissão da Sexta-Feira Santa, na certeza de que, num milagre tão potente quanto o da ressurreição de Cristo, Verônica voltaria para a vida bem em cima da cadeira da nossa cozinha. E então, numa tarde, enquanto acompanhava minha mãe até uma loja recém-aberta no bairro, passamos na frente de uma casa simples, com jardinzinho ressecado e duas janelas azuis cravadas numa parede que havia sido branca algum dia. “É aqui que mora a Verônica”, minha mãe disse, sem nem sequer diminuir o passo. Gelei. “Que Verônica?”, eu perguntei, talvez já com medo da resposta. “A que canta na procissão. Ela mora aí com os dois filhos”. A vida, então, era só isso: a Maria Callas da minha infância morava no mesmo bairro e tomava conta de dois filhos numa casinha modesta. Talvez até trabalhasse fora, mas nisso eu nunca quis pensar.

Quem sabe tenha sido naquele momento, em que a magia se desfez de forma tão impiedosa, que o sol começou a raiar também na Sexta-Feira Santa.

segunda-feira, abril 18, 2011

E se...

Dia desses, durante um café com um amigo, falávamos sobre a inutilidade de imaginar a vida que poderíamos ter tido, em comparação com a vida que efetivamente temos hoje. Falamos sobre como parecia improdutível, talvez até cruel, nos debruçarmos sobre todos os “se” que deixamos para trás. Discorremos sobre onde estaríamos agora se tivéssemos feito determinada coisa no lugar da outra que realmente fizemos e que nos trouxe até aqui. É um tipo de conversa que eu gosto de ter, embora pareça, à primeira vista, um grande exercício sobre o vazio e mesmo sobre um provável arrependimento – já que a única vida que conhecemos é esta que temos, aqui e agora, e que resultou de todas as decisões que tomamos e de uma gigantesca contribuição do acaso. Ainda assim, não evito pensar em como as coisas poderiam ter sido diferentes se eu tivesse pego, lá atrás, o caminho que dobrava à direita e não aquele que me conduziu para a esquerda (nenhuma conotação política neste caso).

Eu gostaria de ser um tipo de pessoa que, decisão tomada, página virada. Não consigo. Levo muito tempo para me decidir sobre alguma coisa (na maioria das vezes, adoraria ter alguém que tomasse as decisões acertadas por mim – só as acertadas, porque das outras eu mesmo me encarrego) e mesmo assim, depois de decidir, perco noites de sono pensando em como seriam as coisas se eu tivesse tomado a opção diferente, se tivesse escolhido a alternativa que eu a duras penas descartei. Garanto que é uma bela maneira de fazer a vida empacar e me considero quase expert nisso. Uma vez, fiz meu mapa astral com uma astróloga chinesa que atendia no Conjunto Nacional. Ela disse que não havia quase nada do elemento água em meu mapa – daí minha dificuldade em “lavar as mágoas” e deixar o passado lá atrás, que é o lugar dele. Ela me recomendou fazer natação. Fiz três aulas e parei. Continuo árido e apegado ao que fiz – e também e cada vez mais, ao que deixei de fazer.

Aos 19 anos, recém-saído do Exército, não sabia que rumo tomar na vida. Fiz um ano de cursinho e prestei vestibular para duas carreiras, medicina e jornalismo. Entrei em jornalismo e fiquei na lista de espera para medicina, com apenas nove candidatos na minha frente. A secretaria da faculdade acreditava que eu seria chamado – mas não rolou. E passei os dois primeiros anos da faculdade de jornalismo lamentando profundamente estar ali. Todo dia eu pensava em trancar a matrícula, voltar para o cursinho e tentar entrar em medicina no ano seguinte. Fiquei numa espécie de limbo – não curtia o curso de jornalismo e nem tinha coragem de parar. Este desconforto só desapareceu no terceiro ano de faculdade, quando entrei pela primeira vez numa redação de jornal e compreendi que eu seria mais feliz tendo nas mãos um teclado e não um bisturi. Ainda assim, até hoje me flagro pensando em como seria minha vida, quem seriam os meus amigos, onde eu estaria agora se tivesse deixado o jornalismo de lado para tentar fazer o curso de medicina.

Este é apenas um entre as dezenas de exemplos que carrego de todas as encruzilhadas em que a vida já nos jogou. Ou isto ou aquilo, como dizia Cecília Meireles em um dos seus poemas mais famosos. Sempre que estas inquietações vêm me atazanar um pouquinho, o engraçado é que não costumo pensar se eu estaria mais rico, se moraria em outra cidade, se teria outros contatos caso tivesse feito as coisas que não fiz. O que eu sempre penso nestas horas, e é aí que está a dureza da situação, é se eu teria sido mais feliz.

quarta-feira, abril 13, 2011

Acaju

Ouço de muitas pessoas, amigos inclusive, que se existe alguma vantagem no correr dos anos(que podemos chamar aqui de maturidade) é que se perde o medo do ridículo. Infelizmente, não é o que acontece comigo. Quanto mais passa o tempo, mais cresce o meu medo de ser ridículo. Caberia uma imensa discussão aqui sobre o que é, afinal, ser ridículo. Mas no íntimo, cada um de nós, por experiência própria ou observação do mundo, tem, ou deveria ao menos ter, o seu conceito de ridículo muito bem formulado. Eu também tenho o meu. Gostaria que ele fosse um pouco mais elástico, ou menos autoritário, mas não é o caso: sempre tive medo de ser ridículo e este medo, ao contrário de outros que domei na vida, continua a me infernizar.

É este medo que muitas vezes me faz calar diante de fatos e coisas que não consigo entender direito. Aprendi que o silêncio costuma estar do lado oposto do ridículo – e o silêncio pode ser a nossa maior contribuição diante do inexplicável. Ouvi, como todo mundo deve ter ouvido, centenas de explicações igualmente ridículas sobre o comportamento e as motivações daquele jovem que abriu fogo contra crianças numa escola do Rio. Frases feitas, conceitos surrados, a chamada psicologia de botequim quando o botequim já está prestes a fechar. Estamos adquirindo o terrível vício de tentar explicar aquilo que foge da nossa compreensão. E tentar explicar sempre, como se a nossa opinião, e só ela, definisse a nossa postura no mundo. E quando não temos opinião? E quando a nossa opinião não acrescenta absolutamente nada de louvável e interessante a tudo aquilo que já foi dito e escrito? Qual o problema de se calar? Qual o problema de se ficar quieto num canto e evitar, acima de tudo, ser apenas mais um ridículo?

Meu medo de ser ridículo talvez resulte do fato de eu já não me sentir mais tão jovem. Quando se é adolescente, o nosso ridículo pode ser confundido com rebeldia, auto-afirmação, desajuste ou algum processo desenfreado de busca. Explicações maravilhosas que realmente funcionam. O tempo, aos poucos, vai eliminando estes nossos álibis. E é por isso que eu não compro muito esta idéia de que a maturidade nos abre a porta para o ridículo. A maturidade fez com que eu desse menos importância a uma série de coisas – menos ao temor de ser ridículo.

Se não me engano, Fernando Pessoa diz em um poema que só as pessoas ridículas não escrevem cartas de amor ridículas, pois todas as cartas de amor são, por definição, ridículas. Mas ser ridículo, por descuido ou deliberadamente, é um tipo de exercício que eu não pretendo realmente praticar. Isso não vai me impedir, obviamente, de tomar atitudes ridículas até o último dos meus dias. Talvez este post em si já seja uma prova da minha indisfarçável capacidade de ser ridículo. Talvez daqui a meia hora, ao sair de casa, eu tome uma atitude ridícula em cada esquina. Talvez eu buzine para o carro da frente porque ele não arrancou quando o semáforo abriu, como eu fiz ontem. Talvez eu seja cruel com alguém que não é de forma alguma responsável por uma eventual tristeza ou frustração de minha parte. Talvez eu alimente sentimentos de vingança, talvez eu não reconheça no outro uma certa nobreza apenas pelo meu medo da competição. Talvez eu me deite e me levante com a sensação de ter sido ridículo justamente por que fiz um pouco disso tudo. Talvez eu pinte meu cabelo de acaju e passe os dias a distribuir selinhos na boca de todo mundo.

Mas eu garanto que não vou me orgulhar disso. E que não vejo o passar dos anos como um salvo-conduto, como uma autorização para que meus atos pequem pela falta de inteligência, generosidade e bom-senso. A cada dia o ridículo me dói mais. E sinceramente não invejo os que acreditam que ser ridículo é uma conquista que a idade nos traz.