segunda-feira, abril 19, 2010

Um domingo para visitar Clarice

Como deve ter ocorrido com muitos leitores, fiquei fascinado pelo universo de Clarice Lispector ainda na adolescência. Aquela narrativa entrecortada, que desafiava a gramática que ainda estávamos aprendendo, aquela urgência em expelir as ideias, como se a morte pudesse surpreendê-la antes do final do parágrafo, e principalmente aquela tragédia iminente pronta a nos assombrar na linha seguinte. Tudo me fazia crer que não havia no mundo literatura mais apta para confortar o sobressalto e as incertezas dos corações jovens do que a literatura de Clarice. Ou para atirá-los de vez no abismo, como muitas vezes ocorreu comigo.

Mas o tempo foi passando e, por prudência ou covardia, o coração foi se aquietando. Os livros de Clarice, então, foram sendo empurrados para o fundo da estante por outros autores que escreviam com menos sangue e tremor nas mãos. Ou, como disse certa vez o jornalista Ruy Castro a respeito de Elis Regina, com menos vinagre na voz. Já adulto, e bem adulto, fui reler A Paixão Segundo G.H., um dos títulos de Clarice que haviam me tirado do prumo no primeiro ano da faculdade de jornalismo. E a temível barata que tanto me afugentara, já não me assustava mais. Nem asco, nem dor. Talvez uma curiosidade, ou a saudade de alguém que eu tinha sido. Ou, ainda, o temor de não saber quem havia mudado tanto: eu ou a barata. O certo é que devolvi o livro a uma das gavetas aqui de casa, onde a tal barata deve sofrer até hoje com a falta de ar.

Falei sobre isso há algum tempo com um amigo, ele ainda um leitor assíduo de Clarice. Ele disse que entendia este meu desapego pela obra da escritora, embora com ele a situação tivesse sido inversa: quanto mais o tempo passava, mais ele a apreciava e dependia dela. E usou uma imagem ao mesmo tempo linda e perigosa para definir Clarice. “Ela era uma escritora com o fio desencapado”. Pode parecer bobo, mas eu gostaria de ter dito isso.

Então, no domingo, fui ver o espetáculo Simplesmente Eu: Clarice Lispector, solo que deu a Beth Goulart o prêmio Shell de melhor atriz do ano no Rio de Janeiro. Não é o caso de falar muito sobre o trabalho de Beth aqui – ainda que seja imprescindível dizer que em cada respiração do espetáculo percebe-se a inteligência e a dedicação de uma atriz talentosa e obcecada pela perfeição. Na composição de quatro personagens presentes em contos e romances de Clarice e na ousada representação da própria escritora em cena, com seus maneirismos e sotaques, Beth Goulart demonstra que levou a sério os anos que passou a pesquisar a vida e a obra da escritora.

Com todo respeito à bossa nova, eu diria que o espetáculo foi me conduzindo com a suavidade de um barquinho que vai enquanto a tardinha cai. Achei estranho, porque toda aquela paz parecia não combinar com o universo desencantado da escritora. Até que as águas se tornaram turvas, as ondas agitadas e os trovões no céu anunciaram o fim da brincadeira: agarre-se quem puder porque, de agora em diante, o dedo imortal de Clarice vai machucar a nossa ferida. O nocaute veio nos minutos finais, nos quais a atriz, tendo apenas o rosto iluminado, eleva uma estranha prece a Deus. Uma prece que fala das nossas ansiedades, do nosso desejo de sermos amados e da salvação que só se revela quando conseguimos amar o outro, do nosso medo da morte e do que vem depois dela (se é que algo virá), da nossa inutilidade aos olhos da natureza, incapaz de nos diferenciar de um rato morto na estrada, do nosso apetite de vida e da nossa vontade absurda de que este Deus a quem rezamos exista e possa nos ouvir. Ao final, Clarice diz que tem somente um desejo: a de que ela possa ter, na hora de partir, uma mão amiga para segurar a mão dela. E isso já teria sido o bastante.

Quando o espetáculo acabou, entendi que, naquele momento, a arte havia conseguido ser mais forte que a religião. Não sei se vou me reaproximar da literatura de Clarice, não sei mesmo. Mas senti que sobre aquelas palavras finais poderiam ser erguidos templos e estátuas. Clarice Lispector escreveu ali os dez mandamentos do homem moderno, sem falar em pecado, cobiça ou inveja. Mas, paradoxalmente, falando sobre algo que é muito mais perigoso que tudo isso junto: a vida.

quinta-feira, abril 08, 2010

Gasparzinho

Na noite de quarta-feira, participei de uma demorada reunião em um café ao lado de um cinema de shopping. Enquanto a chuva desabava lá fora, o trânsito estava caótico e a vontade de todo mundo provavelmente era de ficar em casa, eu me surpreendia com o tamanho das filas diante das salas que exibiam o filme sobre o Chico Xavier. Achei que aquela visão era tudo o que a família Barreto havia desejado para o seu Lula, O Filho do Brasil. Ainda não assisti ao filme do Chico Xavier, mas fiquei sinceramente feliz ao ver tanta gente no cinema numa noite tão inóspita. Chico Xavier é o nosso Avatar que não precisou de óculos 3D para enxergar os desejos do público.

Eu sempre simpatizei com o espiritismo, embora não consiga acreditar em quase nada do que os espíritas dizem. O que não chega a ser um demérito para a religião, pois também acho complicado acreditar que Maria concebeu uma criança sendo virgem e que Cristo, antes de experimentar ele próprio o milagre da ressurreição, tenha trazido de volta à vida alguns mortos que julgava ou queridos ou importantes. E que, depois de ressuscitado, tenha subido aos céus com corpo e tudo. Prefiro acreditar no muito pouco que a ciência consegue nos explicar e deixo as questões celestiais para um outro momento da vida, quem sabe para quando a vida estiver perto do fim e a gente então, por medo e covardia, decide se apegar a qualquer coisa.

Pensar desta forma não faz de mim uma pessoa mais feliz. Ao contrário. Na maioria das vezes fico desesperado com tantas perguntas sem resposta e com a aparente inutilidade de nossa existência. Eu invejo (olha aí um pecado!) quem tem fé. Mas a fé dos convictos, não a fé de quem acha prudente acreditar em algo para garantir um cantinho gostoso no além. Invejo os que acreditam sinceramente que Deus nos ouve, que olha por nós, que um dia mandou seu filho único para dar um upgrade na nossa humanidade tão mesquinha. Invejo quem acredita de coração que exista um lugar melhor à nossa espera, que iremos encontrar as pessoas queridas que já foram e que, neste lugar, a nossa alma vai ficar bem mais bacana do que ela é hoje em dia. São todas coisas nas quais eu gostaria de acreditar, mas tenho uma dificuldade imensa. A fé deve ser algo que deixa as perguntas de lado. Se a gente já começa duvidando, nem adianta entrar no jogo.

Eu tenho um amigo muito querido que há algum tempo decidiu aproximar-se do espiritismo. Ele ficou, mesmo, uma pessoa mais feliz, mais leve e mais compreensiva. Mostra-se sempre disposto a ajudar quem precisa e o mau humor é uma condição que ele riscou do seu cotidiano. Então ele me conta algumas coisas que aprendeu no centro espírita e eu penso: ai, meu pai, como minha alma é rasteira e incrédula. Eu juro que tento crer nas coisas que ele me diz, como na existência de hospitais espirituais nos quais a nossa alma vai ser tratada após a nossa morte, em todos os entes de luz que vão nos ajudar no momento da travessia, nos estágios que faremos antes de decidirmos reencarnar novamente, em todos os obstáculos e provações que optaremos por encontrar na nossa próxima vida, nas nódoas espirituais que carregaremos justamente por não termos cuidado do nosso corpo.

Além de duvidar de tudo isso,eu não consigo entender como é que todo mundo de repente fica bom só porque morreu. Nos relatos que ele me conta, parece não haver mais lugar para raivas, ciúmes, decepções, invejas e angústias depois do nosso último suspiro. Extinguem-se todas as maravilhas e os horrores das paixões humanas. Então, é como se todos os males do mundo fossem responsabilidade do nosso corpo de carne. Liberta da nossa forma humana, a única forma que conhecemos e que a natureza levou milhares de anos para delicadamente esculpir, a nossa alma, enfim, conheceria a bondade e a perfeição. Repito: eu gostaria de acreditar, mas como é difícil.

Sei que alguém iniciado no espiritismo vai dizer que este meu raciocínio é de um primarismo que assustaria até uma alma-penada. Mas é a minha maneira de pensar a respeito deste assunto a partir das informações que coletei ao longo da vida. E não foram, confesso, informações preguiçosas. Mais de uma vez eu me esforcei para ler os livros psicografados, mas nunca consegui passar da página dez. Não por que eles sejam mal escritos (e são mesmo, paciência!), mas porque todos trazem uma ingenuidade comovente. Tão ingênuos e tão comoventes que eles, às vezes, levantam-se como ameaça à nossa inteligência e ao nosso discernimento.

Há alguns dias eu falei para um amigo (que parece ser tão incrédulo quanto eu eu) que apesar do meu ceticismo, eu também tenho medo de que tudo acabe nesta vida aqui. Tenho medo de que somente a escuridão profunda e eterna estará à nossa espera – em contrapartida, não teremos consciência para sofrer com isso. Então, eu disse a ele, para evitar decepções futuras e ausência total de comunicação, eu já vou deixar escritas umas 10 ou 12 cartas psicografadas que serão lidas em intervalos de um mês após a minha morte. Tudo isso já para adiantar as coisas. Não sei ainda o que vou dizer nestas cartas, mas espero ter tempo para pensar. E, para não fugir à regra, prometo que só vou falar de coisa bacana. Espero que ninguém me desmascare.