quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Será que era só isso?

Confesso que passei toda esta quinta-feira pensando no artigo do psicanalista Contardo Calligaris publicado em sua coluna na Folha de S. Paulo. Com sua habitual competência, ele comentou uma pesquisa feita nos Estados Unidos sobre o aumento no número de casos de suicídios entre pessoas com mais de 40 anos - um novo grupo de risco do qual eu e a maioria dos meus amigos já fazemos parte. O que me deixou preocupado (triste, talvez?) no artigo era seu título: "Será que era só isso?" Depois do ser ou não ser, hoje já liberada de seu contexto teatral, acho que "será que era só isso?" é a pergunta que mais atormenta a humanidade. Porque é uma pergunta que parece valer para tudo: para a realização profissional, para os amores, as viagens, as aventuras, a grana no fim do mês e, lá no fim da história, para a própria razão da nossa existência aqui neste planeta. Será que era só isso, meu Deus? Às vezes a gente ainda consegue virar de lado e dormir sem ter a resposta; outras vezes, não.

Não há ninguém, do meu círculo mais próximo de amigos e familiares, que tenha se suicidado. O que não me impede de ver no suicídio, como disse Camus, se não me engano, a única questão sobre a qual realmente vale a pena se debruçar, sem moralismos e pieguices. Por alguma razão que ainda não consegui entender, o suicídio consumado, ou a simples desconfiança de sua intenção, continua sendo, para mim, a mais enigmática porta de saída desta vida. Talvez porque seja, entre todas as decisões que tomamos na vida, a única sobre a qual não conhecemos nada. Como comprar um bilhete sem volta para um local desconhecido - é uma idéia que me assusta, a princípio. Não pelo que ela tem de irreversível, mas pelo que ela oferece de possível. É um bilhete que, desde que nascemos, vai estar sempre à nossa disposição.

Depois que terminei de ler o artigo do Calligaris, comecei a pensar não nos suicidas convictos, como Kurt Cobain e Pedro Nava, por exemplo. Mas em todos aqueles que foram embora envoltos numa poeira que insiste em não baixar. Heath Ledger é um deles. Elis Regina é outra. Marilyn Monroe, Natalie Wood e até Elvis Presley, quem sabe. Pessoas que, pinçadas do senso comum por seus extraordinários talentos, um dia olharam para algum espelho qualquer e se perguntaram também: será que era só isso? E, no caso específico deles, sinto que a questão se mostrou ainda mais dilacerante.

Reconheço que tudo isso é devaneio, mas não consigo, até hoje, parar de pensar no que teria passado pela cabeça do Heath Ledger, por exemplo, enquanto tomava aquele devastador coquetel de ansiolíticos e antidepressivos. Será que ele virou os frascos de uma vez só ou, a cada comprimido que engolia, sentia-se um pouco mais próximo de algum estado de serenidade que talvez buscasse? Ele tinha 28 anos, uma indicação ao Oscar, era apontado como o sucessor de Marlon Brando e sua performance como o Coringa, dizem, deixa a de Jack Nicholson no chinelo. Admitamos que não é pouco. O que aconteceu com esta informação, que faz toda a diferença, na hora do desespero naquele apartamento de Nova York? Lá atrás, no início dos anos 80, como foi a última noite de Elis Regina? Em sua provável agonia será que ela se lembrou que era dela talvez a mais bela voz que este país já ouviu? Que todos os palcos, daqui e do resto do mundo, estariam sempre abertos à sua insuperável arte? Que ela tinha chegado, aos 36 anos, a um ponto em que a maioria absoluta das cantoras sonha chegar e não conseguirão jamais? E Marilyn? Enquanto mergulhava no último dos seus sonos, será que ela se deliciou com a idéia de ser a mulher mais fotografada e desejada de sua época? Será que sorriu orgulhosa de saber que seu rosto era tão popular quanto uma nota de um dólar? Será que se esticou nos lençóis, nua, e transferiu os problemas para a manhã seguinte, com todos nós fazemos, sem sermos Marilyn, Elis e Ledger...

Perguntas bobas, talvez. Mas que vira e mexe voltam à minha cabeça sempre que procuro compreender o que pode realmente nos trazer a felicidade. Será que era só isso? Esta pergunta, tenho certeza, um dia vai cair sobre nossas cabeças com um peso que pode beirar o insuportável. Só espero que, neste dia, mesmo sem sermos ricos, famosos e queridos por toda uma geração, a gente encontre uma resposta tão boa, mas tão boa, que não veja a hora que amanheça para começarmos tudo de novo. Talvez igual. Ou, com um pouco de sorte, talvez melhor.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Deixa que digam, que falem, deixa isso pra lá, vem pra cá, venha ver...

E eu que achava que muitas vezes tinha escolhido a pessoa errada... Caramba!

No escurinho do cinema

Foi com muita alegria que, ao passear pelo blog do Alberto Guzik, eu descobri que ele tinha adorado o filme Sweeney Todd, o último trabalho do diretor Tim Burton, baseado em um musical da Broadway que, salvo engano, o cantor Saulo Vasconcelos, do Fantasma da Ópera, já fez por aqui também. Se é um filme fácil, ou mesmo agradável de ser visto? Eu diria que não. Londres surge na tela da maneira mais repugnante possível, com gente feia pelas ruas e centenas de ratos e baratas pelos esgotos e sobre as mesas de cozinhas. Até aí, nenhuma novidade. Tim Burton não deve ter vindo ao mundo para encher os nossos olhos de contentamento. O que ele parece querer, e desta vez sinto que chegou muito perto de conseguir, é atrair o nosso olhar mais afetuoso para o grotesco, para o disforme e, acima de tudo, com o perdão do romantismo, para os corações enamorados que batem atrás de carcaças ambulantes de rostos sombrios e entristecidos. O mundo de Tim Burton é, à primeira vista, mesmo assustador. Talvez por isso Sweeney Todd seja um filme tão interessante, pois ele trata basicamente de vingança, e não me parece que o mundo dos vingativos seja lá muito colorido. Assim, acredito que o diretor encontrou, finalmente, um tema que combine à perfeição com o lado escuro por onde ele gosta de transitar.

Há muitos anos ganhei de presente um disco (disco mesmo, de vinil) da Barbra Streisand chamado The Broadway Album. Barbra Streisand é uma mulher estranha. Depois de 40 anos de carreira e de todos os prêmios, dólares e consagração a que um artista pode aspirar, ela continua querendo provar que é uma excelente cantora. Todas as suas gravações têm de ter algum floreio desnecessário, algum vibrato anacrônico, alguma demonstração do virtuosismo que ela sempre possuiu. Se relaxasse, seria uma das grandes cantoras do mundo. Mas acho que ela vai morrer tentando provar que a voz dela é melhor do que as centenas de canções que gravou. Mas há algo inegável sobre Streisand: poucas intérpretes americanas sabem passear tão bem pelo universo dos musicais. Talvez por ter sido cria de alguns deles. Bom, o que eu quero dizer é que no disco The Broadway Album ela canta duas canções de Sweeney Todd - Not While I am Around e Pretty Woman - talvez as minhas prediletas deste disco que nem sei mais por onde anda. Assim, ao ver o filme e reconhecer nele estas duas canções, tive motivos extras para sair do cinema cantarolando pelas ruas. Johnny Depp, e isto já é um lugar comum, está maravilhoso em cena, cantando legal e com aquela eterna cara de cão que tomou chuva e agora pede abrigo. Mas, como quase todos os meus amigos não gostaram do filme, não ouso recomendá-lo a ninguém, não. Não quero que ninguém fique bravo por, como diz muita gente, ter perdido duas horas no meio de uma cantoria sem fim.

E como o assunto do dia parece ser cinema, vejo que uma pesquisa revela que os americanos gostariam que a comedinha Juno ganhasse o Oscar de melhor filme. Vi o filme e achei de uma chatice só. Ellen Page é uma ótima atriz, mas gosto muito mais dela em Menina Má.com. Juno, a garota grávida de 16 anos que ela interpreta no filme, tem um humor tão ácido, mas tão ácido, que soaria forçado até no doutor House, o médido doidão e viciado em analgésico da série House. A cada frase de efeito que ela soltava em cena, a cada diálogo pretensamente carregado de ironia, superioridade e inteligência agudíssima, eu desacreditava mais e mais na personagem. A trilha é fofa e o final não é previsível mas daí a fazer de Juno um dos grandes filmes do ano já é um pouco exagerado. O que mais me irritou em Juno foi transformarem uma garotinha grávida de 16 anos numa Dorothy Parker em miniatura, uma jovem que descorre com impressionante desenvoltura sobre música, quadrinhos e tudo mais o que dela for requisitado. Claro que os jovens podem ser inteligentes e antenados - aliás, devem. Mas não há nada mais chato do que geniozinhos espirituosos com barriguinha de seis meses.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Voltando aos poucos

Só agora vejo que há quase 20 dias não apareço por aqui. Uma crise de falta de criatividade aliada àquela sensação de que tudo já foi dito sobre tudo, nos jornais, na tevê e nos outros blogs, me manteve longe deste espaço pelo maior intervalo desde que ele foi criado. Retornei porque, confesso, fiquei com um pouco de medo de ver este blog aumentando as estatísticas de uma pesquisa feita recentemente sobre a utilização da internet. A maior parte dos blogs, segundo a pesquisa, caiu num buraco negro há mais de dois anos. Ou seja, seus autores não escrevem mais nada e os visitantes, obviamente, desapareceram por completo. Dá um pouco de pena, porque quem já teve um blog, ou se tornou visitante de um deles, sabe que há muito de confessional vagando por esta terra sem dono. Há memórias, reflexões e momentos íntimos que, por algum motivo que pode variar entre o pendor literário e a veleidade, vieram dar as caras sem medo de represálias por aqui. E então, como se desiste de um projeto, de um sonho, das caminhadas diárias, de um curso, de uma dieta, de um amor e de uma ambição, as pessoas também desistem de fornecer a ração diária tão essencial à sobrevivência dos blogs. E aos poucos eles vão morrendo, cheios de velhas histórias que vão perdendo o interesse até para os seus próprios donos, como livros que acumulam poeiras no fundo de alguma estante e que só serão lembrados no dia da mudança.

Senti vontade de falar sobre o uso de cartões corporativos, sobre as lágrimas na despedida do Guga das quadras (acho que sou um dos poucos a acreditar que ele não deveria mais se expor desta maneira; o limite entre a emoção e a mendicância, nestes casos, é muito fácil de ser rompido e ele, como excepecional atleta que é, talvez devesse deixar na retina do público as imagens da vitória e não o contrário), sobre a vitória de Tropa de Elite em Berlim (comemorei com a alegria de um feriado que cai numa segunda-feira) e até sobre assuntos muito mais corriqueiros, como a situação das calçadas na Avenida Paulista - passei por lá hoje e o calor, a quantidade de pessoas correndo em todas as direções e o ruído das betoneiras me transportaram para uma Bagdá depois de algum atentado xiita.

Nunca o trânsito esteve tão insuportável como neste início de ano e nunca senti tanta vontade de ficar mais tempo em casa. Com a mente quieta e os dedos em paz também, longe dos teclados. O silêncio neste espaço aqui é, no fundo, reflexo disso. Há tanta gente falando (para o bem e para o mal), tanta informação sendo processada, tão pouco tempo para ler e tantos atropelos na vida que, em alguns momentos, um pouco de quietude na vida da gente e na dos outros não deve fazer mal a ninguém. Psiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuu.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Recordar é viver, eu ontem sonhei com você

Ouço o depoimento de um médico sobre o recente empenho da indústria farmacêutica em encontrar uma droga que provoque o esquecimento. Na hora, pensei ter entendido mal. Não seria uma droga que retarde o esquecimento, ´doutor? Ele respondeu que não, esta nova droga seria usada mesmo para deletar algumas de nossas lembranças, principalmente as mais traumáticas, aquelas que nos impedem, por um período longo ou curto, de prosseguirmos com as nossas vidas de maneira regular. Seria algo como o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, voltei a perguntar. "Pode ser que sim, mas com menos glamour", ele respondeu. Eu insisti e disse que não acreditava que algum dia a medicina chegaria a tanto. Ele, como profissional da área, preferiu dizer apenas que muitos cientistas, empregados dos grandes laboratórios farmacêuticos, estavam seriamente empenhados em descobrir esta droga que eu, zombeteiro, passei a chamar de Forgetol (do ingês Forget All). Convenhamos que é um bom nome, né?

Excluindo o que pode existir de ficção científica numa descoberta como esta, não resisti e passei uns bons minutos pensando no que eu gostaria de esquecer se o remedinho já estivesse à venda na farmácia da esquina. Algumas pessoas queridas que já se foram? De maneira alguma, minha luta é para que elas se agarrem nos fiapos de memória que ainda as ligam a mim e jamais partam de vez. Os amores que não deram certo? Também não. Se eu me esquecesse deles, cairia nas mesmas armadilhas... se é que já não caio. Algum momento indesejado e triste da infância que me persegue até hoje? Provavelmente não, também. Quem pode me garantir que, apesar do gosto amargo que eles ainda me provocam, não foram necessários para despertar alguma coisa de boa em mim... O quê, então, eu gostaria de esquecer? Acho que nada. Com o passar do tempo, a vida está se mostrando competente até demais em levar embora minhas lembranças, as boas e as ruins. O que ficar, se alguma coisa realmente vier a ficar, deve ter lá os seus motivos e não gostaria que um comprimidinho interfirisse nesta espécie de faxina mental da qual o tempo se encarrega muito bem. Já imaginaram o tamanho do horror se algum dia a gente olhasse, por exemplo, para a cara do Collor e do Maluf e dissesse assim: engraçado, parece que eu conheço estes dois de algum lugar, mas agora não lembro de onde.

No mesmo dia, este médico falou sobre as crianças inglesas que tomam Prozac e sobre como os antidepressivos já se tornaram a segunda categoria de medicamento mais vendida nos Estados Unidos. Pelo visto, estamos aos poucos tentando eliminar a dor das nossas vidas. Não se trata aqui de fazer um levante contra o uso dos antidepressivos - eu mesmo acredito ter sido salvo por eles em duas ocasiões da minha vida. Mas é que, à primeira vista, estas estatísticas assustam um pouco. Acho que o sumiço da dor afeta a nossa identificação com o mundo. Quanto menos dor sentirmos, penso eu, menos acreditaremos também na dor do nosso semelhante. Papo babaca? Talvez seja mesmo. Mas tenho medo de que um dia, atrás dos nossos muros e janelas, a gente coloque o som no volume máximo, tome um Prozac, um Forgetol e comece a dançar irremediavelmente sozinho. Com a certeza de que nosso vizinho não vai reclamar, pois estará fazendo o mesmo na casa dele.