sexta-feira, junho 01, 2012

A casa da Vila


No comecinho do ano passado, a amiga Chris Riera comprou uma casa imensa na Vila Madalena, na frente de onde ela já morava quando a conheci. Era uma casa de três pisos e vários cômodos prejudicados por uma quantidade inexplicável de paredes e armários labirínticos. Sabíamos que ela iria botar tudo aquilo abaixo e fazer da casa um território de poucas fronteiras. Uma tarde, eu e o Gustavo Fioratti fomos convidados por ela para conhecer a casa. Na verdade, descobrimos durante  a visita, o que ela queria mesmo era saber nossa opinião sobre o arquiteto que ela havia chamado para a reforma. “Se ele for bonito, vocês cruzam o braço; se ele for feio, vocês tossem”, ela nos pediu. “Chris”, tentei argumentar, “se ele for feio e eu e o Gustavo tivermos um acesso de tosse na mesma hora, ele vai perceber”. “Bem pensado”, ela respondeu. “Então, se ele for feio, vocês coçam o olho, é mais prudente”. Não lembro se o placar terminou em braços cruzados ou coceiras nos olhos – mas lembro, e muito bem, que essa era a Chris. Alguém interessado em revelar que, mesmo diante de uma grande conquista como a compra de uma casa, não devíamos nos esquecer do prosaico e do risível. Entre nós três, eu, o Gustavo e a Chris, se havia algum moleque na parada, esse moleque era ela.  

Sem entrar nos méritos estéticos do arquiteto, o que sei é que ele fez um trabalho memorável na casa. Abriu os ambientes, derrubou paredes, suavizou cores e texturas, deu fim aos velhos armários embutidos e esculpiu na cozinha uma janela tão gigantesca que, diante dela, éramos obrigados a concordar que São Paulo era linda e a vida também. Daquela janela víamos as cores da cidade mudar, a lua nascer atrás do prédio da MTV, os temperos do jardinzinho pegado ao muro florescer, e, acima de tudo, crescerem a nossa amizade e a nossa esperança em alguma vitória da vida.

Sempre me pareceu claro que a Chris tinha comprado e reformado aquela casa não exatamente para ela, e sim para os amigos, o filho e sua família geneticamente beneficiada por um raro DNA da beleza e ternura. Assim que a reforma ficou pronta, Chris se apressou em instituir o Cinema na Laje, evento mensal em que seriam exibidos os filmes das nossas vidas a céu aberto. O longa escolhido para inaugurar o Cinema na Laje foi ET. Talvez porque eu tivesse uma cópia em DVD em casa, ou talvez porque, por se tratar de um filme já visto por todos, e seguramente mais de uma vez, ninguém precisaria prestar muita atenção mesmo, já que tudo se resumia em mais um pretexto para a gente conversar. Gustavo Fioratti foi o primeiro a chegar, trazendo o projetor e as caixas de som. Quando a porta que conduz à escada para a laje foi aberta ao grande público de dez pessoas, já havia pipoca, cachorro-quente e cerveja à disposição. Vimos ET debaixo de um céu nublado e um ventinho frio. E, graças a uma sincronicidade que nem Steven Spielberg foi capaz de prever, no momento exato em que o personagem de Drew Barrymore grita ao ver o ET pela primeira vez, o banco capenga em que estavam sentados a Lenise Pinheiro, a Iris Cavalcanti e o Rogério Simões veio ao chão - causando um certo dano físico a este último, mas poupando as meninas de arranhões e hematomas.Por alguns momentos, ET, a despeito de toda sua magia e sensibilidade, virou um pastelão.

Depois do Cinema na Laje, veio o CarnaChris, se não me engano uma logomarca criada pela Lenise para animar o carnaval 2012 de quem havia ficado em São Paulo. Ao longo de quatro noites (duas dos desfiles do Rio e outras duas dos de São Paulo), o CarnaChris reuniu a singela marca de três ou quatro foliões diante da tevê ligada. Sem entender de samba e alegoria, nossa diversão era tentar localizar conhecidos entre os passistas que atravessavam a Sapucaí ou o Sambódromo do Anhembi. Não tivemos êxito. Porém, na falta de conhecidos de verdade, nos contentamos em apontar os que se pareciam com nossos amigos – e acho que, à exceção dos integrantes das escolas de samba campeãs, ninguém riu mais do que a gente com aquela bobagem toda.

Ainda teríamos a entrega do Oscar, com a gente torcendo pelos filmes que não havia visto enquanto o Gustavo, de barriga cheia, dormia no chão da sala; a noite do macarrão ao alho e óleo com brigadeiro de sobremesa; as muitas noites do cozido tailandês e do cuscuz marroquino feitos pela Dita e até a noite do medo, criada às pressas para distrair a Chris e que consistia apenas na revelaçlão dos nossos principais temores, de preferência os que tivessem origem na infância. Enquanto a Flávia, irmã da Chris, confessava seu pavor de bicho-preguiça empalhado, eu assumia que meu maior e mais antigo medo era o de ficar cego durante a noite. Ao nosso lado, a Chris só ria. Talvez não tivesse medos.

A casa hoje está fechada e, nas raras vezes em que passo por ali (evito de propósito), tento convencer a mim mesmo que não estou ouvindo nada, que é tudo impressão e que essas coisas não existem. Mas em algum cantinho da alma e do coração eu percebo todas aquelas gargalhadas e todas aquelas lembranças tentando pular os muros só para nos acompanhar pelo resto de nossas vidas.