sábado, agosto 25, 2007

Panorama visto da ponte


Cheguei ao cinema 20 minutos antes do início da sessão de A Ponte (foto), na noite de sexta-feira, com medo de encontrar lotada a única sala da cidade, no Shopping Frei Caneca, em que este devastador documentário americano está sendo exibido. Assim que terminou a sessão anterior, a responsável pela faxina entrou na sala para recolher os costumeiros saquinhos de pipoca e, alguns minutos depois, saiu de lá com o seguinte comentário: "E eles ainda colocam uma música de amor quando termina". Talvez estivesse aí, na sábia conclusão da faxineira, a principal crítica a ser feita a este documentário feito durante o ano de 2004 na paisagem da monumental Golden Gate, na baía de São Francisco: o filme é tão dolorido e perturbador que a tentativa de injetar algum lirismo em sua história por meio da trilha sonora apenas banaliza e torna melodramático aquilo que nasceu para ser simplesmente áspero e indigesto.

A Ponte é um documentário sobre as pessoas que procuram a Golden Gate para se suicidar. Somente em 2004, 24 pessoas saltaram para a morte de sua gigantesca estrutura cor de laranja. Levaram em média de quatro a sete segundos para atingir as águas geladas e revoltas do Pacífico, a uma velocidade de 200 quilômetros por hora - em alguns casos, o coração deixa de bater antes que o corpo se espatife na água. Há menos de 3% de chance de alguém sobreviver à queda - e ainda que isso ocorra, o resgate da vítima é extremamente dificultado pela imprevisibilidade das correntes marítimas naquele ponto. Os letreiros apresentados ao final da projeção revelam uma aritmética sinistra: os 24 saltos obedeceram à média de dois por mês, religiosamente. Três corpos jamais foram encontrados.

Que nenhum eventual leitor desista de ver o documentário por julgar que eu já revelei, no parágrafo anterior, mais do que deveria - estes pobres números não fazem a mais remota sombra diante das tragédias humanas, dos relatos de desespero e solidão, de revolta e arrependimento que o documentário revela por meio dos depoimentos dos amigos, parentes e pais dos suicidas. Como qualquer obra que desrespeita aquele território comum em que nossa razão e nossa emoção costumam trafegar, A Ponte é um filme que exige muito tempo para ser absorvido e analisado de uma maneira mais crítica. Talvez por tocar em um dos tabus mais misteriosos de nossa civilização, o suicídio, um ato que ainda flerta com os nossos conceitos de religião, de Deus, de pecado, de ressurreição, de vida após a morte, de infração suprema, de continuidade da espécie e, acima de tudo, de suecsso; talvez por focalizar um certo tipo de morte cuja contabilidade nunca será devidamente fechada, deixando, aparentemente sobre as costas de quem fica, um saldo impossível de ser quitado. O certo é que A Ponte incomoda a cada minuto de projeção - quando não é pelas imagens, de um realismo que nos desperta com a força de um bofetão, é pelos depoimentos. Dois são especialmente doloridos - o de um pai, aparentemente pacificado com a idéia de que seu filho jamais encontraria paz na vida e por isso saltou para uma dimensão em que ele seria mais feliz, e do amigo de um outro suicida, que diz, entre lágrimas, ter tido vontade de invadir o Instituto Médico Legal de São Francisco somente para gritar, diante do corpo do amigo morto, que ele não tinha o direito de fazer o que fez.

Senti vontade, em vários momentos, de abandonar a sessão, sob o argumento de não entender por que eu estava me submetendo àquele espetáculo de uma humanidade doloridíssima. Acostumados que estamos à violência nas telas trazida nos filmes policiais e de aventura, levamos uns belos minutos para acreditar que aqueles corpos que despencam da ponte não são bonecos, não são dublês, não são atores com salários milionários e seguro-saúde. São pessoas comuns que chegaram a um ponto a partir do qual parece não haver mais possibilidade de continuar. Há um impulso instintivo - e que se traduz em revolta - diante da impossibilidade milaculosa de impedir o salto. E a revolta, obviamente, se dirige então à grande questão ética do filme. O que era mais importante para os documentaristas: impedir os suicidas de saltar e não ter o filme ou deixar que eles se atirassem às águas feito imensos e desajeitados pássaros sem asas e com isso garantir imagens de rara contundência? Leio hoje nos jornais que os cineastas alertavam a polícia sobre cada pessoa em atitude suspeita em cima da ponte, mas nem sempre o socorro chegou a tempo. Os 24 casos em que a polícia chegou tarde renderam o documentário. Difícil de engolir - e difícil de ver.

Saí do cinema e corri desesperado para o bar dos Parlapatões, na sempre fervilhante Praça Roosevelt. Precisava, como poucas vezes na vida, ver os amigos, ouvir gargalhadas, captar histórias engraçadas e disfarçar o suor das mãos diante de um copo de cerveja gelada. Agora, pensando novamente no filme - talvez eu não tenha feito outra coisa desde ontem à noite -, chego à mais dura e à mais óbvia das conclusões: a vida não dispõe de um diretor que dá um grito de corta antes do salto. A partir da hora em que nascemos não há mais ensaios, não há mais dublês, não há mais efeitos especiais - estamos condenados a um plano seqüência que irá perdurar até o fim dos nossos dias, sem retoques e sem uma segunda chance. O grito final de corta virá, sim. Resta saber da boca de quem. No caso dos 24 suicidas do documentário, coube a eles decidir que o filme de suas vidas tinha chegado ao fim. Infelizmente longe, muito longe de um happy end.

Em tempo: não precisava ter chegado tão cedo ao cinema. Havia apenas nove pessoas na sessão.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Galope

Leio na Folha de S. Paulo matéria de página inteira sobre a chegada da carne de cavalo aos restaurantes e açougues de São Paulo. A matéria é ilustrada com fotos de pratos feitos à base de carne de cavalo e um desenho que mostra o corpo do animal dividido de acordo com a nobreza de suas carnes: alcatra no dorso, coxão mole, patinho e coxão duro no alto das patas traseiras, filé mignon no dorso e assim por diante. Li a matéria com um misto de curiosidade e uma crescente aversão, até chegar a um parágrafo que parece sintetizar toda a crueldade que caracteriza a nossa espécie: os cavalos que irão terminar na mesa dos brasileiros são aqueles que já não servem mais para o trabalho no campo. A matéria fez questão de não deixar dúvidas sobre isto: quando se tornarem velhos e cansados, depois de uma vida inteira dedicada ao arado e às carroças, os cavalos serão vendidos para abate porque os fazendeiros e agricultores não podem mais arcar com os custos de um animal que se tornou improdutivo. Ou seja: se algum dia sentarmos à mesa de um restaurante e pedirmos uma suculenta carne de cavalo (a matéria também confirma isso: a carne é suculenta e tem um sabor mais adocicado que os filés bovinos), que não reste nenhuma dúvida: estaremos comendo um trabalhador aposentado a quem não foi dado o direito supremo do descanso.

Acredito que a baixeza de nossa espécie se traduz principalmente pela variedade do nosso cardápio: comemos muito mais do que precisamos. E, para comer, matamos muito mais do que seria necessário à nossa sobrevivência. E matamos com um tal grau de requinte que a natureza não dotou nem o mais cruel dos predadores. Precisamos comer, e isto é inegável. A ciência já comprovou que nosso cérebro só evoluiu graças à grande quantidade de proteína que extraímos de nossos hábitos carnívoros. Que assim seja e respeitemos a natureza. Mas será que não há algo de errado em nosso apetite? Será que precisamos comer avestruzes, javalis, faisões, macacos, cachorros, gatos e também cavalos? Claro que não existe uma hierarquia no mundo animal que determina que bois, galinhas e peixes podem ser devorados sem problema algum; mas já que a carne parece ser mesmo essencial à nossa dieta, será que apenas estes animais, se criados com dignidade e mortos com respeito e de forma indolor, não seriam suficientes para abastecer o nosso estômago. Precisamos avançar ainda mais com nosso insaciável apetite sobre outras espécies? Precisamos comer um cavalo que durante a vida inteira deu mais duro que a maioria das pessoas que comandam este país?

Durante a última edição da Flip, o escritor sul-africano J.M.Coetzee leu um trecho que fará parte do seu próximo livro, a ser lançado em novembro, no qual descreve a agonia de um boi a caminho de um frigorífico da Austrália. Em alguns casos, para facilitar o trabalho dos carrascos, o animal tem os olhos vazados e os tendões das patas cortados. É de encher os olhos de lágrima, o peito de revolta e o estômago, ah, sempre o estômago, de uma acidez dolorida. Infelizmente, tudo isso dura pouco. Quando chega à noite, mesmo após ouvir o relato emocionado do escritor, sentamo-nos à mesa de um restaurante qualquer e pedimos um belo filé mal passado. A incoerência é a grande companheira de toda nossa jornada por este planeta, não tenho dúvidas.

Mas hoje, ao terminar de ler a matéria sobre os cavalos, desejei de coração que houvesse um céu para eles. E que deste céu, alados como Pégaso, livres das carroças, dos arados e dos chicotes, eles pudessem nos ver, lá do alto, todos nós virando nas grandes grelhas do inferno, que é realmente o nosso lugar.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Compras

O amigo Ricardo Moreno me ligou uma manhã dessas. Tinha acabado de voltar do Ceasa, onde comprara um coqueiro para enfeitar a sala de seu apartamento. Ao chegar em casa, notou que a copa da árvore era tão grande que, para se ir ao banheiro ou ao quarto, a partir daquele instante todos deveriam desviar de suas folhas. A árvore ocupou tanto espaço na sala que ele estava pensando em pedir atestado de vacina contra a febre amarela ou malária aos futuros visitantes - e cogitou a idéia, desta vez brincando, é claro, de comprar um casal de saguis para completar a decoração.

Compras realmente são um ato misterioso. Não estas básicas, que a gente faz em qualquer supermercado, gasta no mínimo cem reais e, quando chega em casa, descobre que continua sem nada para comer. Falo destas outras compras em que, por algum impulso ou submissão ao talento do vendedor, saímos da loja com alguma coisa que realmente não precisávamos e que, enquanto ainda passávamos o cartão de crédito na maquininha, sabíamos que nunca iríamos usar aquele bugiganga. Quando eu trabalhava no Jornal da Tarde e tinha um rendimento um pouco mais generoso do que este que tenho hoje, eu fazia parte deste mercado insandecido de consumo. Uma vez assinei a revista The Economist, porque o vendedor me convenceu de que o preço era uma pechinha. Eu nunca fui de ler a The Economist: se quisesse, era só pegar qualquer exemplar à disposição, ali mesmo na redação. Mas não, acreditei que se tivesse a revista em casa, passaria horas me informando e, ao mesmo tempo, aprimorando o meu inglês. Abri dois exemplares. Os outros tantos que vieram durante o ano, confesso, foram fechados para a lata de lixo.

ESte finalzinho de inverno é uma época perfeita para um outro tipo de compra absurda - as roupas que a gente acredita que vai usar no verão, coloridas demais e com um número inferior ao nosso manequim. Afinal, é claro que estaremos mais magros no verão. A gente entra na loja, pede uma calça manequim 42, por exemplo. A vendedora, linda, jovem e cheia de dentes, antes de mais nada pergunta o nosso nome. Vai começar o suplício. Como dizer que não quer nada para alguém tão bonitinha e que ainda te chama pelo nome. Então ela traz uma calça número 40 - a 42 acabou ontem, acredita, diz ela. Você veste a calça 40, ela abre a cortina do provador e diz que ficou ótimo. A gente sabe que não ficou: ela está apertada na cintura, o cavalo está curto, o pingolim está sendo estrangulado. E é nesta hora que ela diz: mas no verão a gente não come nada, só toma líquido e emagrece muito, não é mesmo? Pode levar que ficou perfeita. Então a gente caminha triste para o caixa, passa o cartão de crédito como se estivesse sendo dominado por uma força extra-terrestre que nos obriga a fazer o que não queremos. Uma força que nos impede de gritar "não! Eu não quero e não vou levar. A calça ficou justa, eu não vou emagrecer no verão e não quero que você fique dizendo meu nome alto na loja, quando eu estou de cueca dentro do provador. Eu tenho vergonha, chega, não vou levar nada". E então a caixa diz: a senha, por favor. E a gente acorda deste transe, sorri e aperta aqueles números que vão significar um desfalque na nossa já combalida conta bancária. E deixamos a loja nos perguntando: o que eu vou fazer com esta porra de calça número 40?

E assim se dá com aquele clube que a gente entra de sócio e nunca vai frequentar, a ioga que pede seis meses de pagamento antecipado e a gente só vai no primeiro dia, o leite de soja que a gente nunca vai tomar, a proteína de soja, que consegue ser pior ainda e precisa passar a noite na tigelinha com água para ser hidratada e depois rende uma almôndega de gosto insuportável, o livro que o amigo indicou e a gente corre comprar só para perceber que o gosto literário dele não tem nada a ver com o nosso, o tênis para corrida, com aquele solado que parece o minhocão, que a gente só vai usar para ir ao supermercado onde, após gastar cem pilas, voltaremos para casa e não teremos nada de legal pra comer quando bater aquela fominha à noite....

Só espero, de coração, que o Ricardinho Moreno não compre os macaquinhos para a árvore dele. Porque a tentação é grande....

domingo, agosto 19, 2007

Um passado nada consta

Sempre gostei daquelas entrevistas típicas de alguns programas de televisão, ou de revistas mais populares, em que o entrevistado deve discorrer sobre um sonho, uma cor, uma música, um filme e até um prato predileto. Seja pelo tempo mínimo de leitura que ele nos exige, seja pela peculiaridade de algumas respostas, o certo é que nunca consegui resistir a este tipo de jornalismo em pílulas, que nos traz revelações desta magnitude: cantora predileta - ella fitzgerald; cantor predileto: belo... Termino a leitura imaginando como estes dois podem coexistir pacificamente dentro do mesmo cd-player e só posso concluir que estas pequenas entrevistas nos ensinam gandes lições de convivência. Mas todas elas trazem um tópico, geralmente o último, no qual eu passo muito tempo pensando. Um arrependimento, pede o repórter. Nenhum, responde o entrevistado. Podem reparar que nestas entrevistas de revistas ou da tevê, nunca ninguém se arrependeu de nada. No máximo, eles dizem que só se arrependem daquilo que não fizeram. Eu fecho a revista e fico pensando: será verdade?

Se algum dia eu fosse convidado a participar de uma enquete desta, talvez eu também respondesse que não estava arrependido de nada, somente para fechar logo este capítulo e não ser mais incomodado com isso. Estaria mentindo, porém. Se quisesse ser mesmo sincero, talvez eu fosse obrigado a resgatar aquelas palavras ásperas ditas em horas inoportunas, que, a despeito de todos os pedidos posteriores de desculpas, nunca mais voltaram para a minha boca; das vezes em que eu deveria estar em algum lugar e talvez por covardia estava em outro; das amizades que vi fenecer e pouco fiz para reanimá-las, do excesso de prudência com que conduzi alguns episódios da minha vida, quando na verdade o momento pedia rock num carro veloz e de vidros abertos; das drogas que não experimentei e de todas as outras que experimentei à exaustão; do medo de agarrar pela crina aquele cavalo selvagem que passou galopando à minha frente, pela minha incapacidade de reconhecer nele uma chance única que o destino estava me dando; dos palavrões que não proferi e que, justamente por não terem sido ditos, me deixaram um gosto amargo na boca; dos outros que disse, mas quando a ocasião já havia passado; de ter voltado cedo para casa quando o melhor da festa era seu depravado final; de não ter sido tão bom; de não ter sido tão mau; de ter confundido com taquicardia os primeiros sintomas de um possível amor; e, finalmente, de não ter notado a abissal diferença que existe entre o que não fiz e o que deixei de fazer. Enfileirados assim, parecem até sinônimos - mas cabe um Corcovado entre estes dois gestos.

Eu jamais saberia como seria minha vida agora se não tivesse tomado as decisões que tomei - ou, por outro lado, se tivesse tomado as decisões que não tomei. Mas não me preocupo com este exercício inútil de adivinhação. Se não fosse isso, seria aquilo; ou se não fosse aquilo, teria sido isso - e provavelmente eu continuaria aqui, neste mesmo lugar e desta mesma maneira. As decisões foram tomadas e parece não haver muito mais a ser feito. Como sinceramente não me lembro de algum dia ter agido de má-fé ou motivado por algum mau-caratismo explícito, me consola saber que o que eu fiz era o que eu podia ter feito naquele momento - talvez nem mais, talvez nem menos. Mas tudo aquilo que deixa um gosto morno na boca também costuma doer. Hoje eu me deito na cama e durmo. Como diria meu pai, quando eu era criança, o merecido sono dos justos. Mas acho que os grandes momentos, as grandes ocasiões em que a vida realmente parece valer a pena, são aqueles em que os nossos companheiros são a insônia e o sobressalto.

Daí eu volto a pensar naqueles artistas e famosos que nunca se arrependeram de nada, que sempre tomaram a decisão correta, que nunca se culparam por nenhum reverso travado que fez o avião deles cair de bico quando o céu estava azul, a pista seca e nem vento havia, que nunca foram para a cama acreditando que, por culpa deles mesmos, a noite seria longa e fria e solitária demais, que nunca foram extremamente cruéis consigo próprios, que nunca perderam a tacada final quando o jogo estava praticamente ganho e que nunca, ao que tudo indica, perderam alguns momentos preciosos imagiando como seriam suas vidas se em vez de terem virado à direita tivessem dobrado à esquerda... Daí eu volto mais uma vez a pensar neles e, sinceramente, eu não os invejo. Quando os meus arrependimentos me abandonarem, todos eles, daí sim eu passarei a achar que há algo errado na vida. Muito errado.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Daqui a algum tempo

Estou envolvido, há pouco mais de um mês, em um dos projetos teatrais mais difíceis da minha carreira. Fui procurado por alguns amigos queridos, dois atores e um diretor, interessados em um texto para que trabalhássemos juntos - eles e eu. Pedi alguns dias para pensar a respeito - na verdade, no meu íntimo, eu já tinha aceitado o convite de cara, o prazo era para que surgisse alguma idéia, alguma proposta de texto. E ela surgiu. Voltei a me reunir com eles, expliquei sobre o que estava querendo falar e eles me deram sinal verde para seguir adiante - tinham comprado a idéia. E, desde então, venho sofrendo diariamente com este trabalho, por um motivo muito claro para mim: resolvi falar sobre algo que não domino, sobre uma realidade que não é exatamente a minha, sobre pessoas com as quais não cruzo no meu dia-a-dia. Em resumo, resolvi falar sobre o que me é estranho, e isso não é fácil. Talvez porque, até agora, eu tenha recorrido principalmente à observação do cotidiano para alimentar a minha escrita.

O trabalho está me levando a leituras que não eram as minhas habituais, está me conduzindo por assuntos nos quais sou leigo, e justamente por isso talvez esteja me dando tanto medo e insegurança. Mas hoje recebi uma compensação. Pedi ao Márlio, um amigo psicanalista, para que discutisse comigo sobre como poderiam ser as relações humanas daqui a algum tempo. Claro que é um exercício de futurologia que talvez não tenha fundamento algum. Em vez de conversar, ele preferiu me escrever. Hoje ele me enviou a sua visão do futuro. Por motivos profissionais, não posso publicar aqui, pelo menos por enquanto, tudo aquilo que ele me escreveu, embora seja grande a vontade de compartilhar com vocês. Posso, no entanto, dizer que era um texto otimista, que não via o nosso futuro ocupado apenas por guerras e escassez. Estamos já batendo na porta deste novo mundo e, segundo ele, teremos a chance de desenhá-lo de acordo com os nossos desejos. Se quisermos as guerras, elas virão; se clamarmos por novos Bushes, eles também aparecerão; se quisermos nos tornar egoístas, mesquinhos e solitários, nada mais fácil. A impressão que tive, ao terminar de ler o grande e-mail deste novo amigo, é que estamos diante de uma gigantesca folha em branco, à espera de receber a nossa história pessoal e a história que queremos para a nossa espécie. Está tudo em nossas mãos. E este é o meu grande medo: saber que é uma missão que não podemos delegar a Deus, aos cientistas, aos políticos e aos teóricos apenas - todo o mérito e toda a culpa serão nossos.

domingo, agosto 12, 2007

Seu Pedro

Como era de se esperar de qualquer filho, havendo a possibilidade, é claro, passei este Dia dos Pais ao lado do meu, em Jundiaí. Faz quase 20 anos que troquei a casa dos meus pais por um canto meu, aqui em São Paulo - e até hoje continuo me perguntando se algum dia a gente realmente consegue sair da casa dos pais sem se sentir irremediavelmente preso a uma infinidade de lembranças nas quais os nossos pais continuam a ser uma das presenças mais constantes. Talvez a gente consiga, sim, sair da casa dos pais. O difícil, acredito, é conseguir algum dia tirar a casa dos pais de dentro da gente, mas talvez nem seja este o caso. Ainda me lembro do dia em que parti: minhas coisas eram tão poucas que couberam tranquilamente dentro do meu primeiro carro, um gol azul 1986. Quando eu estava fechando o porta-malas, ele me perguntou se eu não gostaria de ficar mais um pouco por lá, uma semana que fosse, até que eles se acostumassem melhor com a idéia de que o caçula, que já nem era tão caçula assim, estava indo embora. Eu respondi que se não fosse naquela hora, na semana seguinte ia ser mais difícil, e mais difícil ainda na próxima. Era naquela hora ou provavelmente nunca. Vim.

Nestes quase 20 anos vi bem menos o meu pai do que o via quando o nosso teto era o mesmo, claro. Sei que a gente pode sempre dizer que a relação melhorou, que o carinho se tornou mais refinado, que os diálogos agora brotam sem tantos conflitos, que conversamos hoje quase como dois amigos, coisa difícil de ocorrer quando disputávamos a mesma tevê, o mesmo chuveiro, o mesmo lugar na mesa e todas as outras mesquinharias que só conhecemos quando dividimos nosso espaço com alguém. Tudo melhorou, admito - mas tudo também se tornou um pouco menos intenso, um pouco menos colorido, um pouco menos acalorado. Senti pela primeira vez que meu pai estava envelhecendo há alguns anos, quando eu tive alta após uma operação de hérnia e ele foi me buscar no hospital. Seus reflexos no volante estavam começando a falhar, ele conduzia o carro muito devagar, prestava pouca atenção nos cruzamentos e nos sinais e parecia tão desatento que, naquele instante, eu achei que tinha sobrevivido à cirurgia mas talvez não sobrevivesse àquela curta viagem do hospital até a minha casa - ou melhor, até a casa deles.

Claro que depois deste primeiro sinal, todos os outros despencaram sobre ele com uma velocidade assustadora. É como se o nosso pai, que em algum momento pôde mesmo ter sido o nosso super-homem, agora estivesse sob um ataque impiedoso de criptonita, que vai diminuindo sua audição, sua visão, seu entusiasmo pela vida. Dei de presente para ele, hoje, uma camisa - do mesmo tamanho de tantas outras camisas com as quais eu lhe presenteei ao longo da vida. Mas agora ela estava maior - a manga comprida desrespeitava os limites do pulso e quase chegava aos dedos; os ombros estavam mais caídos - parecia que havia muita camisa para pouco pai. Claro que esta visão me trouxe lágrimas aos olhos, que eu elegantemente escondi. Mas, cinco minutos depois, ele voltou a me dar outra pequena lição, destas que só os pais sabem nos dar, ainda que nem queiram. Ele tem um canarinho amarelo-escuro que, também vítima do tempo, está ficando cego e, depois de dez anos, já não canta mais. Meu pai colocou alpiste e um pedaço de fruta em sua gaiola e depois o conduziu com a mão até o alimento. E ficou ali, ao lado dele, até que ele comesse quase tudo. Quando a operação terminou, ele disse para mim - ou talvez para ele próprio: a vida não é fácil nem para os canarinhos. Este é o meu pai, ou uma faceta dele.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Barriga pra dentro - a missão

Fugi o quanto pude, até que hoje não deu mais: fui obrigado a fazer a avaliação física na academia de ginástica que freqüento há três semanas. Só tenho uma palavra para descrever a experiência: crueldade. Ou melhor, duas palavras: crueldade e masoquismo. Faz sete horas que a avaliação terminou e ainda sinto que preciso mergulhar numa piscina de lexotan e dormir até quarta-feira que vem. Explico as razões: primeiro, o professor faz uma série de perguntas fáceis de responder: sente alguma dor muscular, já foi operado, é sedentário, acredita que está acima do peso, está contente com o seu corpo, dorme bem, come bem... essas coisas todas. Esta parte eu tirei de letra: a resposta era sim para tudo que indicava problema e não para o resto. A tragédia, no entanto, estava apenas se anunciando.

"Tire a roupa", pediu o professor. "Preciso fotografá-lo em várias posições". "Para quê?", eu perguntei. "Para inserir as fotos num programa de computador e completar a avaliação". Juro que a gente precisa fazer de tudo para que este programa nunca caia em mãos erradas. A gente seria chantageado pelo resto da vida. Quando ele começou a colocar as fotos no computador, senti pena dele: era como tentar encaixar um quadro do Botero no David de Michelângelo. A gente começa a ver que a barriga está pra frente, as costas estão para trás, a musculatura da coxa está encurtada, a coluna está desalinhada... juro, sem exagero algum, que até minha orelha apareceu fora de esquadro. Sem falar nos pés, que, segundo ele, têm me conduzido por caminhos tortos há quatro décadas e eu nunca percebi. O programa traça umas linhas, espécie de meridiano, que sinalizam uma terra devastada. Sabem aquela sensação que às vezes a gente tem, de se sentir deslocado em uma festa? Então, eu estava completamente deslocado dentro do computador. Saí de lá achando que a gente só pára em pé e anda por um milagre divino.

Comecei a olhar de perto aquele programa e de repente veio uma alegria imensa, mas que durou pouco. "Olhe aqui", eu pedi ao professor, "aqui diz que eu sou uma pessoa magra, está escrito". "Nada disso", retrucou ele. "Quando existe uma porcentagem de gordura corporal acima do esperado, este dado não pode ser considerado. Ele não entra na avaliação". O que dizer de um programa de computador que desconsidera o único dado positivo que temos na vida? "O programa revela que você não É uma pessoa gorda. Você ESTÁ gordo nos lugares errados. É isso que o programa diz". Ah... entendi. Então ele me explicou que eu precisaria malhar muito, fazer muitos exercícios aeróbicos, começar uma dieta e puxar muito ferro para...tchan...tcha...tchan...tchan... ficar com o mesmo peso que tenho hoje - só que a gordura tem de dar lugar a músculos. Ou seja: a sensação que dá é que a gente precisa se vestir bem para ficar em casa. Daí ele me disse que esta troca de gordura por músculo representa qualidade de vida, melhora na auto-estima, condicionamento e mais um monte de coisas bacanas que eu já esqueci. Para mim, continua sendo trocar um Chuck Norris por um Arnold Schwarzenegger - mas se ele diz que é importante, vou acreditar. Afinal, já paguei seis meses adiantados mesmo...

Quando saí da avaliação, cruzei com a Cibele, uma das professoras mais simpáticas da academia. "Que cara é esta?', ela me perguntou. "Acabei de fazer minha avaliação física. Acho melhor eu acreditar em reencarnação. Tenho certeza de que, nesta vida, não dá mais tempo de eu me encaixar naquele programa"... Ela riu e fechou de maneira brilhante a minha triste manhã: "É, às vezes a gente precisa tomar um tapa na cara pra reagir, né"... Então ela sabia, todos sabiam que aquele programa de computador faz a gente se sentir uma daquelas mulheres de Picasso, irremediavelmente tortas para todo o sempre.

Saí da academia e aceitei o convite do meu amigo Marcelo Onaga pra almoçar. Comemos arroz, feijão, batata frita e, dane-se, um belo pedaço de lingüiça. Já que o computador fodeu comigo, eu precisava me vingar dele de alguma maneira. E nada melhor que uma bela lingüiçinha de porco pra gente sentir que a vida volta a sorrir... Dieta? Na segunda eu começo. E vou passar o fim de semana rezando para que um vírus bem gordo, torto e sedentário ataque aquele maldito programa de computador neste fim de semana....

quarta-feira, agosto 08, 2007

Pero no mucho

Me pergunto por que motivo eu não fiquei, ao contrário dos meus amigos e de praticamente toda a crítica, tão apaixonado pelo filme argentino As Leis de Família, em cartaz na cidade desde sexta-feira passada. O filme está cheio de todas aquelas qualidades que, nos últimos tempos, colocaram a cinematografia argentina entre as mais expressivas do mundo: a narrativa é terna e envolvente, o elenco é de uma competência bem acima da média e ainda há aquela habilidade rara dos argentinos de discutir as questões políticas do país sem cair em maniqueísmos e panfletagem. Apesar disso, na metade da projeção eu já sabia que, ainda que houvesse um final surpreendente - o que realmente não há - eu não sairia arrebatado do cinema.

Começo a desconfiar, embora eu não me julgue habilitado para fazer tal julgamento, que todos estes predicados do filme são o resultado de uma fórmula certeira que os diretores argentinos, com poucas exceções, têm empregado desde o fenomenal sucesso de O Filho da Noiva. Aos poucos, já ando confundido os nomes e as histórias de tantos filmes argentinos que chegam até aqui, sempre embalados por uma pequena crise familiar que serve de alimento para que se discuta a corrupção e a recente crise financeira que praticamente quebrou o país. Mas o retrato que eles fazem de si próprios, como pais, mães, irmãos e cidadãos, é tão meticulosamente equilibrado que nada chega a doer muito. E tenho um medo sincero de que em pouco tempo a cinematografia argentina, tão talentosa, venha a se constituir um monumento ao palatável. Precisamos urgente de um novo Plata Queimada.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Cinema mais barato? Duvido.

No início do ano, os empresários do setor de entretenimento (leia-se donos de redes de cinema, casas de show e teatro) lançaram uma campanha, ao que parece justa, para coibir o uso de carteirinhas de estudantes falsas - aquelas emitidas por lanchonetes, pizzarias e emissoras de rádio. Segundo eles, o uso indiscriminado destas carteiras os obrigava a elevar o preço dos ingressos para cobrir os prejuízos causados pela meia entrada. De acordo com este raciocínio, todos eram obrigados a pagar mais caro para custear o benefício para uma legião de falsos estudantes. Com a diminuição do uso de carteiras falsas, eles alegaram, seria possível baixar o preço dos ingressos e toda a sociedade sairia ganhando. Raciocínio lógico e coerente.

Pois bem. Acredito que há mais de um mês os cinemas e casas de shows estão mais rígidos na hora de vender os ingressos para os portadores de carteirinhas de estudante. Agora, além da carteirinha, é exigido também o atestado de matrícula e, no caso de faculdades pagas, o boleto do mês vigente devidamente quitado. Assim, dentro de pouquíssimo tempo devemos esperar por uma redução no valor das entradas, certo? DUVIDO. Tenho certeza de que o impacto desta medida já está sendo sentido no caixa dos estabelecimentos de diversão. Resta saber, agora, quanto tempo deveremos esperar para pagar menos para ver um filme, uma peça ou assistir a um show. Mas, neste país, calejados que somos, tenho certeza de que estamos diante de um novo golpe, como aquele da CPMF. Vão dizer que ainda é cedo para falar em redução no preço dos ingressos, que o impacto ainda não foi sentido, que a medida não surtiu o efeito necessário, enfim, desculpas não vão faltar aos empresários que querem manter o preço do nosso cineminha nas alturas. Acredito já estar na hora de a imprensa fazer uma matéria sobre este primeiro mês em que só as carteirinhas verdadeiras foram aceitas: como foi o movimento nas bilheterias? o público aumentou ou diminuiu? qual foi a porcentagem de estudantes que foram ao cinema em comparação ao mês passado? foram vendidos mais ou menos ingressos? Ou seja, há uma boa lista de perguntas que os empresários poderiam responder agora. Poderiam, não. Deveriam.

Ontem fui ao cinema e paguei R$ 19 pelo ingresso. Resolvi comprar um saco de pipoca: R$ 8 - semana passada, na feira, comprei por um real um saquinho com milho suficiente para fazer pipoca para uma fileira inteira de cinema. Deixei meu carro na rua para evitar pagar em torno de R$ 15 de estacionamento. Façamos as contas: um sujeito que sai de casa sozinho para ver um filme e comer uma pipoca vai gastar 27 reais se deixar o carro na rua - se quiser ter a segurança de encontrar o veículo quando voltar, a conta sobe para 42 reais. QUARENTA E DOIS REAIS para um filme, uma pipoca e um estacionamento. Daí a gente sai do cinema e vê os filmes que acabaram de estrear sendo vendidos no camelô da calçada por oito pilas. Agora eu pergunto: como é que a gente vai criticar a pirataria deste jeito? Não é mais uma questão ética, é uma cálculo básico de sobrevivência. Ou o cinema fica mais barato ou a gente vira freguês do camelô da calçada - e do pipoqueiro da calçada também, que por dois pilas enche o nosso saquinho com pipoca doce embaixo, salgada em cima e ainda dá um chorinho.

quinta-feira, agosto 02, 2007

O dono do mar

Fui assistir à pré-estréia do filme O Dono do Mar, do diretor Odorico Mendes, baseado no livro do ex-presidente José Sarney. Pouco antes do início da sessão, um dos atores, microfone em punho, disse que tinha gostado muito de participar do filme, "independentemente do resultado". Achei a colocação um pouco estranha. Quase duas horas depois, quando a projeção terminou, entendi o que o ator estava querendo dizer. O Dono do Mar é um daqueles filmes que temos dificuldade de definir ou mesmo emitir uma opinião a respeito. EStá longe de ser bom, mas também não é ruim no sentido mais clássico da palavra. Há alguma coisa em seu arremedo de narrativa, uma certa estranheza no colorido exagerado de sua fotografia, na pobreza de seus efeitos especiais, no amadorismo de alguns atores e na quantidade inexplicável de nudez que a questão parece inevitável: estamos diante de um filme trash e, por isso mesmo, candidato a cult? Ou é apenas mais um desastre do cinema nacional endossado por uma fileira invejável de patrocinadores? Tudo aquilo que se revela como uma cinematografia pobre e uma aparente ausência de técnica teria sido proposital? Odorico Mendes, de sólida carreira no mercado publicitário, ousou ou apenas errou feio? Diante de tantas perguntas sem resposta, fica realmente difícil falar a respeito de O Dono do Mar. Assim, prefiro ficar com a definição dada pelo meu amigo Ricardo Moreno, que me convenceu a ir à pré-estréia mais interessado em ver de perto uma das atrizes do longa, a belíssima Paula Franco, do que assistir ao realismo fantástico de José Sarney transposto para a tela. "Isto é uma mistura de Tarantino com Gerald Thomas e Didi Mocó", disse-me ele ao final. Concordo. Infelizmente, o alquimista não manipulou a receita com equilíbrio - e o gosto que ressalta na boca é somente o de Didi Mocó.

Mas existe um detalhe que realmente me chamou a atenção nesta produção - e me deixou sinceramente triste. O Dono do Mar levou dez anos para ficar pronto. Dez anos! Imagino o que seja você gastar dez anos em cima de um projeto que, sejamos francos, vai resultar em 90 minutos de uma projeção que ficou longe de agradar a platéia presente na pré-estréia. E que reúne poucas chances de cair nas graças do público pagante a partir desta sexta-feira, dia 3, quando entra em cartaz. Deve haver algo de quixotesco em Odorico Mendes e nos produtores do filme. Fica claro que também parece ser mais fácil lutar contra moinhos de vento quando se tem o patrocínio da Petrobrás, da Embraer e de todas as outras estatais atraídas pelo nome da família Sarney nos créditos. Os atores surgem em cena muito mais jovens do que estavam ali, no saguão do HSBC, recepcionando o público. Sérgio Marone disse que nem se lembrava direito do que fazia no filme - comprovando que em alguns casos o esquecimento é mesmo um bálsamo. Regiane Alves era quase uma garota, embora já desse pistas de que se tornaria uma atriz de bons recursos. Por tudo isso, acredito que O Dono do Mar nos queira dizer alguma coisa. Não como o resultado que se vê nas telas - mas como uma história que nos obriga a pensar sobre a produção artística neste país, seus resultados, seus meios de financiamento e, acima de tudo, sobre o que fazemos com dez anos de nossas vidas. Sejam quais forem eles.