quarta-feira, maio 27, 2009

Assim é, se lhe parece

Eu olho para este espaço e sinto que estou fraquejando na minha determinação de escrever ao menos duas vezes por semana. Gostaria de escrever mais, muito mais para ser sincero. Às vezes, falta tempo; em outras, inspiração. Costumo anotar ideias para desenvolver mais tarde aqui, tento guardar na cabeça alguns fatos do cotidiano, alguns pensamentos que passam correndo e eu tento aprisionar. Não bastasse o compromisso com o blog, inventei de entrar no twitter também, mas praticamente já desisti. Senti que tudo vai se transformando em um tipo de obrigação que eu não estou disposto a cumprir. Mais uma. Volto ao blog quando, mais do que a necessidade de atualização, o que eu sinto mesmo é um prazer imenso em teclar uma coisinha ou outra.

Nos últimos dias, talvez por influência da peça que estreou na semana passada e daquela que estreia no dia 19 de junho, eu ando pensando muito em produção. No ato de produzir, qualquer que seja o produto decorrente deste ato: uma peça, uma matéria, um comentário neste blog, um jantar para os amigos, uma panela de molho de tomate para ser congelado e usado depois, numa noite de fome e geladeira vazia; qualquer coisa a que podemos dar o nome de obra. E resolvi falar sobre produção porque acho que finalmente compreendi algo muito bonito e, acima de tudo, muito libertador: eu compreendi que as pessoas não precisam gostar do que eu faço para que eu possa me sentir bem e razoavelmente realizado. Aprendi que é fundamental tirar das nossas costas o peso de agradar a todos ou ao menos a aflição de esperar pela aprovação alheia.

Não é algo fácil de aprender e acredito que eu nem tenha assimilado isso totalmente, mas começar a trabalhar com esta idéia já torna o nosso caminhar muito mais leve e prazeroso. Se aceitarmos que nem todos precisam gostar do nosso trabalho, não nos sentiremos tão injustiçados com as críticas e a indiferença que assombram a vida de qualquer criador. E talvez venhamos a ter alguma noção de nossa real importância, do nosso real tamanho neste mundo. Já disse aqui, no comentário anterior, que tive o prazer de entrevistar a fabulosa Fernanda Montenegro na semana passada. Passei 40 minutos com ela, que aceitaria trocar facilmente por 40 semanas de dias mal vividos. Na metade da entrevista, ao falar sobre Deus, ela disse algo mais ou menos assim: “Deus, ah, Deus... Eu acredito que Deus tenha coisas muito mais sérias com o que se preocupar do que uma pecinha que uma tal de Fernanda Montenegro está pensando em fazer num lugar chamado Brasil”. Seguindo este raciocínio, se Deus tem pouco tempo para pensar na grandeza de uma Fernanda Montenegro, é bem provável que ele tenha menos tempo ainda para pensar em quem não chegou tão longe. Como eu e quase todos nós. E ele não está sozinho nesta determinação. Ao lado dele, há centenas, milhares de pessoas que talvez não estejam mesmo interessadas no que venhamos a fazer. Ou por não gostarem daquilo que fazemos ou simplesmente por não terem interesse em tudo o que temos a dizer e a mostrar. E como é bom que isso aconteça, como é (com perdão por repetir a palavra) libertador aceitar que nossa voz não precisa chegar aveludada a todos os ouvidos. Como é bom, enfim, compreender sem mágoas que as pessoas, legitimamente preocupadas com suas vidas, têm o direito inegável de voltar seus interesses e afeições para outra coisa que não sejamos nós.

Estou falando sobre isso para revelar, por fim, que hoje eu sinto menos pavor quando um trabalho meu começa a mostrar as caras. Já disse aqui, também, o quanto as peças Ensaio Para um Adeus Inesperado e A Noite do Aquário são textos caros e doloridos em minha vida. Eu olho para eles e sinto que eles sintetizam o que eu poderia fazer de melhor no momento e nas condições em que eles foram criados. Em outra época, talvez eles saíssem mais refinados e sensíveis; em outras épocas, quem sabe, poderiam resultar menos sinceros também. Então entendo que, no momento exato em que foram gerados, eles levaram de mim toda a potencialidade que eu tinha conseguido acumular na vida até aquele instante. E, justamente por serem tão caros a mim, não posso colocar sobre as costas deles, os textos, a terrível obrigação de encantar a todos que um dia vierem a ter contato com eles. Haverá, e espero que sejam muitos, os que sairão comovidos deste provável encontro, outros dirão que tudo pode não passar de uma grande bobagem. E é exatamente nesta discordância e neste desequilíbrio que está toda a graça da vida, que está todo o desafio e a beleza de escrever.

Como tudo aquilo que se pretende belo, a exemplo do amor, da amizade e do afeto possível, os textos (e outras coisas que por ventura viemos a produzir) também podem se revelar de uma fragilidade suprema. E, por serem frágeis, por serem no fundo um amontoado de palavras dispostas com a intenção de produzir algum significado, os textos podem desmoronar com a brisa leve que entra por uma fresta da janela que esquecemos aberta. Entender e aceitar que estes textos vieram ao mundo é o máximo que eu posso esperar deles. Ambicionarr que todas as pessoas, todas as pessoas indistintamente gostem deles, é exigir demais. Deles, de mim e das pessoas. Só assim outras coisas nascerão, seja para o aplauso, seja para o dolorido silêncio. E ainda bem que é assim.

sexta-feira, maio 22, 2009

Lygia e Fernanda

Tenho medo da passagem dos anos, desta irritante mania que os dias e as semanas têm de terminarem antes que a gente consiga fazer algo de produtivo. Este medo, às vezes, ganha contornos de pavor, quando acordo assustado com a minha própria idade, com a incapacidade de me lembrar do que fiz em determinadas épocas, dos lugares em que eu estive ou deveria ter estado e de ter cada vez mais a certeza de que esta contabilidade da vida, em que colocamos de um lado os anos vividos e do outro os feitos e as aspirações, nunca vai resultar em uma conta fechada. Tenho um amigo que, sempre que eu falo sobre estas inquietações, ele me recomenda calma, alegando que este poço sem fundo que é o nosso desejo um dia vai ser preenchido sim: preenchido com a última pá de terra sobre o nosso caixão. Enquanto houver vida, ele me diz, é bom que você se acostume com este buraco para sempre incompleto. E na ânsia para preencher o “impreenchível”, penso que a gente gostaria de ser mais jovem, ou ao menos ter mais tempo, sem necessariamente ser mais jovem. Ou seja: outra equação de difícil solução.

Nas últimas semanas, no entanto, tive a chance de ouvir as sábias palavras de duas mulheres excepcionais. A primeira foi Lygia Fagundes Telles, sobre quem já falei aqui há alguns dias. A outra foi Fernanda Montenegro, com quem conversei por quarenta minutos na noite de terça-feira. Ao falar sobre literatura, a primeira, e sobre teatro e cinema, a segunda, as duas discorreram basicamente sobre a vida, a vida de homens e mulheres, a vida dos jovens, a vida dos que já não estão mais vivos e, quando voltaram o assunto para si próprias, a vida de quem está na casa dos 80 anos ou ainda um pouco além.

Não sei se Lygia e Fernanda podem servir de exemplo do que significa chegar bem aos 80 anos. As duas tiveram seus talentos reconhecidos desde muito cedo, tornaram-se mestres em suas artes, colecionaram prêmios aqui e lá fora, vivem do seu trabalho e parecem nunca ter tido sua vocação questionada. É como se tivessem nascido para ser duas gatas alisadas pelas mãos carinhosas do destino. Mas este destino, com certeza, não as poupou dos dissabores e das tristezas reservados a cada um de nós: do jeito delas, é muito provável que sofreram também, que choraram suas perdas, que em algum momento tenham-se sentido derrotadas e inúteis e que, numa noite fria de São Paulo ou sob o sol de Ipanema tenham-se perguntado se afinal valia a pena continuar.

E então, durante a palestra que assisti com Lygia Fagundes Telles no Sesc Vila Mariana e a entrevista com Fernanda Montenegro num hotel no Alto de Pinheiros, vejo duas mulheres acima de tudo íntegras, fortes, sedentas por mais tempo, mais vida e mais trabalho, doidas por um pouco mais de serenidade e vigor físico, apaixonadas pelo novo e pelos jovens, seguras da honestidade de seus trabalhos, pacificadas enfim. Passei alguns dias pensando que devia haver outra coisa a ligar estas duas mulheres além de tudo isso que acabo de citar, um denominador que imprimisse no rosto das duas, além das rugas expostas com orgulho e coragem, uma certa quietude. E, dentro do meu raciocínio psicanalítico mais raso que um cálice de vinho do Porto, acredito que o que as unia era, principalmente, a ausência de mágoa. Os dois rostos, mapeados por tantas histórias e tantas vivências, pareciam não reservar lugar para as mágoas – de alguma maneira, é como se tudo ali tivesse sido resolvido. E, mais que isso, como se tudo tivesse sido compreendido e perdoado. Talvez até mais perdoado do que compreendido – mas esta equação sim estava resolvida no semblante das duas grandes damas.

Estes dois encontros me mostraram que envelhecer pode ser ótimo. Desde que, na impossibilidade da compreensão, a gente saiba ao menos lidar bem com o perdão.

terça-feira, maio 19, 2009

Primeiro sinal

Nesta quarta-feira, dia 20, entra em cartaz no auditório do Sesc Vila Mariana, às 20h30, o projeto Dueto da Solidão, espetáculo composto por dois textos de minha autoria, Ensaio Para um Adeus Inesperado, que abre a programação, e A Noite do Aquário. As duas peças são dirigidas por Sérgio Ferrara e contam com a presença sempre luminosa da atriz Clara Carvalho, que vive duas mães de diferentes épocas e essência, mas semelhantes no seu sentimento de perda. O elenco se completa com um trio de jovens e talentosos atores, os já amigos Chico Carvalho, Gustavo Haddad e Leonardo Miggiorin. O espetáculo ficará em cartaz até o fim de julho, somente nas noites de quarta.

Raramente eu uso o espaço deste blog para falar dos projetos em que estou envolvido. Resolvi abrir uma exceção desta vez por alguns bons motivos. O primeiro deles é o fato de eu ter me cercado de gente tão querida e empenhada em levar adiante estas duas peças intimistas que não precisam de quase nada para ocupar o palco: uma mesa, alguns copos, uma jarra de água e um velho baú. Não acompanhei os ensaios, mas soube que, em sua busca pela concisão, o diretor Sérgio Ferrara aboliu até a trilha sonora, que já era tão mínima. Diretor e elenco resolveram contar as duas histórias confiantes apenas no poder que as palavras têm de criar imagens. No fundo, era o que eu queria também. Um espetáculo intimista, de emoções calculadas. Pequeno como pode ser pequena a vida daqueles que perdem. Ou se deixam perder pelo caminho.

Quanto ao segundo motivo, eu não chegaria a dizer que ele é o mais importante, mas é o mais caro para mim. Tenho um grande carinho, e às vezes alguma saudade, de todas as peças que escrevi, mas A Noite do Aquário brotou após um período de mudez criativa. O texto foi escrito no início de 2007, quando eu, por algum motivo, acreditava que o pouco que eu havia dito até então era tudo o que eu tinha para dizer. Antes de começar a escrever esta peça, atravessei um período grande em que não tinha ideia para um diálogo sequer, o que dizer de uma história inteira. Eu me esforçava por fazer anotações, por pesquisar, por ouvir casos e casos no intuito de levar para o palco um fiapo de narrativa que fosse. Mas nada vingava. Cheguei a pensar que era isso, então: aquela voz que tinha me levado a escrever pelos quatro anos anteriores, período no qual nasceram, entre outros, os textos de Andaime, O Encontro das Águas e Abre as Asas Sobre Nós, tinha se calado. Nunca mais um personagem, nunca mais uma história, nunca mais o prazer solitário de presentear com perguntas e respostas toda aquela gente que até então brotava do teclado do computador com relativa facilidade.

Um dia, eu disse ao terapeuta que aquele dom, ou aquela habilidade, não sei que nome dar a isso, que tinha me visitado já tão tarde na vida, resolveu partir, me deixando no mais completo silêncio e abandono. Ele apenas ouviu. Eu continuei, dizendo que sentia fisicamente a dor daquele abandono (e quem escreve, canta, pinta, dança, toca um instrumento já deve ter ficado apavorado diante da perda da inspiração) e que eu acreditava, por antecipação, que seria muito difícil viver sem as histórias. Me lembro de ter dito que era uma perda semelhante à de um amigo querido que se vai.

Depois de várias semanas, algumas imagens foram aos poucos tomando forma na minha cabeça: a imagem de uma casa num litoral perdido, castigada pelo vento e pela areia, onde viviam uma mãe tão árida quanto o clima ao seu redor, na companhia de um filho caçula que, contrariando todas as expectativas, recusava-se a abandoná-la. Um dia, o filho mais velho, que um dia partiu daquela praia tão melancólica para trabalhar na construção de Brasília, resolveu voltar para resgatar afetos e pedaços de vida esquecidos como seixos à beira-mar. Para os que haviam ficado, o retorno do filho aventureiro era um sinal de que a vida estava voltando ao eixo. Uma noite serviu para provar que o engano não podia ser maior.

Quando eu coloquei o ponto final em A Noite do Aquário, respirei aliviado. As histórias estavam voltando e, embora nunca seja fácil lidar com elas, não há nada que se assemelhe ao temor de sua ausência. Depois disso, vieram A Coleira de Bóris e Ensaio Para um Adeus Inesperado, que nesta quarta vai ganhar a luz pela primeira vez. Tanto os personagens da Coleira quanto do Ensaio não têm nome, o que lhes dá a chance de ser qualquer um de nós, ainda que por alguns momentos. Por tudo isso resolvi falar um pouco das peças aqui, que talvez se assemelhem um pouco às pessoas: quando elas estão por perto, nos rodeando, é preciso ter muita dedicação e paciência, mas quando elas vão embora sem avisar, chega a ser triste demais.

quinta-feira, maio 14, 2009

No fim de tudo, a beleza

Um amigo muito querido, citando um notório psicanalista, me disse há algum tempo que sempre que estivermos em dúvida diante de algo novo, seja um projeto, uma perspectiva de emprego, uma situação inusitada, um convite ou até mesmo um espetáculo, devemos nos deixar guiar pela beleza. Segundo ele, a presença da beleza seria o principal indicativo de que esta novidade (talvez nem precise ser uma novidade) merece o nosso crédito. Acredito que ele não se referia à beleza como um conceito estético, pois nem sempre é pelo olhar que o belo se nos revela. Penso que ele falava da beleza como uma coisa mais abstrata, talvez algo ligado ao prazer, não sei ao certo. Provavelmente a beleza como um ensinamento. O que eu sei é que, embora aparentemente simples, ou talvez em função mesmo desta simplicidade, esta é uma daquelas lições que podem nos acompanhar para sempre.

Desde aquela nossa conversa, que gerou inúmeras outras, eu confesso que passei a procurar sempre pela beleza nos momentos de dúvida. Por algum tipo de beleza, mesmo a beleza que pode se esconder atrás do erro ou do descaminho. E, embora eu seja novato nesta busca, posso assegurar que não se trata de tarefa fácil. Encontrar a beleza num filme, na voz humana gravada em alguma canção de qualidade, nas páginas de um livro, nas tintas de um quadro, no sorriso de uma criança, na imagem de uma mulher amamentando, tudo isso chega a ser tranqüilo diante da dificuldade de detectar a beleza quando somos obrigados a dizer ou a ouvir um não, quando temos de nos despedir de algo que nos é caro, quando a vida nos surpreende com o inesperado, quando as nossas esperanças se tornam frágeis, quando a única voz que ouvimos é a nossa própria, quando a noite demora a ir embora, quando somos obrigados a encontrar algum tipo de força em lugares em que ela aparentemente não se encontra, quando os nossos pensamentos insistem em voltar para a cena do crime, seja lá qual for o crime, enfim, quando estamos determinados a ir para algum lugar aonde ninguém pode nos alcançar.

É nestas horas que a busca pela beleza se configura num grande desafio. Porque tudo isso descrito ali em cima em algum momento vai nos assaltar, ou hoje ou daqui a pouco. Encontrar a beleza, creio eu, talvez seja encontrar um significado e uma razão para o que nos contraria, talvez seja se agarrar à certeza de que cada uma das experiências que a princípio não se revelam belas, pode nos tornar um pouco mais belos com a superação. Eu particularmente não gosto de rosas, mas agora vejo que é bem provável que a beleza das rosas esteja no lugar que ela ocupa no mundo: equilibrada em cima de galhos finos, ressecados e cobertos de espinhos.

O mais importante para mim eu percebi, desde aquela conversa, não é o ato final de encontrar a beleza, mas a manutenção de sua busca, na esperança talvez vã de que em algum momento ela pode mesmo se revelar. E, mais importante ainda, é ter encontrado alguém com a delicadeza de me ensinar esta lição. Tão fácil, mas que eu passarei o resto da vida tentando exercitar.

segunda-feira, maio 11, 2009

E aí, vai encarar?

Outro dia me flagrei em uma banca de jornal bisbilhotando um livrinho de bolso chamado A Arte da Guerra, do chinês Sun Tzu, um manual sobre estratégias de combate que teria sido escrito bem antes de Cristo. Não sei por qual motivo, mas me lembro que, há uns dois ou três anos, vários amigos atores falavam muito deste livro que, pesquisando depois, descobri que teria sido adotado por Napoleão Bonaparte e Hitler em suas campanhas – ainda que eu não saiba se esta informação tenha alguma relevância. Li uns dois ou três conselhos apenas e já me dei por satisfeito, pois sinceramente não me vejo entrincheirado à espera de enfiar uma baioneta na barriga do inimigo, por mais metafórica que esta imagem possa ser.

Deixei a banca pensando não na guerra, que acho hiperbólica demais, mas nas brigas cotidianas. Eu sempre achei que saber brigar também é uma arte, mas não me lembro de ter visto algum manual que nos ensine a entrar – e principalmente a sair – de uma briga com pose de herói. E não estou falando dos combates físicos, destes que podem terminar em sangue e tiros. Estou falando dos acalorados embates de ideias, que no máximo resultam em socos na mesa ou e-mails malcriados. Pensei nisso porque eu sempre fui um verdadeiro fiasco nas brigas. Passei a infância toda muito longe da imagem do valentão do bairro e confesso que não me lembro de quando foi a última vez em que ergui a voz contra alguém.

Claro que isso não faz de mim um gentleman, ou um cara diplomático e ponderado. Talvez eu até seja um pouco, mas a questão não é esta: a questão é que eu não sei mesmo brigar. Porque a briga, na minha opinião, não se limita necessariamente ao instante em que ela ocorre – essencial é saber como agir depois dela. É muito comum ouvirmos que alguém é estourado, que reclama alto se não gosta de alguma coisa mas que, cinco minutos depois, já está tudo bem. Já tive chefes assim e acredito que muita gente também teve. E dominar este tipo de conduta, penso eu, é quase uma arte: saber elevar por um instante a temperatura de uma discussão e, no momento seguinte, tenha-se ou não chegado a um consenso, dar um tapinha nas costas do adversário e convidá-lo para um café. Nunca consegui esta proeza na vida, por isso faço o possível para evitar as brigas: sei que vou precisar de muito tempo para voltar ao normal, esquecer as mágoas que me causaram e aquelas que eu causei. E estas, para mim, são as piores.

Nas poucas vezes em que briguei, eu acredito que estava com a razão em algumas situações. Mas minha consciência pesava tanto, justamente por ter cedido à tentação de brigar, que eu costumava procurar a pessoa com quem havia brigado e me desculpar até do que eu não tinha feito. Talvez seja um sinal de fraqueza, covardia até, mas eu nunca soube mesmo lidar bem com o day after das brigas: eu sempre achei que a situação poderia ter sido evitada. Se não pelo outro, ao menos por mim. E, com o tempo, descobri uma coisa: para mim, hoje, é preferível relevar algumas opiniões com as quais não concordo, a ter de sair por aí batendo boca com deus e o mundo. Isso não quer dizer que eu não lute para fazer valer minhas opiniões também, mas, ao contrário do que deve ensinar Sun Tzu em sua milenar Arte da Guerra, estou me tornando um perito em bater em retirada diante da ameaça do primeiro tiro. Minha aversão por brigas é tamanha e o tempo que levo para digeri-las é tão grande que, vez ou outra, tendo a concordar que o sol é quadrado só para poupar eventuais mágoas. Não abro mão de minhas convicções, é claro, mas elas não saem mais da minha boca aos berros e com as veias do pescoço infladas. Quem quiser que grite à vontade, pois eu, a cada dia, estou me tornando mais amigo do sussurro.

Eu acho que este meu método anti-Sun Tzu só tem uma contra-indicação, pois meus estudos militares ainda não estão devidamente concluídos: eu tenho medo de que, ao evitar, ou mesmo fugir, do inimigo externo, a gente acabe criando um invencível inimigo interno. E então, todas aquelas batalhas que deveríamos travar com os outros, serão transferidas para a nossa própria alma, e passaremos anos e anos nos combatendo, nos ferindo e nos sangrando, com o mais terrível dos agravantes: quando nós mesmos somos os autores das nossas mágoas, normalmente esquecemos de nos pedir perdão no dia seguinte.

quinta-feira, maio 07, 2009

Um dedo de prosa

Às vezes, algumas histórias incríveis estão tão perto de nós e não nos damos conta delas. Tudo porque raramente paramos para conversar com calma e tempo com algumas pessoas que estão à nossa volta. Hoje à tarde eu me permiti um demorado café com um amigo com quem eu só andava conversando por e-mail ou torpedos. E, depois de umas duas horas de papo, descobri o quão pouco eu sabia a respeito dele. Dentre as várias histórias que ele me contou, uma atraiu de modo particular a minha atenção.

Quando tinha 13 anos, este amigo decidiu se dedicar aos esportes – até então, eu achava que o máximo que ele fazia era correr 20 minutos na esteira como eu, e isso em dias de muito ânimo. Ele se matriculou em uma escolinha de futebol e, embora acreditando que não tivesse talento algum no gramado, apostou no esforço pessoal para ser reconhecido. Passou, então, a treinar todos os dias, fins de semana aí incluídos. Nos primeiros meses, ele nunca era escalado para as partidas mais sérias na tal escolinha – o que só fazia crescer a sua determinação para treinar mais e mais. Sempre que era deixado de fora das escalações, no dia seguinte ele aumentava a disciplina nos treinos. Queria provar que merecia estar ali. Até que todo o esforço começou a dar resultado.

Aos 15 anos, foi contratado por um time do interior paulista e, prestes a completar 18, foi levado para um time da Espanha e, de lá, para a França. Não eram grandes clubes e ele nunca chegou a brilhar na Europa: disputava alguns campeonatos regionais e ganhava o suficiente para viver bem e guardar alguns trocados. Mas, afinal, estava na Europa e nas mãos de um bom empresário. Então ele começou a se perguntar por que, já com mais de 20 anos, sua carreira não deslanchava. A resposta, surpreendente, foi se revelando aos poucos: ele descobriu que o problema não era a pretensa falta de talento, que havia sido mascarada graças a uma disciplina espartana. O problema era a falta de paixão. Com pouco mais de sete anos de carreira e dezenas de jogos e treinamentos nas costas, ele se deu conta de que nunca amara realmente o futebol. Começou a jogar por um impulso da adolescência e quis provar a todos aqueles que o rejeitaram que ele um dia poderia driblar como um Ronaldo ou um Kaká. Ele nunca chegou a tanto, é verdade, mas seu futebol dava para o gasto. Mas quando finalmente provou que havia aprendido a jogar e que sua carreira tinha ido mais longe do que a de todos aqueles que um dia duvidaram dele, a brincadeira perdeu a graça. Ele gastara sete anos da vida tentando agradar seus detratores sem jamais pensar em seu prazer pessoal.

Ele abandonou o gramado, voltou para o Brasil, tentou uma nova profissão bem longe dos campos e, em pouco mais de um ano, todas as economias trazidas da Europa haviam sido consumidas em uma série de projetos fracassados. Sem dinheiro, viu-se obrigado a fazer os bicos mais improváveis – da construção civil ao cultivo de lavouras. Nunca mais teve coragem de ver uma partida de futebol, nem mesmo pela televisão. E então novas oportunidades profissionais foram surgindo em sua vida – e foi uma delas que de certa forma nos aproximou. Atualmente com dois empregos, ele começa a ver a nuvem negra se dissipar. De tudo isso, ele disse ter aprendido uma lição para toda vida: nunca mais quer fazer nada apenas para provar aos outros que é capaz de fazer alguma coisa. Disse que o preço é alto e a satisfação nunca chega. Eu fiquei feliz com esta história e também com o fato de ter deixado o e-mail um pouco de lado para ouvir o que alguém tinha realmente a dizer. Recomendo.

segunda-feira, maio 04, 2009

A falta do cinza

Passei o fim de semana do feriado em uma cidadezinha rodeada de montanhas na divisa entre São Paulo e Minas Gerais. Um lugar sem prédios altos, sem ruas contramão e com no máximo dois ou três faróis de trânsito. Um lugar em que o café da manhã tem broas de milho e queijos caseiros, em que é possível estacionar nos dois lados das ruas, não há flanelinhas e, pelo que informam os moradores locais, nem ladrões. É impressionante como estes detalhes passam a ser tão valiosos para quem vive em São Paulo – são lugares em que nossa guarda se baixa naturalmente e até nossa respiração parece se tornar mais alongada. No sábado à noite, enquanto caminhávamos pelas ruas quase desertas do centro, perguntei à amiga que me acompanhava quantas pessoas ela acreditava viverem ali? Umas trinta mil, ela me respondeu. Eu fui um pouco mais exagerado e chutei 50 mil. Na manhã de domingo o dono da pousada esclareceu nossa dúvida: os moradores não passavam de dez mil.

Não sei se é algo que ocorre só comigo ou com todo mundo que visita uma cidade pequena: depois desta tranqüilidade inicial, propiciada pela simpatia e gentileza dos moradores, pelo relógio que parece andar mais devagar , pelo olhar que alcança o horizonte e pela falta de sinal no celular, o que desponta é uma certa melancolia. É uma sensação confusa de quem, de certo modo, aprecia aquele ritmo de vida aparentemente mais humano mas que não quer, por nada deste mundo, fazer parte dele. Eu olhava para os lados, para aquela profusão de escadarias e casarios coloridos, para aqueles becos mal iluminados, para as torres de tantas igrejas e internamente me perguntava onde estavam os cinemas, os teatros, as farmácias e restaurantes abertos 24 horas, os carros da polícia, os caixas eletrônicos, as buzinas, o congestionamento das madrugadas e até o pânico de estar sendo seguido. Eu me perguntava, em resumo, onde estava tudo aquilo que costuma me dar medo e prazer aqui em São Paulo.

E então naquele momento surgiu uma idéia que talvez se revele extremamente preconceituosa, mas o simples fato de ela ter surgido me obriga a torná-la pública aqui: será que é possível ser feliz quando se tem aparentemente apenas uma pracinha ao redor da qual caminhar e algumas barraquinhas de comida na frente da igreja matriz? Quando todos se conhecem e se chamam pelo nome? Quando chegar em casa não exige mais do que cruzar dois quarteirões? Ao mesmo tempo em que tudo me parecia tão bucólico e tão tranquilo, algo em mim dizia que minha paciência se esgotaria na manhã seguinte e eu teria urgência de encher meus pulmões novamente com ar poluído. O que me assusta, de verdade, nesta rotina das cidadezinhas é a ausência do acaso. Tenho a impressão, provavelmente errônea, que o dia seguinte será muito parecido ao dia de hoje e que todos os dias que estão por vir talvez sejam insuportavelmente semelhantes. Não sei se os nossos aqui são tão diferentes assim, mas acredito que existem condições para que o sejam.

Tudo o que eu não queria aqui era escrever um post esnobe, com aquele tom afetado de quem fala como se vivesse na 5ª. Avenida em Nova York. Meus pais moram em Jundiaí, que não chega a ser uma cidade exatamente pequena, mas também está longe de ter os atrativos de uma cidade grande: eles não sairiam de lá por dinheiro nenhum do mundo. Odeiam São Paulo e não entendem como alguém com o juízo perfeito consegue viver aqui. Na cabeça deles, eu estou aqui dando um tempo e logo logo volto para lá – ainda que este tempo já se prolongue por duas décadas. Tudo do que eles precisam, costumam dizer, está logo ali, no bairro em que vivem ou no centro, onde se é possível chegar a pé.

Talvez a angústia deles em relação a São Paulo e minha angústia em relação às cidadezinhas compartilhem de uma pergunta comum: o que é necessário, afinal, para sermos felizes onde vivemos?