quinta-feira, junho 26, 2008

Eu sou um gato

Depois de idas e vindas, finalmente chego às últimas páginas do livro Eu Sou um Gato, escrito em 1905 pelo romancista japonês Natsume Soseki. Quando o livro foi lançado pela Editora Estação Liberdade, no início do ano, toda a crítica se apressou em comparar Soseki a Machado de Assis. Tal comparação é um irresistível convite à curiosidade de qualquer leitor. Embora eu tenha ficado um pouco reticente sobre isso, já que o narrador do romance é um gato sem nome, de pouco mais de um ano de idade. Cheguei a pensar que se tratava de uma fórmula fácil esta de eleger um bicho como narrador de um caudaloso romance - tudo pode se revelar fácil e compreensível sob o ponto de vista de um animal de quem não vai se exigir coerência alguma. Felizmente eu estava enganado. O gato pagão do romance é um personagem interessantíssimo, irônico e culto, sempre pronto a mostrar suas garras para a sociedade japonesa que, cem anos atrás, começava a se abrir para as influências do Ocidente. O gato do título, o alter-ego de pêlos e bigodes de Soseki, não faria feio se fosse hospedado num romance de Machado de Assis. Com um pouco de boa-vontade, ele seria bem vindo até no universo de Dostoievski, isso se ele fosse um gato um pouco mais taciturno e infeliz, e não é este o caso.

A primeira página do livro, na qual o gato, recém-nascido, demonstra seu horror diante do nariz dos humanos, já comprova que temos em mãos algo grandioso. Esta impressão só cresce na medida em que o bichano, ao ser adotado pela família de um professor universitário, passa a demolir com impiedosa soberba alguns hábitos da intelectualidade japonesa - entre eles o de escrever diários, redigir teses acadêmicas sem utilidade alguma e tentar dominar o idioma inglês. À moda de Proust, Soseki é capaz de gastar inúmeras páginas para detalhar, por exemplo, como os urubus pousam sobre uma pequena cerca de bambu que margeia a casa do professor. É um obstáculo, confesso, mas quando nos damos conta de que os gatos têm todo o tempo do mundo a gastar com urubus em cerca, vemos que estamos sendo apenas impacientes.

A narrativa de Eu sou um Gato ganha um peso e uma densidade consideráveis quando, lá pela metade do livro, o pequeno gato sem nome, impossibilitado de conviver com outros felinos, decide se humanizar. É uma metamorfose pungente, um pequeno tratado sobre todas as vezes em que abandonamos alguns princípios inerentes à nossa condição apenas para sermos aceitos na sociedade. Nos afastamos de nós mesmos para tentar uma aproximação com o outro. O gato, para poder conviver com os humanos, procura não apenas imitá-los, mas acima de tudo sentir e pensar como eles. A partir daí, suas observações precisas, que até então tinham como alvo o tédio de um Japão quase rural, a caça aos camundongos ou o incômodo das pulgas em suas costas, passam a focar os dilemas e a infelicidade que, a comparação aqui é minha, são a pulga nas nossas costas. Nas últimas páginas do livro, o gato, mais velho, maduro e, por conseqüência, mais descrente da vida, decide então falar sobre a fronteira entre a sanidade e a loucura das pessoas e sobre o local misterioso onde se acomodam os desejos que não se realizam, sem que, no entanto, deixem de ser desejos. Eles apenas, segundo o gato, mudam de lugar, mas continuam pulsando como no primeiro dia em que surgiram em nossas vidas. É bonito de doer.

Aqui vai a abertura do livro, na esperança de estimular os amigos a escalar as 486 páginas que virão a seguir:

"Eu sou um gato. Ainda não tenho nome. Não faço a mínima idéia de onde nasci. Guardo apenas a lembrança de miar num local completamente sombrio, úmido e pegajoso. Deparei-me nesse lugar pela primeira vez com aquilo a que comumente se denomina criatura humana. Mais tarde, descobri que era um estudante pensionista, a espécie considerada mais malévola entre todas essas criaturas. Contam que por vezes esses humanos denominados estudantes nos agarram à força para nos comer fritos. Na época, ignorando este fato, não me senti intimidado. Experimentei apenas uma agradável sensação quando o humano me soergueu com gentileza, pondo-me sobre a palma da mão. Aconchegado nela, pela primeira vez na vida encarei o rosto de um desses seres. Preservo até hoje na memória a impressão desagradável daquele momento. Em primeiro lugar, o rosto, que deveria estar coberto de pêlos, revelava a lisura de uma lata de remédio. Em nenhum dos muitos de minha espécie com os quais mais tarde me deparei observei essa horrenda deformação física. Não apenas isso: bem no meio da face se destacava uma protuberência, de cujos orifícios saía fumaça, por vezes em profusão, que me sufocava e debilitava. Só recentemente descobri provir essa fumaça de algo que os humanos costumam fumar e a que denominam cigarro".

O resto é mais ou menos por aí. Se não for ainda melhor.

segunda-feira, junho 23, 2008

Quero ser fashionista

Depois de pensar muito na vida e de acompanhar, ainda que por alto, a cobertura dos desfiles da São Paulo Fashion Week, decidi me tornar um fashionista. Vários fatores contribuíram para que eu tomasse uma decisão tão radical, e vou tentar enumerar ao menos os principais deles aqui.

Em primeiro lugar, não sei direito nem o que é e nem mesmo o que faz um fashionista. Assim, logo que eu me tornar um deles, acredito que terei muito tempo livre para fazer outras coisas mais bacanas. Em segundo lugar, penso que um fashionista só trabalha duas semanas por ano: uma semana em janeiro, quando são exibidas as coleções de inverno, e outra semana em junho, quando conhecemos as tendências para o verão. No resto do ano eu não sei como eles se viram, porque não me lembro, sinceramente, de ter ouvido a opinião de algum fashionista sobre qualquer assunto em meses caídos como abril, agosto ou outubro. Creio que a imprensa não os procure nestes meses porque no fundo ninguém sabe onde eles estão. Talvez eles hibernem nos porões de algum ateliê, cobertos pelos trapinhos que sobraram da coleção passada, mas também não há provas concretas sobre isso.

E, em terceiro lugar, mesmo que o mundo esteja acabando, só duas coisas merecem a atenção dos fashionistas: como conseguir um assento na primeira fila dos desfiles e quais modelos estavam acima do peso ou exibiam as coxas e o bumbum castigados pelas celulites. Fora isso, não há notícia no universo capaz de espantar do rosto de um fashionista aquela expressão de tédio congênito. Neste quesito, talvez eu esteja sendo injusto com eles: os fashionistas dotados de boa memória sabem dizer também se uma coleção exibida agora, em 2008, traz ou não influências de algo que um estilista europeu mostrou em, sei lá, em 1975, quem sabe... Afinal, embora as modelos tenham pernas longas, a moda ainda caminha a passos curtos neste lado do mundo. Sei que não entendo nada de moda, mas as fotos dos desfiles estão aí para me dar razão.

No fundo, eu acho que um fashionista de verdade não pode ter preocupações mundanas. Não há nada menos fashion do que sofrer no trânsito, pagar contas, enfrentar o mau humor dos patrões e comer em bufê por quilo - tudo isto, definitivamente, são coisas que não combinam com o mundo da moda. Ou melhor, estão fora de moda e só não desaparecem do nosso cotidiano porque o nosso cotidiano, infelizmente, não é uma passarela que termina num fosso cheio de fotógrafos. Se os fashionistas tivessem de se preocupar com o mundo real, acho que não haveria graça alguma em ser fashionista e eu também não ia querer ser um deles.

Mas hoje, ao refletir sobre tudo isso, me bateu uma certa tristeza. Nós ainda estamos no dia 23 de junho e a São Paulo Fashion Week já botou um ponto final em 2008. Desfiles, agora, só em janeiro do ano que vem. Eu acho que os fashionistas vão chegar em casa hoje, depois de jantar no Ritz ou no Spot, tirar a calça verde de lantejoulas, encontrar um lugar no armário embutido para suas bolsas de mais ou menos dez quilos, dobrar os óculos escuros gigantes e colocá-los em algum cantinho da estante, guardar as botas debaixo da cama e depois chorar, chorar muito até o rímel borrar a fronha. E, depois do último soluço, dormir profundamente pelos próximos seis meses. Afinal, quando janeiro de 2009 chegar, é de bom tom que os fashionistas estejam com a pele linda e a língua afiada. Terão, enfim, muita coisa relevante para nos ensinar.

sexta-feira, junho 20, 2008

O Hamlet de Moura

Wagner Moura, 32 anos, começa a mostrar o seu Hamlet na noite desta sexta-feira, dia 20, no Teatro Faap. É um projeto que o acompanha, literalmente, por metade de sua vida: ele tomou contato com o texto aos 16 anos, em Salvador, e nunca mais abandonou a idéia de viver o príncipe da Dinamarca. Conversei com ele, para o Diário do Comércio, por pouco mais de meia hora na tarde de terça-feira. Como o baiano é muito bom de papo, escolhi alguns momentos bacanas da entrevista para dividir com vocês.

No que o seu Hamlet pretende ser diferente dos inúmeros outros já feitos no cinema e no teatro?
Wagner Moura: Este personagem é tão grande que comporta um número infinito de interpretações. Nenhum Hamlet é igual a outro. Nunca pensei em buscar um diferencial, uma contribuição que todos os outros atores que já fizeram este papel ainda não tenham dado. O que importa, para mim, é a oportunidade de ser mais um. Sempre é louvável montar Hamlet para popularizar o personagem e torná-lo ainda mais acessível.

Você acredita que Hamlet pode representar um exercício de auto-confiança para um ator, de modo a prepará-lo para qualquer outro desafio na carreira?
Não sei se o personagem oferece um carimbo de qualidade para um ator. Só sei que qualquer ator vai sair fortalecido desta experiência. Hamlet é um personagem tão denso e complexo que quem passa por ele não sai incólume. Há momentos em que ele se mostra difícil e indomável. Em outros, porém, o prazer é tanto que você se sente surfando em uma grande onda.

Os elogios que você recebeu por suas atuações no filme ‘Tropa de Elite’ e na novela ‘Paraíso Tropical’ o deixaram mais confiante para fazer a peça?
Talvez sim. Mas fazer Hamlet é um desejo muito mais antigo. Eu sinto como que se tudo o que eu já fiz até hoje fosse uma grande preparação para este personagem. Eu acredito que, durante toda a minha carreira, eu sempre vivi à sombra de Shakespeare. Hoje eu vejo que havia algo de Hamlet no capitão Nascimento, no vilão Olavo e em todos os outros personagens que já interpretei.

O ator Laurence Olivier, por exemplo, fez Hamlet no cinema em 1948. Você está fazendo no teatro 60 anos depois. O discurso do personagem mudou ou Hamlet continua dizendo a mesma coisa?
Nós vamos morrer e Shakespeare vai nos enterrar. Nossos netos não se lembrarão de quem nós fomos, mas eles seguramente irão saber quem foi Shakespeare. Esta longevidade se explica porque ele falou de algo que não muda com o tempo, o ser humano. Cada platéia de cada época talvez entenda o discurso de Hamlet de uma maneira muito própria, mas no fundo todos nós sempre estaremos falando do ser humano.

Mas há tantas tramas nesta peça...
A trama da vingança é só um pano de fundo para este príncipe filósofo falar sobre a gente. Sobre este abandono total em que nós, seres humanos, vivemos. Nós inventamos Deus para tentar colocar um pouco de ordem no mundo, talvez para tentar entender que raio nós estamos fazendo aqui. Hamlet é a soma de todas as nossas perplexidades.

Há pouco tempo você publicou um artigo em que criticava parte da imprensa que se mostrava mais interessada na vida pessoal do que no trabalho dos artistas. Que tipo de repercussão este artigo teve?
Eu não procurei saber. Me disseram que muitas pessoas me apoiaram na internet, que concordaram com o meu ponto de vista. Muita gente achou que meu artigo foi uma crítica direcionada a um programa específico, no caso o Pânico na Tevê. Mas não foi. Minha intenção, ao escrever aquele artigo, foi a de mostrar que a sociedade pode melhorar a qualidade do que é mostrado pela televisão. Nós podemos dizer um basta, não queremos ver mais isto. A televisão se alimenta de audiência, mas tem de haver um limite para tudo. Não são todos os atores que estão dispostos a participar deste jogo sórdido. Um ator que não freqüenta a Ilha de Caras, que não tomar parte neste exibicionismo, tem de ser respeitado. Eu não acredito que o público queira ver só porcaria. Eu compararia alguns programas de tevê hoje com um cavalo desgovernado, correndo no piloto automático.

sexta-feira, junho 13, 2008

Brincando de Thelma e Louise

Como muita gente, eu devo ter sido mais um a acompanhar preocupado as notícias sobre o desaparecimento das duas adolescentes de São Paulo, que após assistirem à sessão do filme Um Beijo Roubado resolveram picar a mula de ônibus e carona sem dar qualquer tipo de aviso aos pais. Vi, pelos jornais e pelas dezenas de e-mails que recebi durante os dias que elas permaneceram sumidas, a agonia e o desespero das duas famílias. Muitas vezes, estes casos não terminam bem e, embora torcemos desesperadamente por um desfecho otimista, há algo no nosso histórico que já nos faz sofrer por antecipação. Quando soube que elas tinham sido encontradas no Sul, respirei aliviado, por mim e pela família. Mas o susto maior ainda estava por vir. De acordo com o que a imprensa publicou, ao ser questionada por um policial se ela não se preocupava com o sofrimento e a dor dos pais, uma das garotas teria dito: fazer o quê?

Simples assim: fazer o quê? Esta frase não sai da minha cabeça. Quem faz análise já deve ter ouvido centenas de vezes que nós devemos nos considerar o centro do mundo - ou algo bem próximo disto. E que, por isso mesmo, temos de dar prioridade aos nossos próprios sentimentos antes de pensar tanto nos outros. Concordo em parte. Acredito que qualquer pessoa que não veja a si própria como o principal alvo de seus investimentos e preocupações, está condenada a passar por esta vida derrapando, sem chegar a lugar algum. Isto deve ser, imagino, o primeiro mandamento de qualquer livro de auto-ajuda: primeiro eu e, respeitando algumas regras da vida em coletividade, depois os outros. Assim, se existe uma parcela de dor que pode ser administrada, seria de bom tom que esta dor não caísse justamente sobre as nossas próprias cabeças - há um mundo inteiro à nossa volta sobre o qual ela pode ser despejada. Pensar assim parece ser, acima de tudo, uma atitude preservacionista.

Mas a questão que se impõe no caso das adolescentes é a seguinte: havia mesmo a necessidade de tanta dor? Será que a aventura delas e o êxtase da liberdade juvenil seriam menores se, ao parar em um posto de beira de estrada qualquer, elas fizessem uma ligação para os pais dizendo simplesmente que estavam vivas e se divertindo? E que voltariam, ou não, dentro de algum tempo. Mas que, acima de tudo e antes de mais nada, elas estavam vivas, felizes, saltitantes e não amarradas em um porão, vítimas de sequestradores. Se tivessem prestado realmente atenção no filme que viram, teriam notado que a personagem interpretada pela cantora Norah Jones, que também decide cair na estrada sem mais nem menos, enviou um cartão postal para o personagem de Jude Law de cada biboca que ela conheceu no grande deserto americano.

O personagem de Jude Law não era seu pai e nem seu namorado - ainda assim, durante o ano em que ela ficou longe, jamais deixou de avisá-lo que estava tudo bem. Ou seja, saber que aqueles que nos amam e se preocupam com a gente estão bem, é uma garantia extra de que nossa aventura será ainda mais completa. Não consigo me divertir e nem achar graça em nada quando eu tenho a certeza de que esta minha diversão está provocando uma dor desnecessária em alguém que me ame. Babaquice minha? Acredito que não. Simplesmente uma questão de respeito, que a gente já deve trazer do berço. Mas é preciso que alguém nos ensine isso. Que alguém nos mostre que a nossa liberdade pode ser infinda - desde que ela não se transforme em uma arma apontada para a cabeça daqueles a quem amamos e respeitamos.

No final do ano passado, uma garota de 16 anos, filha única, também sumiu da casa de seus pais, vizinhos dos meus na cidade de Jundiaí. Ela namorava um cara bem mais velho e sem emprego. Um dia, a mãe caiu na asneira de dizer que não concordava com o namoro e nem via um futuro bacana para a filha ao lado daquele cara. No dia seguinte, a menina virou pó. A mãe, além de tudo sentindo-se culpada pelo sumiço, caiu num desespero mitológico. Emagreceu perto de 20 quilos, precisou de ajuda psiquiátrica, não dormia e nem comia. Experimentou o inferno em vida. A menina ficou desaparecida quase dois meses. A polícia já não se preocupava muito mais com o caso. Até que um dia a garota ligou para dizer que estava bem, vivendo numa cidadezinha de Minas Gerais, ao lado do tal namorado mais velho, e que queria ser esquecida. Pediu para que a mãe parasse de procurá-la, pois ela não iria mais voltar. A mãe chorou tudo de novo, mas deve ter se sentido mais aliviada por saber que a filha estava viva - ainda que não quisesse mais vê-la. Para encurtar a história: um dia o dinheiro do namorado lá em Minas acabou e os dois voltaram com o rabo entre as pernas, implorando para que a mãe hospedasse e desse de comer para o casal. Este foi o final (feliz?) da história de Jundiaí.

A história das garotas de São Paulo também terminou bem, aparentemente. Viveram uma aventura adolescente, os pais não dormiram e ganharam alguns cabelos brancos, lágrimas foram desperdiçadas em vão... mas tudo bem! Os moderninhos dizem que a rebeldia adolescente é muito bem-vinda e ninguém pode conter os ímpetos juvenis sob o risco de produzir um adulto frustrado mais tarde. E então sejamos todos bem-vindos nesta fase do liberou geral. E que cada um chore por aquilo que é seu. Mas, além da frase "fazer o quê?", há um outro pensamento que não sai da minha cabeça: ainda bem que as meninas viram Um Beijo Roubado, que é quase uma fábula. Já imaginou o que elas teriam feito se tivessem visto Na Natureza Selvagem?

quarta-feira, junho 11, 2008

Ué, por que tá todo mundo voltando?

Cansada de apenas imitar a arte, parece que a vida resolveu se antecipar a ela. Na próxima sexta-feira, dia 13, entra em cartaz o novo filme do cineasta M. Night Shyamalan, Fim dos Tempos, em que ele mostra um misterioso surto que leva as pessoas a cometer suicídio. De repente, do nada, gente com uma vida estável começa a se jogar dos prédios, a explodir a própria cabeça, a se atirar na frente dos carros. É um modismo macabro, este. Pois aqui, na nossa São Paulo que fica bem longe de Hollywood, também estamos diante de um modismo igualmente estranho: o de dirigir na contramão. Nas últimas semanas, a polícia registrou pelo menos dez casos de motoristas que, sem razão aparente, resolveram dar meia-volta com seus veículos e enfrentar alguns poucos quilômetros com o resto do mundo vindo na direção contrária.

O fenômeno começou com um jovem bancário que dirigiu na contramão por um tempão na rodovia Castelo Branco, até dar de cara com um caminhão que pôs fim à sua aventura e também à sua vida. O caso foi tão impactante e inédito que os jornais reproduziram, por meio de desenhos, minuto a minuto da trajetória tresloucada do motorista. Seus familiares foram entrevistados, falou-se em bebedeira, em depressão, em suicídio. O que ninguém sabia, até aquele momento, é que, ao dirigir alguns quilômetros na contramão, ele estava abrindo caminho para que outros tantos motoristas viessem atrás: jovens, senhoras mais idosas e homens de vida regrada que, cansados de seguir o fluxo, quiseram experimentar a aventura do sentido contrário.

Um dia, por falta de atenção, também dirigi na contramão por apenas uma quadra no bairro das Perdizes. Eu tinha saído da academia e, ao virar numa rua cujo nome não me lembro, o pneu da frente entrou com tudo num buraco imenso. Fiquei tão puto que acelerei para sair dali e virei na primeira esquina que encontrei. De repente, ao chegar num cruzamento, vi que o semáforo estava de costas para mim. Mas não vinha ninguém de lugar algum. Dei meia-volta e fui embora como se nada tivesse havido. Minha sorte é que eu estava num bairro tranquilo, numa manhã ainda mais tranquila, e não na rodovia dos Imigrantes ou na Castelo Branco. Esta minha imprudência renderia, no máximo, algumas ofensas e um ou outro dedo médio em riste.

Mas como explicar tantos casos de gente que resolveu entrar pela porta de saída? Seria apenas uma grande coincidência o fato de todos estes casos de gente guiando na contramão terem ocorrido praticamente no último mês? O que haveria em comum entre estes dez motoristas? Teriam ouvido alguma mensagem cósmica dizendo quem for brasileiro que me siga? Estariam a serviço da nova máfia do Detran? Declararam guerra ao espelhinho retrovisor? Sucumbiram à tentação dos 15 quilômetros de fama? Ou resolveram, metaforicamente, resgatar alguma coisa que ficou esquecida lá atrás? Seja lá qual for a explicação, é bom que estejamos atentos porque, a qualquer momento, pode surgir diante de nós alguém a 100 quilômetros por hora dizendo que resolveu voltar de repente porque as coisas andam feias um pouco mais à frente....

domingo, junho 08, 2008

Janelas cariocas


A peça Andaime está indo para o Rio de Janeiro, com uma modificação no elenco. Sai Cássio Scapin, que fez o personagem Claudionor com um delicioso mau-humor, e entra Elias Andreato, dono de uma ironia, um ar blasé e uma tendência ao auto-deboche que fazem dele um ator inglês perdido nos trópicos, sem passaporte e sem o endereço da embaixada. Estou curiosíssimo para ver esta mudança e saber como aqueles dois limpadores de janelas, tão paulistanos e tão comuns a nós todos, vão se comportar diante da praia. Aqui está o convitinho para a estréia. A temporada carioca só saiu, como de resto a paulista também havia saído, graças ao trabalho e à dedicação do incansável Claudinho Fontana, a quem - e ele já sabe disso - eu serei eternamente grato pelo carinho, pelo respeito e pela fé que ele sempre depositou no meu trabalho.
E prometo que agora passarei um bom tempo sem falar das minhas peças. Nos últimos dias, insisti demais neste assunto, com três posts, eu acredito. Mas é que foram dias lindos, cheios de surpresas e muita, muita ansiedade. A notícia do Andaime indo para o Rio e A Coleira de Bóris estreando em São Paulo. Não tinha como eu me mostrar indiferente a tudo isso. Foi uma dosagem alta de emoção, tudo concentrado, coisa que não acontece a todo instante em nossas vidas. Feito o registro aqui, garanto que da próxima vez em que eu voltar para o blog tentarei olhar menos para o meu próprio umbigo. A gente gosta muito do que faz, ainda bem. Mas o mundo lá fora continua mais desafiador, mais perigoso e, acima de tudo, MAIOR. E quando a gente se esquece disso, ainda que seja por uma semana, corre o risco de se afogar em nossas águas rasas e às vezes preocupantemente calmas.

sábado, junho 07, 2008

A coleira pelas lentes da Lenise







Conheço a fotógrafa Lenise Pinheiro há muitos anos. Ela me conhece há bem menos tempo. Quando eu trabalhava como repórter do Jornal da Tarde, eu já a via, máquina fotográfica e tripé em punho, nas estréias de peças, nas coletivas ou em uma ou outra atividade ligada ao teatro. Sabia que ela era fotógrafa da Folha de S. Paulo, mas nunca me aproximei dela. Eu achava que a Lenise fosse uma mulher brava. Uma daquelas pessoas a quem se a gente dirigisse a palavra para dizer algo assim: "olá, eu gosto muito das suas fotos", ela iria responder apenas um muito obrigado e viraria as costas para fazer algo mais interessante.
Então, a Lenise começou a se aproximar dos Satyros na mesma época que eu: ela, como iluminadora, e eu como autor. Ainda assim, nossos caminhos não se cruzavam. Até que algumas questões profissionais nos aproximaram e eu vi que a Lenise podia ser tudo, menos uma mulher brava. Aquela fala mansa, um coração de manteiga e um humor que somente as pessoas muito inteligentes e sensíveis têm. E daí nos tornamos amigos e até fizemos algumas coisas juntos. O talento da Lenise nunca foi surpresa para mim, mas confesso que, esta semana, ao ver as fotos que ela fez do meu espetáculo A Coleira de Bóris fiquei muito comovido com a força e o lirismo das imagens que ela captou. Peço licença a ela, então, para reproduzir aqui três destas visões.
Beijão, querida. E muito obrigado por este presentão.






sexta-feira, junho 06, 2008

Pequena fábula de um diretor

Há pouco mais de um ano, durante o último ensaio da minha peça Andaime, no Teatro Vivo, enquanto técnicos e iluminadores aprontavam o palco para a entrada dos atores Cláudio Fontana e Cássio Scapin, o diretor Gabriel Villela, que assinou o cenário e figurino daquela produção, estava sentado sozinho no meio da platéia, lá pela fileira M ou N. Lembro-me assim da cena: ele vestia uma camisa branca de mangas compridas, trazia as costas mal apoiadas no espaldar da poltrona e as pernas displicentemente atiradas no corredor. Estava absorto em algo que ouvia num Ipod - ou talvez fosse um discman. Ficou assim, absorto e distante durante uns quatro minutos - o tempo de uma canção, eu vim a saber depois. Então, pediu para que Elias Andreato, que estava no palco, se dirigisse até ele.

- Tome, Elias, ouça isso - disse entregando os fones ao companheiro.

Elias colocou os fones e ouviu atentamente. Seus olhos demonstravam que algo muito especial estava escapando daqueles fones de ouvido. Depois dos mesmos três ou quatro minutos, Elias retirou os fones e devolveu-os ao Gabriel em silêncio. Antes que perguntasse o porquê daquilo, Gabriel respondeu:

- É Elis Regina cantando Caça à Raposa, do João Bosco e Aldir Blanc. Eu queria que você notasse o respeito com que ela tratava cada uma das palavras que saía de sua boca. Nós temos de fazer, no teatro, o que ela fazia na música: saber reverenciar a palavra. É uma tradição que compete a nós manter.

Elias voltou silencioso para o palco e Gabriel, muito provavelmente, procurou outra coisa para ouvir no seu Ipod. E eu, que estava quieto ali do lado, agradeci ao destino por ter me colocado, mais uma vez, na hora certa e no local certo - ainda que pelo curto período de uma canção.

terça-feira, junho 03, 2008

Flyer da Coleira


Eis aí o flyer da peça A Coleira de Bóris, que estréia nesta sexta, dia seis de junho, no Satyros Um.