Leio na Folha de S. Paulo matéria de página inteira sobre a chegada da carne de cavalo aos restaurantes e açougues de São Paulo. A matéria é ilustrada com fotos de pratos feitos à base de carne de cavalo e um desenho que mostra o corpo do animal dividido de acordo com a nobreza de suas carnes: alcatra no dorso, coxão mole, patinho e coxão duro no alto das patas traseiras, filé mignon no dorso e assim por diante. Li a matéria com um misto de curiosidade e uma crescente aversão, até chegar a um parágrafo que parece sintetizar toda a crueldade que caracteriza a nossa espécie: os cavalos que irão terminar na mesa dos brasileiros são aqueles que já não servem mais para o trabalho no campo. A matéria fez questão de não deixar dúvidas sobre isto: quando se tornarem velhos e cansados, depois de uma vida inteira dedicada ao arado e às carroças, os cavalos serão vendidos para abate porque os fazendeiros e agricultores não podem mais arcar com os custos de um animal que se tornou improdutivo. Ou seja: se algum dia sentarmos à mesa de um restaurante e pedirmos uma suculenta carne de cavalo (a matéria também confirma isso: a carne é suculenta e tem um sabor mais adocicado que os filés bovinos), que não reste nenhuma dúvida: estaremos comendo um trabalhador aposentado a quem não foi dado o direito supremo do descanso.
Acredito que a baixeza de nossa espécie se traduz principalmente pela variedade do nosso cardápio: comemos muito mais do que precisamos. E, para comer, matamos muito mais do que seria necessário à nossa sobrevivência. E matamos com um tal grau de requinte que a natureza não dotou nem o mais cruel dos predadores. Precisamos comer, e isto é inegável. A ciência já comprovou que nosso cérebro só evoluiu graças à grande quantidade de proteína que extraímos de nossos hábitos carnívoros. Que assim seja e respeitemos a natureza. Mas será que não há algo de errado em nosso apetite? Será que precisamos comer avestruzes, javalis, faisões, macacos, cachorros, gatos e também cavalos? Claro que não existe uma hierarquia no mundo animal que determina que bois, galinhas e peixes podem ser devorados sem problema algum; mas já que a carne parece ser mesmo essencial à nossa dieta, será que apenas estes animais, se criados com dignidade e mortos com respeito e de forma indolor, não seriam suficientes para abastecer o nosso estômago. Precisamos avançar ainda mais com nosso insaciável apetite sobre outras espécies? Precisamos comer um cavalo que durante a vida inteira deu mais duro que a maioria das pessoas que comandam este país?
Durante a última edição da Flip, o escritor sul-africano J.M.Coetzee leu um trecho que fará parte do seu próximo livro, a ser lançado em novembro, no qual descreve a agonia de um boi a caminho de um frigorífico da Austrália. Em alguns casos, para facilitar o trabalho dos carrascos, o animal tem os olhos vazados e os tendões das patas cortados. É de encher os olhos de lágrima, o peito de revolta e o estômago, ah, sempre o estômago, de uma acidez dolorida. Infelizmente, tudo isso dura pouco. Quando chega à noite, mesmo após ouvir o relato emocionado do escritor, sentamo-nos à mesa de um restaurante qualquer e pedimos um belo filé mal passado. A incoerência é a grande companheira de toda nossa jornada por este planeta, não tenho dúvidas.
Mas hoje, ao terminar de ler a matéria sobre os cavalos, desejei de coração que houvesse um céu para eles. E que deste céu, alados como Pégaso, livres das carroças, dos arados e dos chicotes, eles pudessem nos ver, lá do alto, todos nós virando nas grandes grelhas do inferno, que é realmente o nosso lugar.
quinta-feira, agosto 23, 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
5 comentários:
Concordo com absolutamente tudo,querido.Eu cada vez menos consigo comer carne.É difícl,pois miha formação gaúcha me entupiu de proteína animal,mas sinto que estou a beira do vegetarianismo por questões morais.Não desce,literalmente... Beijos.
querido, como a pati, também ando ingerindo carne cada vez com mais relutância. a matéria da ilustrada me virou o estômago. ia escrever sobre isso. não preciso mais. seu lindo tezto o fez por mim. bjs
Não sou vegetariano, mas mas não costumo comer carne vermelha, prefiro peixe. Agora, carne de cavalo, dói na carne! Belo texto, Sérgio, belo texto, como sempre. [ ]´s
Olá, meu nome é Clau, sou estudante de economia e estou fazendo um trabalho que fala da carne de cavalo. Não me espanta a matéria publicada pelo jornal, afinal seria um verdadeiro desperdício deixar os cavalinhos vegetarem até a morte, quando não fossem mais utéis.
Agora eu não comeria a carne se soubesse que era de cavalo. Gostaria que se possível, vc enviasse para mim a figura que apareceu no jornal mostrando as partes nobres do cavalo.
Obrigada.
Olá, Clau, tudo bem? Olha, infelizmente eu não tenho a figura que você solicita. Eu sei que a matéria saiu publicada na Folha de S. Paulo no mesmo dia em que escrevi este post. SErá que no google você não acha? Muito obrigado pelo recado. Abração, Sergio
Postar um comentário