Como deve ter ocorrido com muitos leitores, fiquei fascinado pelo universo de Clarice Lispector ainda na adolescência. Aquela narrativa entrecortada, que desafiava a gramática que ainda estávamos aprendendo, aquela urgência em expelir as ideias, como se a morte pudesse surpreendê-la antes do final do parágrafo, e principalmente aquela tragédia iminente pronta a nos assombrar na linha seguinte. Tudo me fazia crer que não havia no mundo literatura mais apta para confortar o sobressalto e as incertezas dos corações jovens do que a literatura de Clarice. Ou para atirá-los de vez no abismo, como muitas vezes ocorreu comigo.
Mas o tempo foi passando e, por prudência ou covardia, o coração foi se aquietando. Os livros de Clarice, então, foram sendo empurrados para o fundo da estante por outros autores que escreviam com menos sangue e tremor nas mãos. Ou, como disse certa vez o jornalista Ruy Castro a respeito de Elis Regina, com menos vinagre na voz. Já adulto, e bem adulto, fui reler A Paixão Segundo G.H., um dos títulos de Clarice que haviam me tirado do prumo no primeiro ano da faculdade de jornalismo. E a temível barata que tanto me afugentara, já não me assustava mais. Nem asco, nem dor. Talvez uma curiosidade, ou a saudade de alguém que eu tinha sido. Ou, ainda, o temor de não saber quem havia mudado tanto: eu ou a barata. O certo é que devolvi o livro a uma das gavetas aqui de casa, onde a tal barata deve sofrer até hoje com a falta de ar.
Falei sobre isso há algum tempo com um amigo, ele ainda um leitor assíduo de Clarice. Ele disse que entendia este meu desapego pela obra da escritora, embora com ele a situação tivesse sido inversa: quanto mais o tempo passava, mais ele a apreciava e dependia dela. E usou uma imagem ao mesmo tempo linda e perigosa para definir Clarice. “Ela era uma escritora com o fio desencapado”. Pode parecer bobo, mas eu gostaria de ter dito isso.
Então, no domingo, fui ver o espetáculo Simplesmente Eu: Clarice Lispector, solo que deu a Beth Goulart o prêmio Shell de melhor atriz do ano no Rio de Janeiro. Não é o caso de falar muito sobre o trabalho de Beth aqui – ainda que seja imprescindível dizer que em cada respiração do espetáculo percebe-se a inteligência e a dedicação de uma atriz talentosa e obcecada pela perfeição. Na composição de quatro personagens presentes em contos e romances de Clarice e na ousada representação da própria escritora em cena, com seus maneirismos e sotaques, Beth Goulart demonstra que levou a sério os anos que passou a pesquisar a vida e a obra da escritora.
Com todo respeito à bossa nova, eu diria que o espetáculo foi me conduzindo com a suavidade de um barquinho que vai enquanto a tardinha cai. Achei estranho, porque toda aquela paz parecia não combinar com o universo desencantado da escritora. Até que as águas se tornaram turvas, as ondas agitadas e os trovões no céu anunciaram o fim da brincadeira: agarre-se quem puder porque, de agora em diante, o dedo imortal de Clarice vai machucar a nossa ferida. O nocaute veio nos minutos finais, nos quais a atriz, tendo apenas o rosto iluminado, eleva uma estranha prece a Deus. Uma prece que fala das nossas ansiedades, do nosso desejo de sermos amados e da salvação que só se revela quando conseguimos amar o outro, do nosso medo da morte e do que vem depois dela (se é que algo virá), da nossa inutilidade aos olhos da natureza, incapaz de nos diferenciar de um rato morto na estrada, do nosso apetite de vida e da nossa vontade absurda de que este Deus a quem rezamos exista e possa nos ouvir. Ao final, Clarice diz que tem somente um desejo: a de que ela possa ter, na hora de partir, uma mão amiga para segurar a mão dela. E isso já teria sido o bastante.
Quando o espetáculo acabou, entendi que, naquele momento, a arte havia conseguido ser mais forte que a religião. Não sei se vou me reaproximar da literatura de Clarice, não sei mesmo. Mas senti que sobre aquelas palavras finais poderiam ser erguidos templos e estátuas. Clarice Lispector escreveu ali os dez mandamentos do homem moderno, sem falar em pecado, cobiça ou inveja. Mas, paradoxalmente, falando sobre algo que é muito mais perigoso que tudo isso junto: a vida.
segunda-feira, abril 19, 2010
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3 comentários:
"a solução para esse absurdo chamado "eu existo", a solução é amar um outro ser, que, este, compreendemos que exista", c.l. no livro: uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. é a frase pregada na parede do meu quarto. verei a peça sexta! beijos.
Oi, Juliana, brigadão por dizer onde eu posso encontrar este texto. Vou querer ler mais vezes. beijão
Espero que a abstinência no blog não dure mais muito tempo.
Bjs
Julia
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