domingo, fevereiro 21, 2010

Olhos de azeitona

Há algumas semanas, o amigo e editor André Fischer me convidou para escrever uma crônica para a revista mensal que ele edita, a Junior. Eu sempre fico meio prevenido diante destes convites porque acho que não vou dar conta, não por falta de tempo, mas de inspiração. Sempre acho que quem convida a gente para alguma coisa alimenta alguma expectativa, sei lá, espera que a gente entregue um produto bacana. E então eu travo, acho que não consigo produzir nada legal e que a pessoa que fez o convite vai dizer que gostou só por camaradagem.
Fui tomar um café com ele e ele me mostrou alguns números anteriores da revista. Pude ver, com muita alegria, que o espaço que ele estava me destinando fora ocupado, em meses passados, por amigos queridos como o dramaturgo Alcides Nogueira e o jornalista Carlos Hee. Quando ele me disse que eu poderia escrever sobre qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, então eu topei. Chegando em casa, li o que o Alcides e o Carlinhos haviam escrito em seus respectivos meses, entendi o espírito da seção e, na mesma tarde, escrevi a crônica que segue abaixo. O título, Olhos de Azeitona, foi dado pelo próprio André e eu achei bem legal. Espero que curtam.


“Poucas coisas o irritavam mais nas noites de sábado do que o cheiro de pizza que escapava com igual incômodo dos dois elevadores do seu prédio. Ele sempre acreditou que aquele aroma, em que sobressaíam de maneira indisfarçável rastros de cebolas e lingüiças, era a principal prova da existência de vidas monótonas ao seu redor. Vidas que, em sua compreensão contaminada de inquestionável soberba, haviam se atrofiado tanto ao longo dos anos que hoje podiam ser acomodadas nas mesmas caixas de papelão em cujo interior as pizzas trepidavam ao ritmo dos baques do elevador. Em seu íntimo, ele sabia que era uma forma preconceituosa de diagnosticar os seus vizinhos, mas ele nunca acreditou que a melhor tradução da felicidade fosse a imagem de um queijo derretido escapando dos lábios num sábado à noite.

Mas naquele sábado ele concordou que precisaria se render. Havia acordado às sete da noite, confuso e enjoado depois de um chill out em que os copos de vodca e uísque repousavam sobre bandejas nas quais as carreiras de cocaína tinham traçado irresistíveis pegadas. A cabeça pesava e o estômago doía. Devia ser fome. Àquela hora, sabia, seria impossível encontrar companhia para jantar. Lembrou-se, sem muito ânimo, do imã que havia grudado em sua geladeira com o telefone de uma pizzaria. Resistiu em telefonar porque, se o fizesse, acreditava que em poucos minutos iria se igualar aos vizinhos que tanto desprezava. Olhou em sua despensa: um vidro pela metade de shoyu, uma lata de ervilha e uma embalagem de Bis com a data vencida. Discou e pediu uma pizza média, a mais simples do cardápio. Margherita, disseram do outro lado da linha. E três latas de Coca Cola normal.

Cinco minutos antes do previsto, o interfone tocou. Um motoboy trazendo a pizza estava à sua espera na calçada. Desceu com o cheque já preenchido. Nestas horas, pensou, era sempre bom ganhar tempo. O rapaz conferiu o valor, agradeceu os dois reais a mais pela gorjeta e pediu para que ele anotasse o número do celular no verso do cheque. À falta de caneta, usou a do motoboy. “O senhor é novo aqui no prédio?”, perguntou o rapaz, então com a viseira do capacete levantada, enquanto ele anotava o telefone. “Nem novo e nem senhor”, respondeu, mal-humorado. “É que pizza o senhor nunca pediu”. Ao levantar a cabeça para devolver a caneta, deparou com dois olhos negros e curiosos, que o observavam entre as grades do portão. Negros como as azeitonas que, pouco mais tarde, ele encontraria decorando sua pizza. “É que”, balbuciou hipnotizado pelo olhar do motoboy, “eu não gosto tanto assim de pizza”. O rapaz o encarou por alguns segundos em silêncio, baixou a viseira do capacete e respondeu que daquela ele gostaria.

Comeu apenas metade da pizza. O que não o impediu de, na sexta-feira seguinte, fazer um novo pedido. E assim na terça, na quinta, e assim no outro sábado. Jogava fora as bordas da pizza, grossas e mal assadas. Às vezes, jogava fora o recheio também. O que o alimentava, a iguaria das suas noites, ainda que o excesso de romantismo e a infantilidade da situação o incomodassem profundamente, eram os olhos negros do motoboy. Os olhos de azeitona. As azeitonas que, ainda que murchas e pequenas, ele se recusava a jogar fora.

No fim de tarde do terceiro sábado, o interfone tocou. O motoboy havia chegado. “Mas eu não pedi nada”, disse ao porteiro. “O motoboy mandou dizer que é por isso mesmo que ele veio”. Ele desceu e, pela primeira vez, viu o motoboy sem capacete, seus cabelos que, fossem mais longos, seriam encaracolados. “Tem uma coisa que eu faço todo sábado à tarde”, disse o motoboy, antes mesmo que o portão se abrisse. “Eu faço sempre sozinho, mas fiquei com vontade de te levar desta vez”. Ele olhou para aqueles olhos negros, que à luz da tarde nem tão negros assim eram, e não sentiu medo. Sentou-se na garupa, vestiu o capacete cinza que o motoboy lhe trouxera, e ficou feliz por, depois de muito tempo, se permitir ser conduzido para algum lugar que ele desconhecia.

No sábado de ruas mais desertas, em menos de 15 minutos estavam no Ibirapuera. Caminharam em silêncio até o lago, sentaram-se na grama e, de dentro de uma bolsa de plástico, o motoboy retirou um mundo de fatias de pizza assadas e grosseiramente recortadas que jogava aos patos e cisnes com uma alegria infantil. “É só por isso que eu sou feliz de fazer o que eu faço”, disse, com os olhos fixos no lago. “Preferi que você visse. Se eu contasse, não ia ter a mesma graça”. Envergonhado, ele colocou a mão na bolsa do motoboy e prendeu entre os dedos uma quantidade tão grande de massa de pizza que chegou a espantar os gansos mais próximos. Olhou para o motoboy e riu de um jeito quase abobalhado. “Eu queria te pedir um favor”, disse o motoboy. “Se você for pedir pizza hoje...lá por volta da meia-noite, quando eu já estiver terminando o serviço, eu posso subir para comer junto?”.

Ao voltar para casa, no início daquela noite de sábado, alegrou-se diante do aroma de cebolas e lingüiças que vazava dos elevadores”.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Começar de novo

Eu sempre alimentei a fantasia – ou deveria dizer ilusão? – de começar uma vida nova em algum lugar distante. Este sonho nunca teve nada a ver com trabalho ou estudo, pois quando viajamos para trabalhar ou estudar, normalmente damos continuidade a alguma coisa que já vínhamos fazendo por aqui. Seria um desdobramento, no máximo um aperfeiçoamento, de algo que sempre nos foi íntimo. Meu desejo era muito mais radical: eu pensava em partir para um local desconhecido onde pudesse ter uma outra vida. Começar de novo. Tentar ser outra pessoa, de preferência alguém que pouco lembrasse a pessoa que eu sou e sempre fui. A distância e o anonimato total me reinventariam, me deixariam talvez mais próximo da pessoa ideal, daquilo que a gente tenta ser e não consegue.

De todos os chavões contidos no parágrafo acima, nenhum parece ser tão improvável quanto o da pessoa ideal. Sei que, acima de tudo, são dois conceitos que não combinam: sendo pessoa, é impossível ser ideal; sendo ideal, é impossível ser humano. Mas nada me impede de sonhar, de sonhar com a possibilidade de um dia pairar um pouco acima dos erros e das deficiências que eu sempre critiquei, em mim e nos outros. Engraçado que eu nunca acreditei que as possíveis correções em minha rota pudessem ser feitas aqui mesmo, na casa em que vivo, no trabalho que exerço e na companhia das pessoas que conheço. Para ser outro, para ser um outro melhor do que eu, primeiramente a geografia teria de vir ao meu socorro. Uma nova paisagem, um novo clima, uma nova língua e o estranhamento decorrente de tudo isso: só assim eu poderia mudar.

Precisei de quase 40 anos de vida para escrever meu primeiro texto de ficção. Coincidentemente, este primeiro texto, que me abriu as portas para uma concorrida oficina de monólogos oferecida por alguns professores da USP, tratava exatamente disto. Era um conto de três páginas chamado O Fantasma de Nova York. Espero que ele esteja arquivado em algum lugar, gostaria de reler em algum momento. Era a história de um homem de 30 e poucos anos que trabalhava no World Trade Center. Na manhã do 11 de setembro de 2001, ele decidiu que chegaria um pouco mais tarde ao escritório. Ao contrário do que sempre fazia, desceu do metrô uma estação antes e parou para tomar um café. A pouco menos de uma quadra das Torres Gêmeas, viu o choque do primeiro avião. Paralisado na rua, assistiu ao segundo choque e à conseqüente queda dos edifícios. Em seus devaneios, acreditou que o ataque significava, antes de mais nada, um aviso cósmico de que ele deveria mudar de vida. Afinal, se não tivesse parado para o cafezinho, àquela hora estaria morto como todos os seus amigos do trabalho.

Em vez de ligar para a mulher e os pais e comunicar que estava vivo, o homem do conto pegou um táxi até a Estação Central de Nova York, onde tomou o primeiro ônibus para longe do estado. E então começou sua saga, de estado em estado, de profissão em profissão, trabalhando de marceneiro e garçom, escondendo sua identidade, se reinventando de alguma forma em cada trailer que alugava para provisoriamente morar. Fez trabalhos que jamais imaginara fazer, conheceu gente que passava a quilômetros do seu círculo social, tornou-se um estranho para si próprio. Até que, três anos depois, ele decidiu voltar. Procurou a mulher, que então já havia se conformado com sua condição de viúva – afinal seu corpo nunca fora localizado entre os escombros. Quando tentou explicar-lhe por que fez o que fez, ela lhe estendeu um envelope e partiu. Dentro do envelope estava seu atestado de óbito, fornecido pela prefeitura de Nova York no ano anterior. O conto termina com o homem olhando para o horizonte da cidade da qual um dia ele fugiu, com seu próprio atestado de óbito nas mãos, dizendo para si próprio que, para alguém que queria se reinventar a tal ponto, era bom ter em mãos o atestado de óbito em nome da pessoa que um dia ele fora.

Este conto, vejo hoje, só expandiu o desejo que um dia também foi meu. Eu acho que não iria tão longe quanto aquele homem foi. E, caso fosse, tentaria ao menos suavizar o sofrimento daqueles que gostam e se preocupam comigo. Mas, vez ou outra eu me vejo exatamente como o homem do conto, suspenso na rua diante dos enormes prédios que desmoronam e dizendo para mim mesmo que, enfim, é chegada a hora de começar de novo em outro lugar.

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Ensaio aberto

Sempre que posso, evito falar de teatro neste espaço. São dois os motivos. Em primeiro lugar, acredito que os acadêmicos e críticos fazem isso bem melhor que eu. Quando eu estava no twitter, costumava usar meus parcos 140 caracteres para sugerir alguma peça em cartaz na cidade; agora, longe do twitter, que infelizmente se transformou, como quase tudo na internet, em um indigesto exercício de promoção pessoal, nem isso mai s faço. Em segundo lugar porque, depois que passei a ter peças encenadas, me sinto um pouco constrangido em falar a respeito do trabalho dos colegas, ainda que seja para elogiar. Sendo assim, o teatro virou um assunto muito raro neste blog – principalmente o teatro feito por mim.

Senti vontade de voltar ao assunto depois de ter assistido, neste início de ano, a alguns espetáculos que me provocaram tédio, irritação e uma sensação incômoda de estar sendo enganado ao vivo e mediante meu consentimento. Não vou dizer aqui que espetáculos são estes. Quem acompanha a cena teatral da cidade talvez já saiba de que peças estou falando já que, em comum, elas trazem uma série de sintomas geralmente associados ao chamado teatro pós-dramático – narrativa fragmentada, projeção de vídeos, uma pretensa modernidade que já chega até nós cheirando a mofo, um jeitão descompromissado dos atores em cena que já antecipa a atitude que eles terão no coquetel de estreia, trilha sonora em excesso, discursos em primeira pessoa, utilização do nome de batismo do ator, postura de marqueteiros e mais uma coisinha ou outra que fazem a nossa plateia de caipiras e sentir em Berlim.

Num destes espetáculos, cruzei um amigo que estava mudando de lugar na plateia. Ele ocupava uma das primeiras fileiras e estava migrando para a última. Perguntei o motivo. “Olha só quanta coisa tem no palco”, ele me alertou. “No mínimo, eles estão tentando esconder algo”. Sábias palavras as do meu amigo. Eles estavam tentando esconder, sim. Estavam tentando esconder que não tinham nada para contar. É como se diretor e elenco nos dissessem assim: “Vejam bem, temos apenas um fiapo de história, ou talvez história nenhuma. Mas isso não é importante. Prestem atenção em como nós sabemos disfarçar isso com toda a nossa parafernália eletrônica e nosso descolado jogo de cintura”.

Sei que este conceito de teatro pós-dramático ainda não está totalmente estabelecido. Mesmo o papa do assunto, o crítico e professor alemão Hans Lehmann, já chegou a declarar em entrevistas que as bases deste tipo de linguagem ainda continuam a ser estabelecidas, o que não nos impede de apontar belas experiências neste campo. Eu arriscaria dizer que Ensaio Hamlet, da Cia dos Atores, levou estas bases do pós-drama a um patamar sublime. Sei que podem dizer que neste caso havia um Shakespeare por trás. Concordo. Mas acredito que alguma coisa deve haver por trás desta quebra da linguagem e do formalismo do drama convencional. Se algo precisa ser quebrado, ótimo, vamos quebrar. Vamos, sim, porque às vezes o resultado pode ser surpreendente e animador. Mas vamos, em primeiro lugar, encontrar alguma coisa que possa ser quebrada em cena, que possa ser rompida para que, a partir daí, brote uma proposta estética inovadora e uma narrativa que nos envolva de imediato. Vamos encontrar uma história que, ao ser quebrada, nos encante com suas infinitas possibilidades de interpretação. Porque, até o momento, a única coisa que eu vi sendo quebrada, sem pudor e sem vergonha, é a cara de quem vai ao teatro.