domingo, novembro 25, 2007

Um best seller para o Natal

Leio, como milhares de pessoas acredito eu, os trechos do livro em que a jornalista Mônica Veloso promete discorrer sobre os bastidores do poder em Brasília. A coluna da Mônica Bérgamo, na Ilustrada deste domingo, publicou alguns destes trechos. A primeira impressão é a de que Mônica vai falar pouco da Brasília capital mundial dos conchavos e da corrupção e muito da Brasília que serviu de cenário para seu romance com o senador Renan Calheiros. Um romance que teve como trilha sonora a música do filme Lisbela e o Prisioneiro executada a três vozes: na emocionante de Caetano Veloso e nas, penso eu, provavelmente desafinadas de Renan e da própria Mônica. O amor, está provado, realmente é lindo.

O livro de Mônica Veloso, escrito em tempo recorde como ensinam as leis do marketing, é a prova definitiva daquilo que todos já intuíam: todo mundo nesta história teve direito a um final feliz. Renan Calheiros, como anunciou a revista Veja desta semana, deve ser absolvido de todas as inúmeras acusações que pesavam contra ele, em troca da aprovação da CPMF. Soubemos que ele teve suas contas pessoais pagas por uma lobista, vendeu gado superfaturado para empresas fantasmas, usou laranjas para adquirir empresas de comunicação em sua Alagoas natal e tudo vai para o arquivo, do Senado e da nossa memória, porque uma oportuna conjunção de fatores políticos o transformou em peça-chave para a continuidade do imposto que pagamos a cada vez que movimentamos nosso suado dinheirinho no banco.

No caso de Mônica, o destino se mostrou ainda mais benevolente: além de ter faturado uma nota posando nua para a Playboy, o que é um direito indiscutível dela, provavelmente vai ganhar mais uns belos trocados com suas confissões de mulherzinha romântica que, vejam como a sorte é ingrata, foi cair de amores justamente por um dos homens mais poderosos da República...Mônica e Renan terão um lindo Natal e nós, se quisermos comprar uma sidrae um panetone com cheque, pagaremos alguns centavinhos para o governo federal por conta desta CPMF prorrogada.

Mas eu acho que merecemos tudo isso, e mais todo o resto previsto para cair nas nossas cabeças. Penso como seria fácil mostrar a nossa indignação diante de tudo isso: era só cruzar os braços e, por exemplo, não comprar a Playboy que trouxe Mônica na capa. Os franceses, os argentinos, os americanos e tantos outros povos mais maduros que nós, saem às ruas, com ou sem razão, sempre que alguém pisa em seus calos. Aqui, ninguém precisava bater panelas nas esquinas. Bastava não comprar a Playboy com Mônica na capa e, me desculpem pela falta de elegância, continuar batendo punheta com a revista do mês anterior. Este encalhe da Playboy seria uma maneira muito mais gostosa de gozar na cara desta situação toda. Mas o que foi feito? Todos corremos às bancas para ver as curvas e a borboletinha tatuada na bunda da mulher que o senador tinha papado. Bem feito pra gente. Teremos, agora, uma segunda chance de realizar o protesto que não foi feito há dois meses: cruzar os braços e não comprar o livro de Mônica...

Claro que é uma ilusão idiota. Em poucas semanas, o livro estará na lista dos mais vendidos e será, seguramente, o presente mais requisitado nas festas de amigo secreto. E não duvido que, em questão de dias, surja um cineasta que de tão comovido com o relato pungente de Mônica, mostre-se disposto a transformar em filme suas confissões tão oportunas.

Na mesma Folha em que lemos sobre o livro de Mônica e na mesma revista Veja que anuncia a absolvição de Renan, vemos também a tragédia da adolescente de 15 anos que foi estuprada seguidas vezes durante os dias que passou presa numa cela só com homens, no Pará. A jovem teve os pés queimado com cigarros, seu cabelo cortado com facão e era estuprada em troca de comida. Por que colocá-las no mesmo saco, alguém poderia perguntar. Simples. Porque, cada uma a seu modo, Mônica e esta pobre adolescente estão aí para esfregar na nossa cara dois lados de um Brasil hipócrita, perverso, selvagem e hediondo.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Se o mundo acabar em rede...

Aprendi muitas coisas depois que comecei a me envolver mais diretamente com o teatro e suas diversas tribos. Entre todos os conceitos que eu fui tentando assimilar, existe um que até hoje me provoca estranhamento. É o da tal da inveja branca. Inveja a gente sempre conheceu, desde a infância - seja como autores dela ou, quem sabe, como objeto de seu desejo nem sempre salutar. E então os atores apareceram na minha vida para me ensinar que inveja branca é legal. Na primeira vez em que ouvi o termo, fiquei com vergonha de perguntar o que ele significava. Na verdade, até hoje ninguém me ensinou, mas acho que aprendi sozinho com o tempo e com as sucessivas repetições. Acho que inveja branca é quando você quer muito alguma coisa, mas aceita olimpicamente o fato de que esta coisa esteja melhor nas mãos de outras pessoas - e não sofre por causa disso. Mas não é para sofrer mesmo, ou a inveja vai se tornando bege, creme, palha, palha queimada, cinza claro, cinza escuro, chumbo e finalmente negra, como é aquela outra inveja da qual a gente não consegue se libertar, mesmo colocando uma imagem do Buda em cada cômodo da casa.

Pois então eu cheguei à conclusão de que sinto inveja branca do Duilio Ferronato, do Ivam Cabral, do Alberto Guzik, do Caetano Vilela, do Márcio Gaspar e de todos os outros amigos que conseguem atualizar seus blogs todos os dias - às vezes, mais de uma vez por dia, o que torna a minha inveja parecida com uma geleira, de tão alva e límpida. Eu gosto de escrever neste blog, é claro. Mas sempre parece haver algo mais urgente a ser feito. E, mesmo quando não há, ainda pesa aquela sensação de que tudo que eu possa vir a dizer não será capaz de despertar o interesse de quem quer que seja. Daí para a desistência, é um passo. Ainda mais no meu caso, um expert eme abandonar hoje o que até ontem era a razão da minha vida.

Eu desisto de quase tudo que começo. Entro numa escola de inglês, por exemplo, e saio dizendo que finalmente vou ter a fluência de um Paul Auster no idioma do Shakespeare. Três meses depois, emperrado diante das preposições e dos diversos tempos verbais que eles têm para indicar ações passadas, eu pulo fora. E encontro ótimas desculpas para a desistência. A melhor delas é sempre esta: eu passei para um estágio avançado, mas tão avançado, que só tem aulas às sete da manhã...muito cedo pra mim!

Depois, descubro a iôga e acredito que, novamente em três meses, eu vou ser aceito como contorcionista no Cirque du Soleil, desbancando aquelas chinesinhas que cabem dentro de uma caixa de bombom Garoto. Quando descubro que o máximo da minha flexibilidade permite apenas que eu apanhe uma moeda no chão sem ter de colocar as mãos nos quadris, paro com tudo de novo. E foi assim com a bicicleta Caloi 10, que eu comprei e só usei três vezes, com a grelha George Foreman, que em três anos de vida só viu dos hambúrgueres, com o aparelho de fazer abdominal, que se revelou, já na segunda semana, o melhor lugar da casa para secar as toalhas de banho, com a batedeira de bolo, cujos garfos são ótimos para coçar as costas e assim com tantas outras coisas cujos poderes miraculosos desapareceram assim que cruzaram os batentes da minha casa.

Usei todos estes exemplos para demonstrar que faço um esforço supremo para manter este espaço mais ou menos atualizado - e por isso a tal inveja branca dos amigos que vêem em seus blogs uns adoráveis tamagochis que precisam ser alimentados religiosamente todos os dias. Mas eu não sou preguiçoso, não mesmo. Os que me conhecem sabem o quanto me dedico ao trabalho, aos amigos, aos compromissos... eu só não tenho muita disciplina, o resto eu tiro de letra. E como prova de que eu consigo levar adiante algumas coisas, informo aqui que estou entrando no quarto mês da academia de ginástica. E acabo de ser convidado para correr dez quilômetros ao lado dos alunos mais assíduos. Só não aceitei porque me conheço bem: além da falta de condicionamento, sei que depois de correr dois ou três quilômetros, eu ia começar a prestar atenção nos anúncios das escolas de inglês, nas vitrines com bicicletas e grelhas em ofertas, e pararia de correr para ir, feliz da vida e extremamente confiante, atrás de tudo aquilo que me promete a felicidade com pouco esforço...

quinta-feira, novembro 15, 2007

Por um mundo sem palitos

Este ano eu endossei muitas campanhas que me chegaram pela Internet, todas com um inegável objetivo (ou apelo) social, humanitário ou ambiental. Bom, em primeiro lugar, esta divisão já me parece ilógica: nos dias que correm, estas três coisas não devem ser mais vistas de forma isolada. Botei meu nome na campanha contra a prorrogação da CPMF, contra a continuidade da exploração irracional da Amazônia, contra a lei que previa cortes nos recursos destinados ao Sesc, Sesi e Senac, contra a morte cruel dos animais nos centros de zoonose, contra a utilização dos burrinhos que puxam carroças em pleno ano de 2007 no centro de Porto Alegre, contra a permanência de Renan Calheiros na presidência do Senado e outras tantas que, nesta sexta-feira de chuva e frio, me fogem à lembrança.

Talvez por ter sido tão entusiasta destas campanhas virtuais, me reservo o direito, agora, de lançar minha própria campanha, de caráter muito mais restrito, de alcance pouco nobre, de simpatia duvidosa e, acima de tudo, de interesse próximo do zero. Mesmo assim, vou lançá-la: dou início hoje, como um Don Quixote dos bons modos, a uma campanha contra as pessoas que palitam os dentes em público! Elas não só existem, como estão se multiplicando de modo assustador. Estes gremlins, que representam um ataque diário à boa educação à mesa, estão escapando dos restaurantes por quilos (dos quais sou frequentador diário) para atacar também naqueles ambientes um pouco mais chiques e caros, onde a gente só vai quando é convidado ou quando a situação exige toalha de linho branco sob nossos pratos - sem couvert e sem sobremesa, por favor, que a situação tá brava.

Uma vez um leitor perguntou para a Danuza Leão se existia alguma ocasião em que era possível palitar os dentes. Ela respondeu que só se a pessoa estivesse trancada no banheiro, com a luz apagada e de costas para o espelho, pois a situação é tão desagradável que não merece ser testemunhada nem pelo próprio autor. Fecho questão com a Danuza. Palitar os dentes em público é abominável. Passar cotonete nos ouvidos ainda é prazeroso: faz uma coceguinha, lembra um carinho e remete à uma ternura materna de infância. Mas que prazer existe em palitar os dentes? Alguém se lembra de algum dia a mãe ter nos procurado com um palito afiado na mão e mandado a gente abrir a boca para ela cavoucar no esconderijo dos nossos molares? Nunca, não é! É um raciocínio simples, confesso: mas se nunca nos ensinaram, nem na escola e nem na nossa casa, que os dentes devem ser palitados, por que raios as pessoas continuam fazendo isso uma na cara das outras?

Uma noite dessas entrei no restaurante Piolim, ali na Rua Augusta. Numa mesa de canto estava, vestida toda de preto, uma das melhores atrizes da nova geração, num papo animado com um rapaz que eu não conhecia. Terminado o jantar, com a graça de uma Julieta, ela começou a palitar todos os seus muitos dentes. Pronto, na hora ela se transformou, para mim, na noiva do Shrek. É implicância minha? Claro que é. Podem dizer que é viadagem, mas uma estrela não palita os dentes em público. Aliás, não palita os dentes, e ponto final. Alguém é capaz de imaginar Audrey Hepburn com um palito nas mãos? É capaz de ver Nicole Kidman tirando um fiapinho de salmão que entalou entre seu canino e o primeiro molar? Já imaginou um palito interferindo na simetria perfeita e carnuda dos lábios de uma Marilyn Monroe? Quer tirar totalmente o glamour, a compostura e a elegância de uma pessoa? Dê-lhe um palito de dentes. Não há nada que resista a eles.

Pronto, lancei as bases e os argumentos da minha campanha. SEi que ela não terá alcance nenhum e que, já no almoço de amanhã, vou vê-la naufragar na mesa ao lado da minha. Tem gente que sonha com um mundo mais justo, um mundo sem criminalidade, um mundo em que as crianças tenham um futuro garantido, um mundo verde em que o meio ambiente e os animais sejam respeitados, um mundo mais compreensivo e seguro. Eu sonho e luto por tudo isso também. Mas confesso que vou ficar muito mais feliz se neste mundo ideal não houver mais lugar para os palitos!

quarta-feira, novembro 14, 2007

Um grande mistério da infância

Quase ninguém ainda se conhecia pelo nome. Éramos trinta e poucas crianças, assustadas em nossos sete anos, diante daquela professora que, embora bondosa, nos obrigava a passar quatro horas fazendo exercícios de caligrafia para que nossos punhos e dedos selvagens se habituassem com os mistérios da escrita nos quais dávamos os primeiros passos. Os uniformes ainda não estavam prontos, nem os cadernos haviam sido encapados. A espera pela chegada da primeira cartilha, a famosa Caminho Suave, foi quebrada por um baque seco no fundo daquela classe do primeiro ano primário: um dos nossos, um aluninho de cabelo preto cortado escovinha, caiu desmaiado no meio da aula.

Acho que nenhum de nós tinha presenciado antes um desmaio ao vivo. A professora o socorreu imediatamente e logo vieram em seu auxílio a diretora e uma velha zeladora da escola. Naquele dia, ele não voltou às aulas. Quando cheguei em casa, contei a aventura para minha mãe, que não teve dúvidas quanto ao diagnóstico: o menino desmaiara de fome. No dia seguinte, eu voltei para a escola levando dois lanches. Sinceramente não me lembro do que era o meu lanche, mas ainda consigo enxergar o dele: um imenso sanduíche de pão com mortadela. Assim que eu o vi - todos o viram muito bem no dia seguinte - caminhei em direção a ele, como um escoteiro, levando minha oferenda na mão. "Toma aqui, minha mãe mandou te dar. Ela falou que você desmaiou de fome". O menino não pegou.

Inconformado com esta recusa, procurei a professora para dizer que eu havia trazido um lanche para o menino do desmaio. Ela também tentou convencê-lo, sem sucesso, a aceitar minha gentileza. O lanche ficou na mesa da professora e não me lembro se algum outro aluno o pegou ou se ele foi mesmo parar no lixo.

Algumas semanas depois, todos os alunos foram submetidos a alguns exames médicos que diziam ser rotineiros. Primeiro, o exame de vista; depois o de fezes. Em um dia, recebíamos as latinhas de alumínio para colhermos as fezes. No dia seguinte, deveríamos trazê-las cheinhas, devidamente embrulhadas e com nosso nome completo escrito numa tira de esparadrapo. O resultado ficou pronto duas semanas depois, e causou uma surpresa geral. A classe todinha, incluindo as meninas, tinham oxíuros, aqueles bichinhos brancos que costumam provocar uma insuportável coceirinha no fiofó. Só um único aluno estava livre dos tais oxíuros: o menino que havia desmaiado. Neste dia aprendemos o nome dele: Mauro. Primeiro pelo desmaio e depois por seu cocozinho imaculado, Mauro se tornou o aluno mais famoso da turma. O único que, segundo a professora, nunca andava descalço e por isso não tinha vermes. Mais uma lição pra gente aprender.

À medida que os dias iam correndo e as crianças iam se conhecendo melhor, ficamos sabendo que Mauro também era o aluno mais rico da classe. O pai dele era dono de uma grande transportadora e de escritórios de contabilidade, instalados na rua mais movimentada do bairro, a primeira a ser pavimentada em toda sua extensão. Nunca soubemos por que Mauro desmaiou naquele dia, mas seguramente não tinha sido de fome. Quando contei para minha mãe a que família Mauro pertencia, ela demorou a se dar por vencida. "Esses ricos, grande coisa, nem sabem cuidar das crianças..."

domingo, novembro 11, 2007

Romeu, Julieta e algumas pulgas.

Até aquele dia, todos os nossos cachorros haviam sido vira-latas. Uns bichinhos amorosos, que se serviam dos restos das nossas refeições e eram chamados de nomes banais como Bob, Duque e Sultão. Nunca nenhum deles soube o que era um consultório de veterinário. Viveram muitos anos e só ficaram doentes uma vez na vida - para morrer. E então meu irmão apareceu em casa com um filhote diferente, uma robusta e legítima fêmea de pastor alemão. Junto com ela, um saco de ração para cachorros, pois ela devia ser nobre demais para comer arroz, feijão e algum pedaço de carne acomodados em uma latinha de goiabada. Demos a ela o nome de Dione, mas ninguém a chamava em voz alta no quintal porque, soubemos logo depois, Dione era também o nome de uma enfermeira que se mudara três casas depois da nossa. E, para aumentar o constrangimento, Dione, a enfermeira, começou a tratar de um tio que morava na rua ao lado. Em nome da boa vizinhança e da saúde do meu tio, chamávamos a cachorra bem baixinho e ainda assim só quando não havia ninguém por perto.

Dione cresceu muito e depressa. Não sei se pela genética de sua raça ou pelo amor incondicional que nutria por cada um de nós, ela se tornou um excepcional cão de guarda. Ninguém se aventurava pelo nosso quintal se ela estivesse solta. Mesmo tocar a campainha da casa tornou-se um gesto arriscado para os vizinhos. Ela vigiava a casa, a calçada e o pedaço de rua que conseguia ver através do muro. Me lembro de uma noite em que, ao voltar da faculdade, o guarda do quarteirão deu um tapinha em minhas costas em sinal de camaradagem. Nunca mais ele conseguiu trabalhar sossegado. Se pudesse, acho que ela avançaria até sobre sua sombra.

Quando ela entrou no segundo cio, meu irmão julgou prudente preservar aquela linhagem tão forte e altiva. Foi buscar, num sítio próximo, um macho da mesma raça, tão imponente quanto ela, ainda maior e mais forte. Diziam, e não sei se isso tem algum fundamento, que as cachorras sentem-se mais à vontade para o galanteio na própria casa: os machos é que devem vir até elas. Quando soltaram o macho no nosso quintal, ela revelou seu lado mais bestial: seus pêlos de um marrom escuro eriçaram-se, os caninos escaparam dos limites da boca e seu latido se transformou num rosnado ameaçador. E foi assim, vestida para matar, que ela avançou sobre o macho invasor. Depois de dez minutos, ele era levado de volta ao sítio, com o nariz sangrando e todo seu tesão canino reprimido. Achamos que Dione não estava pronta para uma noite de núpcias, ou talvez não tivesse aprovado o noivo escolhido pela família.

Dois dias depois, quando meu irmão levantou-se cedo para ao trabalho, Dione dormia feliz na área de serviço, ao lado de um cachorrinho vagabundo, sem lenço e sem documento, sem pedigree e de procedência desconhecida. E, ainda por cima, com apenas a metade do tamanho dela. Não pode ter acontecido, praguejou meu irmão, enquanto mostrava o caminho da rua para o invasor. Mas aconteceu. Algumas semanas depois, suas tetinhas já estavam inchadas, sua barriga havia se transformado numa bola e seu latido era um canto de felicidade. Meu irmão passou alguns dias andando pelo bairro, atrás daquele cachorro. SEria ele saudável, estava vacinado, tinha ao menosr um dono ou um pedaço de tapete surrado sobre o qual dormir? Nunca mais o cão foi visto, ninguém soube de onde ele vaio e para onde ele foi.

Dois meses depois de sua lua-de-mel subversiva, Dione voltou à area de serviço onde havia perdido a virgindade tão bem guardada pela família. Com seus dentes afiados, tosou uma quantidade imensa dos seus próprios pêlos para fazer uma espécie de caminha para os oito filhotes que nasceriam a seguir. Todos com a cara dela, todos com o tamanho dele. O primeiro filhote nasceu às 11 da noite, o último, quase às quatro da manhã. A cada filhote que vinha ao mundo, ela cortava a placenta com os dentes, deitava-se e, carinhosamente, mostrava-lhe o caminho de uma de suas tetas. Ficamos todos, eu, meu pai, minha mãe e meu irmão ali, ao lado dela, acompanhando emocionados aquele longo trabalho de parto. E, do lado de fora da casa, como o mais zeloso dos pais, o cachorrinho vira-lata assistia a tudo através das grades do portão. Durante os dois meses da gravidez, nunca mais ninguém o vira no bairro. Mas, no dia do parto, ele voltou, exatamente na hora em que o primeiro cachorrinho nasceu. E se foi, sabe-se lá para onde, assim que o último cachorrinho aninhou-se nas tetas generosas da mãe. Talvez tenha ido prestar o mesmo tipo de assistência para alguma outra cachorra a quem ele seduziu durante suas andanças noturnas. Quem sabe foi embora porque, instintivamente, soubesse que Dione e seus oito filhos seriam muito bem tratados e que sua presença era mais necessária em outro lugar.

Faz tanto tempo que tudo isso aconteceu. Dione morreu aos onze anos, de câncer, e seu enterro teve todas as lágrimas que normalmente são guardadas para os humanos. Seus filhotes, a esta altura, estão todos mortos também, bem como o vira-latinha que apareceu em nossas vidas em apenas duas noites. Mas de quem eu nunca me esqueço. Pela sua dedicação e por sua ingênua capacidade de nos mostrar que, quando se está realmente disposto, não há grades, portões altos, pedigrees e famílias bravas a nos separar da nossa felicidade.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Um Itaú de vantagens

Sou cliente do Unibanco. Não que isso signifique grande coisa. Mas como temos de ser clientes de algum banco nesta vida, optei por um que me dá direito a meia-entrada nos cinemas Arteplex e Unibanco e que eliminou, pelo menos nas duas agências que costumo frequentar, aquelas pavorosas portas giratórias que parecem satisfeitas somente diante da nossa nudez. Assim, no Unibanco, entro e saio feliz da vida (como se isso fosse possível em se tratando de um banco) com minhas moedinhas no bolso, a chave da minha casa e meu celular sem que um guarda precise me resgatar daquela prisão de vidro que me separa dos caixas.

Mas, nesta segunda-feira de chuva, percebi que não havia pago em dia meu condomínio. Como nenhum banco recebe contas vencidas de seus concorrentes, fui obrigado a ir até o Unibanco sacar dinheiro vivo para só depois me dirigir ao Itaú e pagar o condomínio atrasado. Claro que as coisas não começaram bem. Quem pode ser feliz se tem de sair de casa numa manhã de segunda-feira chuvosa para enfrentar dois bancos? No Unibanco deu tudo certo - havia apenas uma pessoa na minha frente. Saquei a grana e fui até o Itaú, ao lado do metrô Vila Madalena.

Primeiro passo: colocar celular, chave e as moedinhas na porta giratória. Tentei entrar. Não consegui. A porta acusou a presença do meu guarda-chuva comprado por dez reais num camelô da Rebouças. Penduro o guarda-chuva desajeitadamente na porta e tento entrar de novo. Em vão. Lá vem o guarda para me salvar. "O senhor tem de colocar o guarda-chuva e dar um passo atrás daquela linha amarela. E daí tenta de novo". Obedeci o guarda e consegui entrar. Tudo bem que o atrás da linha amarela já era quase fora da agência - e estava chovendo. Consegui entrar. Bufando, mas entrei.

Segundo passo: havia 23 pessoas na fila. E como era uma fila única, que serpenteava três vezes pelo interior do banco antes de chegar aos três caixas, isso equivale dizer que havia 23 pessoas na minha frente. Um dos caixas era, compreensivelmente, destinado às pessoas idosas que, sem maldade alguma, precisam de muito mais tempo para ser atendidas. Ou por alguma limitação no entendimento ou porque aproveitam este momento diante do caixa para contar como foram os últimos 55 anos de suas vidas.

Neste caixa preferencial, uma senhora idosa, de blusa de tricô azul, tentava pagar quatro carnês. O diálogo que se seguiu entre ela e o caixa, juro, foi mais ou menos assim:
Caixa: A senhora pode digitar a senha?
Idosa: O quê?
Caixa: A senha. A senhora digita a senha?
Idosa: Senha?
Caixa: Isso, sua senha.
Idosa: Minha senha?
Caixa: Isso, senhora. Sua senha, neste teclado aí na sua frente.
Idosa: Aqui?
Caixa: Isso, por favor.
idosa: Minha senha aqui?
Caixa: Senhora, por favor, se a senhora não digitar a senha não tenho como fazer o pagamento.
Idosa: Ah, a senha...Eu digito. Aqui?
Caixa: isso, aí...

Os diálogos pareciam saídos de uma peça teatral de algum escritor noruguês contemporâneo. Pouco antes de chegar minha vez de ser atendido, uma das caixas abandonou o posto. Voltou alguns segundos, com um copo de água na mão. Vi que seu volume de trabalho era tão elevado, que ela nem conseguia tomar uma água sossegada, lá na cozinha. Fiquei pensando em quantas vezes eu li, só neste ano, que bancos como Itaú, Bradesco e Banco do Brasil tiveram recordes históricos em seus balancetes. Claro que é fácil ficar rico desta maneira: você coloca só três caixas trabalhando feito loucas para atender um batalhão de 20 pessoas, provavelmente paga mal a elas e a todos os outros funcionários, cobra taxas exorbitantes dos correntistas e deixa os clientes um tempo imenso na fila...pô, assim até eu, que não entendo absolutamente nada de negócios, conseguiria ficar milionário. Como devem ser felizes neste governo as famílias Setúbal, Moreira Sales, Brandão e tantas outras que vêem as curvas dos seus balancetes ultrapassando o teto dos arranha-céus em que elas costumam despachar. E como, para elas, poderia ser agradável um terceiro mandato do Lula... Quem sabe elas não topariam até financiar mais este desvario....Enquanto nós continuaremos lá, onde sempre estivemos: quietinhos e obedientes nas filas.

domingo, novembro 04, 2007

Arte ou sacrifício?

São duas da tarde do feriado de dois de novembro, uma sexta-feira de tempo insuportavelmente abafado. Chego à bilheteria do Cine Bombril, no Conjunto Nacional, para comprar dois ingressos para a tal repescagem da Mostra de Cinema - na verdade um minifestival, logo após o período oficial da Mostra, em que são exibidos alguns títulos que o público escolheu ou, o que parece mais evidente, cópias cujas distribuidoras permitiram que ficassem no Brasil por mais alguns dias. Encontro uma fila de umas 15 pessoas à minha frente, uma fila que caminha muito devagar, o que só faz ressaltar o calor absurdo que fazia ali no Conjunto Nacional. E naquela hora, como em poucas vezes nos últimos tempos, eu me senti um completo idiota. Me perguntei o que eu estava fazendo ali, naquela fila lenta e enervante, se poderia estar fazendo qualquer coisa mais agradável ao ar livre, talvez almoçando na companhia de amigos, tomando chope em algum boteco com mesinhas na calçada, andando em algum parque ou simplesmente lendo em casa, de cueca, camiseta surrada e janelas abertas. Será que são realmente válidos os sacrifícios que fazemos sempre que queremos consumir algum tipo de arte?

Eu já tinha tido muito tempo para pensar nisso quando enfrentei uma inexplicável fila de quatro horas e meia para comprar minha credencial para a Mostra de Cinema. Alô, organizadores: até quando vai fazer parte do evento este ritual de sacrifício a que vocês submetem o público, hein? Na ocasião, disseram que o sistema caiu, os computadores ficaram fora do ar e, assim, as credenciais não podiam ser vendidas. OK, vamos acreditar nestas mazelas da informática e dar mais um crédito ao evento. Mas nesta sexta-feira de finados, depois de enfrentar dez dias de projeções, eu senti o quanto estava cansado de correr atrás dos filmes. E fiquei me perguntando se realmente valia a pena aquele sacrifício todo. Se eu havia me tornado uma pessoa melhor, um pouquinho mais culto e informado, de correr de uma sala para outra, às vezes comendo tranqueiras na rua para não perder os letreiros do filme seguinte... Claro que há algo de muito prazeroso em ir ao cinema - mas existe também uma fronteira muito nítida entre o prazer e o sacrifício em eventos como a Mostra de Cinema, o Tim Festival, a Flip e tantos outros que nos obrigam a comprar ingressos com semanas de antecedência, a enfrentar filas, a passar calor, a brigar por uma vaga no estacionamento, a ficar horas em pé, dormir mal, comer pouco... tudo isso em nome de quê, na verdade? Penso se fazemos tudo isso por que realmente saímos enriquecidos destas experiências ou, no fundo, estamos confundindo tudo isso com mais um tipo de consumo que nos escraviza? O que restou em mim dos poucos mais de 20 filmes que vi na Mostra? De quantos títulos eu ainda me lembro? Quantas histórias vão continuar na minha cabeça daqui a uma semana, um mês, um ano? E a mais triste das perguntas: quem me obrigou a isso?

Resolvi falar sobre este assunto com um amigo. Radical que é, ele não teve dúvidas ao me responder que toda esta correria não valia absolutamente de nada. A arte, disse ele, na maioria das vezes não faz outra coisa senão nos deprimir. Não acredito que seja exatamente assim. O que sei é que, naquela sexta-feira, eu vi apenas um dos dois filmes para os quais havia comprado ingressos. Quando acabou este primeiro filme, saí do cinema, caminhei pela Alameda SAntos até encontrar uma lixeira e ali, às nove da noite, rasguei e joguei fora o ingresso do segundo filme. Pode parecer cruel, mas poucas vezes eu fiz algo tão libertador. Graças a Deus, eu botei na cabeça que não precisava mais ver nada, graças a Deus eu tinha tirado dos meus ombros o peso de ver arte como se carrega pedra. E, acima de tudo, graças a Deus a próxima Mostra de Cinema é só daqui a um ano.