Ouço o depoimento de um médico sobre o recente empenho da indústria farmacêutica em encontrar uma droga que provoque o esquecimento. Na hora, pensei ter entendido mal. Não seria uma droga que retarde o esquecimento, ´doutor? Ele respondeu que não, esta nova droga seria usada mesmo para deletar algumas de nossas lembranças, principalmente as mais traumáticas, aquelas que nos impedem, por um período longo ou curto, de prosseguirmos com as nossas vidas de maneira regular. Seria algo como o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, voltei a perguntar. "Pode ser que sim, mas com menos glamour", ele respondeu. Eu insisti e disse que não acreditava que algum dia a medicina chegaria a tanto. Ele, como profissional da área, preferiu dizer apenas que muitos cientistas, empregados dos grandes laboratórios farmacêuticos, estavam seriamente empenhados em descobrir esta droga que eu, zombeteiro, passei a chamar de Forgetol (do ingês Forget All). Convenhamos que é um bom nome, né?
Excluindo o que pode existir de ficção científica numa descoberta como esta, não resisti e passei uns bons minutos pensando no que eu gostaria de esquecer se o remedinho já estivesse à venda na farmácia da esquina. Algumas pessoas queridas que já se foram? De maneira alguma, minha luta é para que elas se agarrem nos fiapos de memória que ainda as ligam a mim e jamais partam de vez. Os amores que não deram certo? Também não. Se eu me esquecesse deles, cairia nas mesmas armadilhas... se é que já não caio. Algum momento indesejado e triste da infância que me persegue até hoje? Provavelmente não, também. Quem pode me garantir que, apesar do gosto amargo que eles ainda me provocam, não foram necessários para despertar alguma coisa de boa em mim... O quê, então, eu gostaria de esquecer? Acho que nada. Com o passar do tempo, a vida está se mostrando competente até demais em levar embora minhas lembranças, as boas e as ruins. O que ficar, se alguma coisa realmente vier a ficar, deve ter lá os seus motivos e não gostaria que um comprimidinho interfirisse nesta espécie de faxina mental da qual o tempo se encarrega muito bem. Já imaginaram o tamanho do horror se algum dia a gente olhasse, por exemplo, para a cara do Collor e do Maluf e dissesse assim: engraçado, parece que eu conheço estes dois de algum lugar, mas agora não lembro de onde.
No mesmo dia, este médico falou sobre as crianças inglesas que tomam Prozac e sobre como os antidepressivos já se tornaram a segunda categoria de medicamento mais vendida nos Estados Unidos. Pelo visto, estamos aos poucos tentando eliminar a dor das nossas vidas. Não se trata aqui de fazer um levante contra o uso dos antidepressivos - eu mesmo acredito ter sido salvo por eles em duas ocasiões da minha vida. Mas é que, à primeira vista, estas estatísticas assustam um pouco. Acho que o sumiço da dor afeta a nossa identificação com o mundo. Quanto menos dor sentirmos, penso eu, menos acreditaremos também na dor do nosso semelhante. Papo babaca? Talvez seja mesmo. Mas tenho medo de que um dia, atrás dos nossos muros e janelas, a gente coloque o som no volume máximo, tome um Prozac, um Forgetol e comece a dançar irremediavelmente sozinho. Com a certeza de que nosso vizinho não vai reclamar, pois estará fazendo o mesmo na casa dele.
quarta-feira, fevereiro 06, 2008
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