segunda-feira, julho 30, 2007

Barriga pra dentro

Não sei se contagiado pelo clima do Pan ou pela dificuldade de me abaixar para apanhar as moedas que eventualmente caem ao chão, o certo é que me matriculei numa academia de ginástica. Nenhuma novidade nisso - esta deve ser, por baixo, a décima vez em que entro numa academia, embora torça para que a história desta vez seja diferente. O começo ao menos tem sido animador: em apenas uma semana eu já fui malhar cinco vezes. Eu sempre achei que malhar era um termo que eu não escreveria aqui e muito menos colocaria em prática na vida. Mas o tempo passa e, como escreveu a Maria Adelaide Amaral em uma de suas peças, com a idade, a única coisa que ainda sobe é a gengiva.

O responsável pelo meu retorno às academias de ginástica é o amigo e também jornalista Gustavo Fioratti. De todas as pessoas que conheço, ele é o principal defensor da tese de que uma hora de musculação coloca a auto-estima nas nuvens, muito mais do que a terapia, o chocolate ou a compra de roupas. "Quando você se apaixonar pelos halteres, sua vida vai ser outra", ele sempre me disse. Acredito que, como todo mundo, já me apaixonei por muitas coisas e pessoas estranhas, mas os halteres continuam sendo, para mim, uma das imagens mais indesejáveis e menos sexy do mundo. Em todo caso, estou flertando com vários deles há oito dias e até o momento eles se mostraram mais fiéis que os amores humanos: estão sempre onde prometeram estar e a dor que eles me provocam não é apenas tolerável, às vezes é até gostosinha. E, também ao contrário das paixões humanas, há sempre um treinador me dizendo que é hora de parar ou vou me arrepender no dia seguinte.

No fundo, eu sei que vou para a academia muito mais para conversar e, confesso, ouvir a conversa alheia enquanto rolam as esteiras. Já fiquei sabendo de um namoro que terminou, de um rapaz que começou a morar sozinho somente agora, com 30 anos, e que por isso não quer namorar ninguém até se enjoar da liberdade tardiamente conquistada, de um senhor que machucou os pés e por isso só aparece lá para fazer levantamento de peso deitado e, claro, de um pai de dois garotos que escapou por pouco de embarcar no vôo da TAM. A academia tem sido também uma prova de que as tristezas vão ficando para trás: a cada dia se fala menos da tragédia com o avião.

Se eu pudesse escolher, nas academias só haveria esteiras. Seríamos uma legião de pessoas andando e correndo sem jamais sair do lugar, uma deliciosa metáfora para algumas fases de nossas vidas. Andar na esteira é um prazer, é como se nossos corpos fossem divididos ao meio por algum mágico: enquanto da cintura para baixo o trabalho é automático, do umbigo para cima nós estamos em outro lugar, fazendo outras coisas, pensando em outras paisagens e tentando resolver questões mais urgentes do que o extermínio de pneus na nossa barriga. Sem o risco de assaltos, atropelamentos, cocô de cachorro na calçada e buracos na rua, o nosso cérebro descansa enquanto as pernas cumprem com obediência uma missão que, para elas, talvez não tenha sentido algum. Também não gosto de ficar olhando para aquele painel que mostra a queima de caloria, a velocidade, o trajeto percorrido, nada disso. Até porque a gente sabe que, depois, um único brigadeiro do Amor aos Pedaços vai implodir uma hora de malhação. A natureza não consegue ser justa nem na hora de queimar calorias.

Mas os professores, e são inúmeros, não gostam que a gente fique só na esteira. A todo instante eles vêm perguntar se está tudo bem, quando na verdade querem dizer: saia logo daí para levantar peso. E daí começa a parte chatinha: duas séries disso, três séries daquilo, 20 segundos deste lado, 30 segundos daquele. E o cérebro, que até então estava passeando, tem de voltar a trabalhar, a contar de um a 30 bem devagarzinho, a registrar os exercícios que já fizemos e apontar os que ainda faltam e, principalmente, ficar atento a alguma dor ou fisgada que, ao menos no meu caso, ainda surgem com frequência. Depois disso, é só voltar pra casa com a sensação de algum dever cumprido, embora o dia esteja só começando.

PENSAMENTO DO DIA
"A maior felicidade que existe é quando a gente vai limpar a bunda e percebe que ela já está limpinha".
Do Gustavo Fioratti, que me levou à academia para ouvir coisas deste tipo.

sábado, julho 28, 2007

Cansei. E não é de ser sexy.

Confesso que, a princípio, estou vendo com uma certa simpatia e boa-vontade este tal de movimento do “Cansei”. Li sobre ele há alguns dias e meu primeiro impulso foi o de procurar seus organizadores e dizer que gostaria de participar, que estaria disposto a vestir uma camiseta com a palavra cansei cruzando o peito de fora a fora com o objetivo inicial de manifestar simplesmente aquilo que a palavra diz – que estamos cansados. Cansados da corrupção, cansados de promessas não cumpridas, cansados da impunidade, cansados dos maus exemplos, cansados de ver os poderosos rindo nas nossas caras e, por fim, em certo grau, cansados de nós mesmos. Resolvi ler um pouco mais sobre o movimento e descobri que hoje ele já recebeu as primeiras críticas, sendo que a mais forte delas deve dar motivo para uma discussão bacana: o movimento está sendo acusado de representar a voz da indignação da classe média e por isso não deve gerar um clamor popular.

Duas perguntas: Qual é o problema de um movimento representar a classe média? E o que somos nós, afinal? O que é você, meu querido amigo, que está perdendo cinco minutos do seu precioso tempo lendo estes rabiscos, diante de um computador conectado à Internet banda larga, se não um digno representante da classe média? Sabem uma coisa que eu ando percebendo? Que nós sentimos um misto de vergonha e culpa por pertencermos à classe média. Estou falando das pessoas que, como eu, estão na faixa dos 40 e poucos anos (ou acima disso) e ainda guardam o resquício de um ideal mais socialista, de uma forma mais justa de distribuição de riquezas e de convivência entre os homens. Como o modelo falhou e a partir dos anos 80 passamos a viver a era do salve-se quem puder dentro de um capitalismo feroz que gerou um neoliberalismo mais feroz ainda, parece que nos culpamos pelo pouco que temos e, sempre que surge este fantasma da classe média ou burguesia, fugimos destes termos como fugiríamos de um convite para integrar os quadros da opus dei. Classe média e burgueses são os outros – nós não! Imagine. E a nossa consciência de classe, onde ficaria? E as intermináveis noites passadas nos diretórios acadêmicos das faculdades e na sede dos partidos políticos de oposição em que desenhávamos um novo formato para o mundo? E a velha camiseta vermelha escrita oPTei, que usamos até desbotar antes que ela virasse pano de chão? E o quadro do Che Guevara na parede? Realmente é difícil encontrar um lugar para acomodar termos como classe média e burguesia no meio de tantos ideais, mas sinto informar que sim, somos classe média e burgueses – e podem me apedrejar por isso com seus e-mails, seus torpedos e suas mensagens pelo MSN. E que atire o primeiro I-pod aquele que continua vivendo com as esperanças e a ingenuidade que tínhamos no fim dos anos 70.
É por isso que não vejo problema algum se o Cansei nasceu no meio da classe média. Ele nasceu no meio de nós. A coceirinha, acredito, está sendo causada pelo fato de o movimento estar sendo administrado pela OAB. Aqui não vai nenhuma crítica, mas simplesmente perguntas: a OAB está punindo de maneira exemplar os advogados que aproveitam as visitas aos presídios de segurança máxima para entregar celulares aos presos? A OAB expulsou de seus quadros os advogados que comprovadamente trabalhavam para o PCC? Juro que são perguntas mesmo – talvez eu não tenha acompanhado com mais cuidado o noticiário e não saiba que todas estas providências já foram tomadas. E outra coisa: embora todo acusado, sem exceção, tenha direito a defesa, não fica um pouco chato justamente o presidente da OAB ter aceitado defender a bispa Sonia e o bispo Hernandez, presos nos Estados Unidos entrando com dinheiro não declarado? Claro que a bispa e seu marido têm direito a advogados. Mas eles foram mostrados com o dinheiro escondido na bíblia, confessaram o crime, foi um delito de repercussão internacional. Repito: eles merecem e têm direito à defesa. Mas precisava ser justamente o presidente da OAB a encampar este caso? Sei que não é antiético, mas me soa extremamente antipático e oportunista. Como já diziam: a mulher de César não basta apenas ser ética, ela precisa demonstrar... Não sei se a expressão é exatamente esta, mas o recado está dado.

quinta-feira, julho 26, 2007

Oh, darling, it's wonderful!

Às vezes eu recebo umas revistas bacanudas aqui em casa. Na certa, por gentileza e camaradagem das editoras. São destas revistas de papel brilhante que trazem fotos de palácios e castelos, indicações de vinhos que custam mais de cinco mil a garrafa, dicas de lugares que a gente só vai conhecer mesmo por fotografia e algumas receitas cujos ingredientes a gente nem sabia que existia. Sem falar nas páginas e páginas de editoriais de moda que a gente olha, faz as contas e percebe que só teria condições, se tanto, de comprar a gravata – ainda assim se for financiada em pelo menos cinco vezes. A cada vez que chega uma revista dessas em casa, na hora duas coisas me vêm a cabeça: 1) como eu fui parar no mailing deles? e 2) meu Deus, como eu ando pobre.

Mas estas duas constatações não me impedem de passar alguns momentos de puro deleite com a revista na mão. Não que eu deseje tudo aquilo para mim. Sinceramente não desejo, não. É um mundo tão distante deste em que eu vivi todos os meus anos que eu provavelmente não saberia dar um passo nele sem quebrar a cara. Eu só fico entretido feito uma criança diante do universo destas revistas em que ninguém é feio, ninguém dá duro, todas as mulheres são exuberantes, todos os homens são viris e cabeludos, todos os relógios têm ponteiro de ouro, todos os champanhes são franceses, todas as roupas são italianas, todas as fotos têm neve e todos os carros são vermelhos como os do James Bond.
E sabem o que eu percebi hoje, dia em que eu li uma destas revistas com mais atenção? Que é impossível ser chique em português. É verdade. Nenhum texto é escrito inteiramente na nossa língua. Todos os cabeleireiros são hair dressers, todos os bem-vestidos são fashionistas, todo chique tem style, modelo é look, bacana é hype, forma é design, alguém badalado é o talk of the town e por aí vai. Tive a paciência de contar 15 expressões em inglês em apenas uma página. Juro. Terminei de ler a matéria rindo. Sabem por quê? Quem escreveu deve ter se gabado tanto de ser poliglota, mas tanto, que o resultado da matéria parecia uma música do Zeca Baleiro. Com uma imensa diferença: o Zeca Baleiro tira sarro de tudo isso. E as revistas se levam a sério. Mas vamos dar o jogo por empatado: afinal, os dois provocam boas risadas.

domingo, julho 22, 2007

Uma pessoa chata

Outro dia dei uma passada de olhos pelos últimos textos deste blog e fiquei com medo de estar me tornando uma pessoa chata que só escreve coisas chatas. Na hora, me veio à mente a imagem de um colunista da Folha que sempre escreve coisas chatas que eu normalmente não consigo ler. O problema é que, nos últimos tempos, acho difícil não se tornar um chato neste país. São tantas notícias chatas, é tanta gente chata fazendo coisas e gestos chatos que, aos poucos, esta chatice toda vai contaminando a gente. E fica complicado manter o bom humor e algum lirismo no meio de tanta coisa ruim. Esta semana briguei com uma pessoa que eu nem conheço e que vivia entupindo minha caixa postal com mensagens em que insistia em defender o governo do PT. Sempre fui petista e votei em Lula em todas as eleições das quais ele particiou. Mas hoje não consigo defendê-lo de nada. Um homem que não consegue repreender Marta Suplicy, Guido Mantega e Marco Aurélio Garcia depois de todas as barbaridades que eles falaram e fizeram durante o apagão aéreo, não merece mais o respeito de ninguém. Pedi para aquele cidadão que entupia minha caixa postal que me excluísse do seu mailing. Eu não envio para ninguém minhas impressões sobre o que quer que seja, mereço, no mínimo, o mesmo tratamento.

Li que acaba de ser lançado um livro sobre o eletricista brasileiro Jean Charles, morto pela polícia inglesa numa estação de metrô de Londres. Não li o livro e acredito até que seja bom. Mas ele é o reflexo, antes de tudo, da nossa grande hipocrisia. Brasileiros são mortos diariamente pela polícia brasileira e ninguém se preocupa com isso - as nossas vítimas locais merecem, quando muito, um notinha no rodapé das páginas policiaisl. Não me consta que alguém tenha se preocupado em escrever um livro sobre elas e nem que Caetano Veloso e grupos do pop inglês tenham dedicado shows e canções a estes anônimos. Jean Charles, como todo inocente que caiu vitimado pela ação desastrosa da polícia, merece nosso respeito e nosso pranto - não há dúvidas quanto a isso. Mas, sejamos sinceros e diretos: o que nos chocou realmente em sua morte? Foi o fato de ela ter sido produzida pela bem treinada, bem equipada e bem paga polícia inglesa. Só isso. Tivesse sido ele morto na periferia de alguma grande cidade brasileira e ninguém se lembraria sequer do seu nome. Ficamos chocados, sim, com o cenário da tragédia, e não com a morte em si. Ficamos chocados em saber que a polícia inglesa também mata inocentes - porque já estamos cansados de saber que a polícia brasileira faz isso diariamente. Será que alguém vai escrever algum livro sobre os mortos do início do mês no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro? Será que Caetano Veloso vai dedicar algum show àquelas pessoas que também foram baleadas pelas costas e quando já estavam em posição de rendição? Duvido. Por isso que eu acho que um livro dedicado a Jean Charles, ainda que ele mereça, é uma grande hipocrisia. Até na morte reafirmamos o nosso caráter provinciano e colonialista. No ano passado, um dentista negro foi morto pela polícia na zona norte da cidade quando voltava da casa da namorada. A cor da pele foi sua sentença de morte. O que fazia um negro tarde da noite num carro bacana? Ora, só pode ser assaltante, devem ter pensado os zelosos policiais. E metralharam o moço. Alguém se lembra desta história? Alguém escreveu algum livro sobre ela? Alguma embaixada se desculpou com a família do morto? Ele virou uma vítima pop? Ele era menos importante que Jean Charles? Claro que não. O problema é que o dentista foi morto em Santana - pô, que lugarzinho chato pra ser morto pela polícia, né!

Em seu artigo de sábado na Folha de S. Paulo o médico Drauzio Varella lembrou muito bem que nos Estados Unidos a indústria do cigarro paga milhões de dólares de indenização aos que morreram ou adoeceram vítimas do tabagismo. No Brasil, nunca ninguém conseguiu tirar nenhum centavo dos produtores de cigarro. A diocese de Los Angeles desembolsou US$ 600 milhões para indenizar as vítimas de abuso sexual cometido pelos religiosos - nossas crianças continuam sendo abusadas de graça pelos padres. "Será que é mais barato abusar das crianças brasileiras", perguntou Varella em seu artigo. Brilhante colocação. E daí fazemos homenagens a Jean Charles, escrevemos livros sobre ele, dedicamos canções à sua morte injusta - tudo porque ela ocorreu na glamourosa Londres. Enquanto isso, dezenas de brasileiros são mortos nas nossas periferias todos os dias e o que fazemos, todos nós, sem exceção? Viramos a página do jornal e damos graças a Deus de não ter sido conosco e nem com os nossos. Convenhamos: como não se tornar uma pessoa chata no meio de tudo isso?

quinta-feira, julho 19, 2007

Dicionário

Quando, há mais ou menos três anos, um imenso maremoto devastou as ilhas do sudeste asiático, eliminando mais de 200 mil pessoas, aprendemos a usar a palavra tsunami. No ano passado, após a queda do avião da Gol no Mato Grosso, passamos a conviver com o termo transponder. E, desde a trágica tarde de terça-feira, quando o avião da Tam se espatifou em Congonhas, estamos aprendendo a conviver com a palavra grooving. Infelizmente, parece que esta tem sido a única lição que as grandes tragédias nos ensinam: a de aumentar o nosso parco vocabulário com uma palavrinha nova que, esquecido o desastre, ela também cairá em desuso. A memória, a dor e a saudade passarão a ser privilégio então - triste privilégio - daqueles que viram alguém querido sair tragicamente de suas vidas para que nós aprendêssemos uma palavrinha nova.

Eu fico assustado com a rapidez com que a vida volta ao normal neste país. Há pouco tempo, apareceu um cadáver na praia de Ipanema. Era um lindo dia de sol e um corpo, um corpo morto, é óbvio, não poderia competir com tamanha beleza natural do Rio de Janeiro. Cobriram o corpo com um saco de plástico preto e continuaram a tomar sol, pegar onda e jogar futebol de areia ao lado do morto. Nas fotos, crianças apareciam tomando picolé ao lado daquele incômodo entulho que, até poucas horas atrás, tinha nome e profissão. Se a memória não está me traindo - nos últimos tempos ela resolveu me boicotar nos momentos mais delicados - o corpo foi recolhido somente oito horas após ter dado na praia. Oito horas - e não estamos falando de uma praia deserta no sul da Bahia. A praia era Ipanema, alguma coisa entre o poisto seissx ou douze - como eles adoram dizer.

Desde terça-feira, logo após o desastre com o avião da TAM, eu tenho passado muito mais horas do que de costume na frente da televisão. Não sei se isso faz parte daquele estranho fascínio pela tragédia - o mesmo que faz todos nós, motoristas, reduzirmos a velocidade para ver um carro simplesmente com o pneu furado - ou se é algum resquício da minha época de repórter de jornal diário, que ainda me obriga a ficar atento a qualquer coisa que possa cheirar a notícia. É impossível estabelecer um ranking da imagem mais trágica, da cena mais dolorida, do depoimento mais pungente. Tudo é absolutamente terrível. Mas o que mais me chocou foi uma cena leve, corriqueira, que mostrava como o cotidiano já estava se apoderando da dor: um repórter chegou a Congonhas por volta das seis da manhã de quarta-feira, para documentar as primeiras partidas do aeroporto, os novos passageiros chegando, a fila do check-in, os carrinhos com malas. A alguns metros dali, corpos carbonizados ainda estavam sendo retirados, o cheiro da fumaça ainda se fazia sentir em toda região, os parentes não haviam derramado uma centelha das lágrimas que durante anos ainda correrão por seus rostos - e a vida, a vida dos que sobreviveram, já voltava ao normal. Congonhas aberto, aviões subindo e descendo, esteiras rolantes levando e trazendo bagagens, todas as engrenagens do destino funcionando novamente, a vida seguindo seu fluxo, pisando dolorosamente em que ficou queimado pelo caminho.

Além de tsunami, transponder e grooving, os tempos atuais - com a providencial ajuda deste governo que não precisa mais de nenhum adjetivo - estão nos ensinando uma nova lição sim: a do salve-se quem puder. Se o seu avião segue em vôo de cruzeiro, ensinam a filosofia e a ética de Brasília, não olhe para trás nem para baixo: encha seus bolsos, abra um sorriso hipócrita, afirme que não sabia de nada, coloque a culpa em seu subordinado e, sempre que der, relaxe e goze. Se no meio do caminho houver uma vaia, finja que está triste e diga que foi tudo orquestrado. E boa viagem.

terça-feira, julho 17, 2007

Depois da queda

Estava subindo a rua Heitor Penteado ontem de manhã quando, na frente da agência do Banco do Brasil, quase esquina com a Avenida Pompéia, uma senhora idosa, de blusa branca e calça comprida verde, caiu bem na minha frente. Ela torceu o pé no respiradouro do metrô e foi ao chão, assustadoramente pesada. Corri para socorrê-la. Sua expressão de dor era indisfarçável e seu medo de ter quebrado a perna, ainda maior. Perguntei se ela conseguia ficar em pé ou se preferia que eu fosse em busca de um táxi ou uma ambulância. Com muito esforço, ela se levantou e caminhou apoiada até o táxi. Percebi que em seu rosto a expressão da dor ia aos poucos dando lugar à da culpa. Por que os velhos se sentem culpados quando caem? Ela me agradeceu de uma maneira tão ostensiva que mais parecia um pedido de desculpas por ter obstruído o meu caminho com seu corpo velho e pouco ágil.

Há algum tempo minha mãe deixou de sair de casa. Havia sempre uma desculpa para que ela recusasse um pequeno passeio, até a padaria que fosse. Achávamos aquilo estranho, eu, meu pai e meu irmão. Não muito estranho, porque minha mãe nunca foi dada a viagens, passeios ou aventuras além do portão da rua. Mas aquele seu período de reclusão era tão convicto que começou a nos preocupar. Fomos ligando os pontos e descobrimos que ela havia deixado de sair de casa depois de um tombo na rua. Ao contrário da senhora a quem socorri, minha mãe se machucou mais: rosto, mãos, braços e pernas eram a prova de que a queda havia sido realmente feia. Soubemos também que ela foi socorrida por dois funcionários de um salão de cabeleireiro. Ela disse que sentiu muita vergonha, tanto da queda quanto da necessidade de socorro. Compreendi bem o que era isso ao ver o rosto daquela idosa enquanto eu a ajudava a pôr-se em pé na avenida Heitor Penteado, sozinha e assustada. De repente, toda a experiência de vida, toda a dignidade que uma pessoa acomodou entre as rugas, toda a serenidade de um rosto idoso são substituídas por uma expressão de dor, medo, abandono e culpa. É tão triste o que o corpo resolve fazer com o ser humano só para lembrá-lo de que a conta a ser paga pela vida só cresce com a idade.

Não sei se por relapso dela ou por falta de atenção nossa, o certo é que minha mãe foi-se fechando cada vez mais, até que um dia foi necessária intervenção médica para que ela reunisse forças de cruzar novamente a barreira do quarto. Não que hoje ela tenha se transformado em alguma cigana, mas a rua voltou a exercer um pequeno fascínio em seu cotidiano. Pequeno como sempre foi, mas ao menos presente. Será que todos os tombos que levamos na vida, em público ou no nosso íntimo, na rua ou na alma, têm de necessariamente nos condenar ao isolamento? Em que momento desaprendemos a lição mais bonita da infância - aquela que nos ensinava a chorar só um pouquinho após a queda e depois seguir adiante, mais felizes e mais leves do que antes? E, geralmente, com os braços ainda mais abertos para o mundo.

sexta-feira, julho 13, 2007

Para o palco ou para a vida?

O diretor Luiz Valcazaras um dia me ensinou, provavelmente sem se dar conta disso, uma grande lição. Estávamos a duas semanas da estréia da peça Abre as Asas Sobre Nós, texto de minha autoria que ele dirigiu de maneira soberba. Era um fim de tarde no Espaço dos Satyros Dois. No dia anterior, ele havia pedido para que o elenco trouxesse algumas sugestões de figurino - peças de roupas que os atores tinham em casa e que talvez pudessem ser usadas no espetáculo. O ator André Fusko surgiu com um par de tênis ligeiramente surrado, que poderia ser usado pelo seu personagem, Paulo Preto. Fusko exibiu o tênis no camarim e Valcazaras aprovou a escolha. Na hora do ensaio, assim que Fusko pisou no palco, Valcazaras mandou parar tudo. E disse: "Fusko, esse seu par de tênis é para a vida, não para o teatro. Vamos precisar pensar em outra solução."

Eu nunca havia me deparado com uma definição como aquela - a de que algumas coisas serviam para a vida, e não para o teatro. Era como se aqueles tênis cheios de histórias e quilometragens, que haviam pisado sobre tantas coisas reais, não tivessem autoridade alguma para pisar no palco, não tivessem sequer autoridade para convencer qualquer espectador de que eles eram o que eram: um par de tênis. Claro que fiquei com aquilo na cabeça.

Voltei a pensar nisso esta semana, quando terminei de ler um livro escrito por um jornalista de quem me tornei relativamente próximo graças à Internet. O personagem principal da trama passa horas amarrado em uma cama, sob a mira do revólver de um assaltante que invadira seu apartamento numa tarde de sábado. É um relato poderoso não só da violência urbana, mas também da história recente do País - já que ao personagem, com as mãos atadas e a boca selada por esparadrapo, só resta pensar. E, neste fluxo ritmado de pensamento, ele nos conduz por um passeio nostálgico pelos últimos 40 anos da história brasileira. Tudo ia bem no livro até o momento em que o personagem é salvo de uma maneira inacreditavelmente milagrosa. Claro que eu não torcia para que o personagem terminasse com uma bala nos miolos - até porque, sendo autobiográfica, não existiria história alguma se o personagem tivesse morrido naquele assalto. O autor me esclareceu depois, por e-mail, que as coisas haviam se dado exatamente daquela forma. Ele havia sido absolutamente fiel ao relatar de que maneira fora salvo. E aí me lembrei de Valcazaras: o jeito que ele foi salvo serviu para a vida, mas não para a literatura. Às vezes, a verdade, quando cruza esta fronteira da ficção, fica sem graça, como o velho par de tênis do André Fusko.

Não sou místico nem nada. Mas desde aquela tarde no Satyros eu passei a ver o palco de forma diferente. Comecei a enxergar ao redor dele um certo campo magnético que não impede a entrada de nada e de ninguém. Mas que revela impiedosamente, a partir do momento em que se cruza esta cerca imaginária, se o sujeito é bom para a vida ou para o palco. E acho que isso faz toda diferença - porque comecei a entender também as pessoas que são boas para o palco, e não para a vida. É o outro lado da moeda no qual eu também nunca havia pensado. É uma fronteira cruel, misteriosa e absolutamente magnífica. Qualquer um pode cruzá-la, mas poucos, muito poucos, vão continuar convincentes e utilitários após a travessia. Aos que falharem, resta um grande consolo: talvez eles sirvam para a vida, o que não é pouco.

Hoje estou excepcionalmente feliz: acabo de ler na internet que Lula foi vaiado. Votei em Lula desde sua primeira candidatura. E mais do que um gigantesco puxão de orelha, eu acho que ele andava merecendo mesmo uma gigantesca vaia. Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu - aqui vai minha pequena contribuição para ver se ele acorda deste torpor no qual mergulhou nos últimos tempos

quinta-feira, julho 12, 2007

Noel Rosa

Nosso amor que eu não esqueço
e que teve o seu começo
numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
sem retrato e sem bilhete
sem luar e sem violão
Perto de você me calo
tudo penso, nada falo
tenho medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
mas meu último desejo
você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
pedir que você lhe diga
se você me quer ou não
Diga que você me adora
que você lamente e chora
a nossa separação
E às pessoas que eu detesto
diga apenas que eu não presto
que meu lar é um botequim
Que eu arruinei sua vida
que não mereço a comida
que você pagou pra mim

É a letra de Último Desejo. Nas raríssimas vezes em que ouço esta canção, penso que não é preciso dizer mais nada. Como agora.

quarta-feira, julho 11, 2007

Cala a boca, meliante.

Há pouco mais de um mês, passei por uma experiência interessante. Resolvi entrevistar um grupo de adolescentes pobres e outro inegavelmente rico para colher subsídios à adaptação teatral do livro Cidadão de Papel, do jornalista Gilberto Dimenstein. A adaptação está praticamente concluída e o espetáculo, dirigido por Ivam Cabral, estréia no dia 10 de agosto em um novo espaço cultural da Vila Madalena.

Minha primeira conversa foi com os adolescentes ricos. Perguntei a eles qual era o maior medo de suas vidas. A resposta, confesso, me surpreendeu. Eles se sentiam apavorados diante das batidas policiais. Mesmo sendo brancos, ricos, bem-vestidos e donos de carro do ano, tremiam nas bases a cada vez que um policial surgia em sua frente pedindo para que parassem o carro e descessem com a mão na cabeça. Na semana seguinte, tive a mesma conversa com os jovens pobres do Jardim Pantanal, em São Miguel Paulista. Novamente, a polícia também representava o maior pavor da vida deles. Uma garota me contou que era muito comum um policial entrar na casa dela, revirar tudo, jogar móveis e colchões no chão e depois partir como quem não quer nada. Uma outra disse que o pai havia sido parado por um policial que ordenou o seguinte: abandone o veículo que eu vou revistar tudo. O veículo era um bicicleta velha. Percebi que, quem diria, na falta de justiça social neste país, cabia à polícia diminuir a distância entre pobres e ricos.

Esta semana, indo para Paraty, também tive meu carro parado na rodovia para uma "inspeção de rotina". Desta vez, foi rápida. O jovem policial olhou os documentos do carro, os pneus e me liberou. Um amigo, que estava ao meu lado, traduziu brilhantemente a sensação: por que a polícia tem este dom de fazer a gente se sentir culpado por existir? É como se estivéssemos carregando 20 quilos de cocaína debaixo do banco. Nas outras duas vezes em que a polícia me parou, o constrangimento foi infinitamente maior. A primeira delas foi na Rua Heitor Penteado, a 200 metros da minha casa. Era uma madrugada e tive de ficar com as mãos na nuca e um revólver apontado para a cabeça até que, ao examinar meus documentos, o policial encontrou minha credencial de jornalista do Estadão. Daí os policiais se converteram em lordes ingleses, a me desejar boa sorte e dizer que contavam com minha compreensão. Afinal, diziam, estavam cumprindo o dever deles.

Na segunda vez em que fui parado, estava na Rua Frei Caneca, indo ao cinema com um amigo repórter da Folha. Novamente a mesma exposição pública virulenta e absurda: tivemos de ficar, os dois, num sábado à noite, expostos como marginais em um dos trechos mais movimentados da cidade, até que eles concluíssem a inspeção do carro e descobrissem que, novamente, estavam diante de dois jornalistas. Mais pedidos de desculpa. Foi um episódio tão deprimente que eu e meu amigo não trocamos mais nenhuma palavra naquela noite e, ao término da sessão, cada um foi pra sua casa com um gosto de velório na boca.

Fico pensando em como se sentem aqueles que não têm nada para exibir aos policiais: uma carteira de trabalho, um crachá funcional, ou mesmo a habilidade de argumentar tendo as mãos na cabeça e um revólver apontado pra cara. Embora vivamos num dos países mais violentos do mundo, será que a polícia não dispões de uma maneira um pouco mais civilizada de proceder a estas abordagens?. Não quero dizer aqui que nós, brancos, universitários, com carros relativamente novos e pelo menos mais de 20 dentes na boca, deveríamos contar com algum privilégio também nesta hora. O que eu quero dizer é que, quando a polícia nos pára, seria ótimo se nos sentíssemos protegidos e não apavorados como se estivéssemos nas mãos de bandidos.

segunda-feira, julho 09, 2007

Gael mudou de casa e é bem mais feliz

Laerte Késsimos, jovem ator do grupo Os Satyros, tinha um gato chamado Gael. Nunca vi o bicho e nem sei por quais meios ele foi parar nas mãos do Laerte. Um dia, o Alberto Guzik, dramaturgo e ator da mesma companhia, veio me dizer que o gato tinha sumido e que o Laerte estava muito triste. Eu também fico muito triste com o sumiço dos animais. Fico pensando em como será a primeira noite deles longe de casa, o que eles vão fazer quando a fome apertar e não houver um potinho de ração ali ao lado, mas penso, acima de tudo, se como nós, humanos, eles também sentirão medo perdidos numa cidade como São Paulo.

Na semana passada conversei com o Laerte e ele havia achado Gael. Na verdade, Gael não havia sumido, ele simplesmente trocara o apartamento do Laerte pelas alamedas do cemitério da Consolação, onde passou a viver com dezenas de gatos que, como ele, provavelmente também não eram castrados. Pelo que Laerte conhecia do seu gato - se é que é possível conhecer dos gatos algo além do que eles permitem - Gael estava feliz, vivia correndo entre os túmulos, subia e descia pelos jardins, estava gordinho e, acredita seu ex-dono, usando as noites para fazer sexo como nunca havia feito antes. Gael reconheceu Laerte, se aproximou dele, aceitou de bom grado alguns carinhos do ex-dono, ronronou em seu colo até que percebeu que Laerte estava tomando o rumo de casa. Neste instante, Gael pulou dos seus braços e sumiu pelas alamedas do cemitério. Esta cena se repetiu várias vezes. É como se o gato quisesse dizer que eles podiam ser amigos, podiam se acarinhar, podiam até se amar mesmo - mas cada um em seu canto. Bem próprio dos gatos - e bem próprio de alguns humanos também.

Laerte ficou tranquilo por saber que Gael estava vivendo feliz longe de casa e que provavelmente tinha encontrado ali, no cemitério, um misto de prazer e liberdade que não havia experimentado entre as quatro paredes do apartamento de Laerte. Gael, enfim, fugiu para o cemitário para ser feliz. Às vezes, a exemplo de Gael, nós também fugimos para o cemitério em busca da felicidade. O problema é que quando esta última fuga acontece, no nosso caso, já costuma ser tarde demais. Cada vez eu acredito mais que os gatos sim sabem levar a vida.

Ounvindo Coetzee da calçada

Tirei alguns dias de descanso deste blog e percebi o seguinte: este espacinho maroto é igual academia de ginástica. Se você não se disciplina e não se dedica a ele com alguma seriedade, a vontade de escrever se dispersa, suas idéias vão se tornando flácidas, suas opiniões sobre os fatos, sejam eles quais forem, parecem perder completamente a importância e o significado. Até que este exercício, que eu me propus diário sem nunca ter atingido esta meta, também seja ejetado na direção daquele grupo de promessas jamais cumpridas: perder peso, parar de comer doce, dormir mais cedo para poder levantar também mais cedo, ler ao menos um livro por semana, encontrar tempo para ver todos os amigos, evitar os filmes e as peças que já sabemos ser ruins, fazer algum trabalho voluntário, encontrar graça nos pequenos prazeres da vida, ir realmente atrás dos sonhos e acreditar que, como dizem os amigos mais devotos, o universo realmente conspira a nosso favor.

O motivo da ausência é explicado a seguir. Como milhares de pessoas, neste fim de semana eu tentei encontrar alguns centímetros quadrados nas calçadas de Paraty para pousar a bunda e ouvir alguns trechos de Diário de Um Ano Ruim, próximo livro do escritor sul-africano J.M.Coetzee, que só deve ser lançado no Brasil no fim do ano. Depois de Desonra, prometi para mim mesmo nunca mais ler nada saído da mente deste escritor. Desonra me desconcertou por tanto tempo que eu achei que fosse preciso ver toda a coleção do Woody Allen para reencontrar graça na vida. Mas como ficar livre de um autor que escreve como se estivesse protagonizando uma sessão de necropsia, retirando camada por camada dos seus personagens até localizar a dureza e a solidão que vitimaram o coração deles? Após Desonra, mergulhei em Elizabeth Costello e agora estou devorando O Homem Lento - sendo que após este já existe um outro Coetzee na fila. Pois bem, sentei-me no chão para ouvir Coetzee ler, no penúltimo dia da Flip, alguns trechos de Diário de Um Ano Ruim com sua voz liberta de qualquer entonação e sentimentalismo. Como se estivesse a anunciar que há três saídas de emergência à direita do palco e que na falta de energia elétrica geradores acender-se-ão automaticamente.... O primeiro trecho falava de um homem que acabara de morrer e ainda era capaz de ver seu corpo inerte e o segundo, ah, meu Deus, o segundo, mostrava como os bois eram mortos nos frigoríficos da Austrália. ERa de arrancar lágrimas do carnívoro mais convicto.

Mas como a Flip não é feita apenas de Coetzees, Amos Oz, Lawrece Wright e Nadine Gordimer, é bom que se diga aqui que a leitura da peça Beijo no Asfalto a cargo de autores brasileiros (alguns deles excelentes, por sinal) deve ter feito Nelson Rodrigues virar no túmulo feito o tatuzão que escava os buracos do metrô. Na boca de Jorge Mautner e seus outros amigos das letras, a leitura foi um dos episódios mais constrangedores não apenas da Flip, mas da minha vida inteira. Para evitar as gargalhadas diante de tamanho amadorismo e falta de bom-senso, muitas pessoas se retiraram da platéia, silenciosamente, para liberar o riso e a indignação lá fora. Posso dizer que foram os 20 reais mais mal aproveitados dos últimos tempos. Na rua, encontrei um amigo que havia abandonado a sessão como eu. E ele me disse um frase que não sai da minha cabeça. "Este pessoal da Flip é tão preparado e não se deu conta de uma coisa tão óbvia: os escritores são bons para escrever. Mas quem disse que eles sabem ler?" Caramba! Acho que nunca mais vou me esquecer disso.

segunda-feira, julho 02, 2007

Ela

Ela começou muito cedo na carreira. Antes dos 20 anos já era uma das atrizes mais conhecidas do País. Seu primeiro trabalho na televisão ainda é, para muita gente, o único que merece ser lembrado, o que não é totalmente justo. Eu sempre achei que ela era muito mais talentosa do que demonstrou ser ao longo desta última década. Como muitos outros atores, no entanto, ela deixou-se seduzir por uma das mais insidiosas armadilhas da televisão: aquela que obriga os artistas a serem eles próprios pela vida afora. Jack Nicholson consegue fazer bem isso; Lima Duarte às vezes. Ela não conseguiu. Não sei se durante estes anos todos ela recebeu alguma proposta mais ousada, se teve a chance de se atirar em algum projeto mais autoral, se alguém pediu para que ela se mostrasse menos bonita ou menos apática e simplesmente mais viva. O que eu sei é que sua carreira vem sendo marcada por uma suave e segura repetição de si própria - nas várias novelas que fez, tudo que vimos foi ela mesma, em outros vestidos e em outros horários. Nunca uma transgressão escapou de sua boca, nunca uma faísca brilhou em seus olhos. Ela parece ter se conformado com a idéia de que sua importância nas tramas diminuiria na exata proporção em que sua beleza começasse a se despedir do seu rosto. Talvez ela tenha contas a pagar e tudo se resuma a isso.

Fiquei muitos anos sem contato com ela. E neste período eu a julgava em paz, aquele tipo de pessoa que descobriu que seu combustível não era suficiente para a ambição do seu vôo, mas que nem por isso haveria risco de a aeronave se espatifar no chão. Ela teria de pousar antes, mas ainda assim seria um pouso tranquilo. Eu a via aqui e ali, em papéis pequenos aos quais tentava dar um pouco de consistência, embora nem sempre os diálogos colaborassem. Ela continua sendo conhecida, recebe convites e olhares sempre que entra em um bar, em uma casa noturna, em um teatro. Mas, aos poucos, o público não se lembra mais de onde realmente a conhece. Seria da tevê?, eles parecem perguntar. De alguma capa de revista de fofoca, de algum comercial... Todos sabem que aquele rosto não é estranho, mas já não são mais capazes de associá-lo a algum trabalho.

Nos últimos meses voltei a conversar com ela. E vi que não havia tanta paz assim em seu espírito. Dos homens, agora ela fala com desprezo. Não acredita que eles possam se interessar por ela e não pela atriz que ela ainda julga ser. Em relação ao trabalho, seus olhos procuram mais curiosos pelos números no holerite do que pelos eventuais conflitos de seus personagens. Ninguém pode acusá-la de ter se vendido - por aquela boca estreita do funil, ela foi mais uma das inúmeras que não conseguiram passar. Ficou entalada naquele ponto que parece separar os grandes artistas da massa comum de atores que apenas preenchem as polegadas cada vez maiores dos aparelhos de televisão. E assim ela vai seguir sua vida, até que a chamem para representar a mãe na trama secundária, para vender detergente e cola para dentadura no horário nobre, para apresentar rodeios e fazer escada nos humorísticos do fim da noite.

O mais triste desta história não é saber que ela realmente existe. É ter a certeza de que ela é um pouco cada um de nós.