quarta-feira, agosto 26, 2009

Pas-de-deux

Hoje eu me lembrei de uma história antiga e senti vontade de compartilhar com vocês. Um dia, quando eu estava no Exército (um aviso aos incrédulos: eu sou cabo do Exército Brasileiro, tá?), chegou a notícia de que receberíamos a visita de um general quatro-estrelas. Para quem nunca pisou num quartel, talvez isso queira dizer pouca coisa. Mas a aparição de um general quatro-estrelas a uma unidade do interior, em que a autoridade máxima era representada por um capitão, deve ser algo equivalente a um evangélico depositar seu dízimo nas mãos do próprio Edir Macedo: uma concessão de deus na terra.

Acho que só a notícia de uma guerra contra os Estados Unidos deixaria os oficiais mais nervosos do que esta visita do general, marcada para a semana seguinte. Começou um tal de cortar a grama, pintar as paredes, lustrar os fuzis e pistolas, dar brilho nos coturnos, ensaiar o Hino Nacional e a Canção do Exército e raspar ainda mais os cabelos que qualquer um que visse aquela loucura toda poderia jurar que se tratava de algum teste para um novo musical do Jorge Takla. Tínhamos de estar lindos, limpos, afinados e muito, acima de tudo bem preparados fisicamente, pois era bem provável que o general quisesse assistir a uma sessão de educação física.

Assim, dois dias antes da chegada do general, o tenente encarregado do nosso condicionamento resolveu incrementar as sessões de educação física com uma série de movimentos até então inéditos para nós. Eu não sabia que, justo naquela tarde, aprenderíamos uma nova coreografia para encantar os olhos do general. Como eu estava com dor de garganta, resolvi dar um balão: me escondi em um dos banheiros do quartel e passei uma hora lá, imóvel e silencioso, enquanto meus companheiros decoravam os novos passinhos. Quando a sessão de ginástica terminou, saí do banheiro com os trajes da educação física e me misturei rapidamente à tropa, como se tivesse feito parte da aula. Um soldado descobriu meu truque e vaticinou: “ Roveri, você tá fodido. A educação física agora é todinha diferente e você não aprendeu.”

Tarde seguinte, último ensaio antes da chegada do quatro-estrelas. Eram 142 soldados na quadra, calções azuis, camisetas brancas e tênis preto sem meias, esperando pelo comando do tenente. A cada apito do homem, a tropa executava um determinado movimento ensaiado na tarde anterior. E eu errei absolutamente tudo. 141 soldados olhavam para a direita e eu para a esquerda; 141 soldados caíam de bruços para a flexão de braço e eu pulava no polichinelo... Ao ver o meu estranho deslocamento no meio daquele batalhão tão bem ensaiadinho, o tenente parou a sessão, subiu numa arquibancada e gritou: “Soldado Roveri, você não é uma bailarina!”
Silêncio na tropa; as gargalhadas são tão proibidas na caserna quanto a admiração pelo comunismo. A muito custo, consegui terminar a sessão e corri envergonhado para o alojamento.

Enquanto eu pegava a toalha para ir ao banho, um grupo de dez soldados se aproximou de mim, comandado pelo recruta Fagundes, número 411 (eu era número 312). Fagundes me encarou seriamente, colocou a mão no meu ombro e disse: “Roveri, eu fui escolhido como representante do batalhão. Eles pediram para que eu desse um recado a você”. Fiquei mudo, porque nunca tinha visto nada parecido no quartel. Imaginei que ele fosse me dizer que eu tinha ferrado toda a sessão de educação física e levaria um gelo dos colegas por isso. Mas ele queria me dizer algo bem diferente. Eis aqui o que era: “Soldado Roveri”, continuou formalmente o amigo Fagundes, “o tenente não sabe reconhecer um talento e você não deve dar bola para o que ele disse. Para todos nós deste quartel, você é sim uma grande bailarina”.

Fofoqueiro

Hoje eu almocei sozinho em um restaurante aqui perto de casa. Almoçar sozinho não está entre meus programas prediletos, mas é nestas ocasiões que costumo praticar um pecado indefensável: prestar atenção na conversa alheia. Com o tempo, a gente desenvolve alguns métodos muito sutis de exercitar esta completa falta de educação. O mais eficaz deles também é o mais simples. Ele consiste em jamais olhar na direção de onde vem a conversa. Quem já parou um minuto para observar gatos e cachorros, sabe do que estou falando. Eles giram a orelha na direção de onde está vindo o som, sem mover a cabeça. É uma maneira muito elegante de ser indiscreto e curioso. Não sei mexer a orelha como os cães e gatos, mas com o tempo a gente aprende a apurar a audição e ouvir somente aquilo em que está interessado.
Bom, depois desta introdução desnecessária, reproduzo aqui o diálogo que ouvi enquanto comia meu estrogonofe com arroz e salada de alface. Dois caras estavam sentados em uma mesa atrás da minha. Deviam ser músicos, porque só falavam sobre gravadoras, selos e instrumentos. Acredito que não eram músicos muito produtivos, pois fazia cinco anos que não gravavam nada. Nisso entrou no restaurante um amigo deles, mais sóbrio, de terno e gravata escuros, que veio animado até a mesa para cumprimentá-los.
- Pô, que coincidência encontrar vocês aqui - disse o recém-chegado enquanto abraçava um dos caras que havia se levantado para recepcioná-lo. - E aí, alguma novidade?
- Sim - respondeu o rapaz que se levantou. - Eu estou envolvido num projeto super bacana. Mas não vou contar para você porque não quero que se espalhe.
O cara ficou meio sem graça, perguntou como ia o casamento do amigo e depois correu para procurar uma mesa bem longe deles. E os outros dois continuaram alegremente sua conversa sobre batidas, percussão e a dureza do mercado fonográfico.
Almoçar sozinho é chato, mas às vezes a gente volta pra casa com uma pérola no bolso.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Marina Morena você se candidatou...

Hoje eu li na Folha que a Ivete Sangalo foi cantar na entrega do Prêmio Multishow de Música e mobilizou toda a quantidade de álcool disponível no Rio de Janeiro. A produção teve de passar álcool no microfone, nos corredores, nas maçanetas, nos interruptores, nas torneiras, no palco, nos fones de ouvido e desconfio que até em quem tentou chegar perto dela. Tudo por que ela, grávida de sete meses, queria ficar longe do risco de contrair gripe suína. Então eu pergunto: não era mais fácil e mais seguro ficar em casa? Mas quando a gente fica em casa não vira notícia, né? Então vamos comprar muito álcool e cair na vida....

A única alegria que o mundo político nos deu ontem foram as declarações da senadora Marina Silva. Falta ainda muito tempo para a eleição presidencial. Mas eu já tenho candidato. Sim, ela mesma: a acreana Marina, a dona de um dos discursos mais lúcidos, inteligentes e acima de tudo humanos que eu tenho ouvido nos últimos tempos. Tão diferente do discurso daquela outra mulher que também se diz candidata e que eu nem quero dizer o nome dela aqui, porque eu gosto muito do meu bloguezinho e tenho o maior cuidado com as pessoas que eu resolvo citar.Para aquela mulher, eu só desejo que ela fique bem de saúde e possa curtir dias ensolarados em São Luiz do Maranhão, em companhia do José Sarney, a quem ela parece se identificar e defender com unhas e dentes - bem ao gosto do seu patrão barbudinho. Quanto a este, além de preferir não dizer seu nome pelos próximos dias, eu gostaria mesmo de esquecer que passei 20 anos da minha vida, religiosamente, digitando o número 13 na urna eletrônica sempre que sua cara aparecia na telinha. Hoje, quando sua cara agora antipática aparece na telinha, em qualquer telinha, eu mudo de canal. Ou saio correndo. Nem mais como piada ele serve. Que vá embora logo.

sábado, agosto 15, 2009

Bate e volta

Durante todos estes anos como jornalista, tive a chance – ou seria melhor dizer a sorte? – de entrevistar pessoas muito interessantes. Algumas delas, inesquecíveis. E o interesse, neste caso, não tem a ver necessariamente com fama. Eu me recordo de entrevistados marcantes que eram pessoas comuns, gente anônima que, por necessidade da pauta, se prestava como personagens para as matérias. Um destes personagens foi um senhor que jogava vôlei na unidade do Sesc Pompeia. Era uma matéria sobre atividades físicas na terceira idade. Fui até a quadra, vi o finalzinho do jogo e escolhi aquele senhor ao acaso. Como Sartre dizia: a última palavra é sempre do acaso.
Resumidamente, a história do homem era a seguinte: ele estudava num seminário e estava prestes a ser ordenado padre quando viu um padre idoso e doente desesperado diante da proximidade da morte. O velho padre, ele me contou, se agarrava à cama de maneira quase histérica, gemendo que não queria morrer de jeito nenhum. Então ele, o entrevistado, perguntou ao enfermo: “Mas padre, pense que o senhor está indo ao encontro de Jesus. O senhor nos ensinou a esperar a vida inteira por este momento e agora, quando este momento chega para o senhor, o senhor fica assim, tão apavorado?” E o velho padre então lhe respondeu: “Você acha que em algum momento eu acreditei nestas coisas que eu ensinava a vocês? Você acha que eu acredito que vai ter um Deus me esperando? Não vai ter nada. Acaba tudo aqui”.
No dia seguinte, meu entrevistado fez as malas e abandonou não apenas o seminário, mas também o catolicismo. Ele me contou muito mais de sua vida, a profissão de farmacêutico que ele escolheria depois, uma viagem à Patagônia e uma tragédia familiar que o mergulhou numa tristeza durante anos. Escrevi com detalhes a vida deste homem naquela reportagem. Lá se vão mais de dez anos, mas não me esqueço de nenhum episódio que ele relatou
Nos últimos tempos, voltei a me lembrar também de uma entrevista que fiz com a atriz Julia Lemmertz. Era uma tarde fria de domingo e a assessoria da atriz marcou o nosso encontro no café do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde ela estrearia, nos próximos dias, a peça Molly Sweeney – Rastro de Luz. Ela chegou no horário combinado e, antes de eu começar as perguntas, perguntou se eu me importaria se ela tomasse um chimarrão durante o nosso papo. E no mesmo instante começou a preparar aquela mistura de erva com água fervente que eu nunca consegui fazer em casa. Ofereceu-me o chimarrão de sua própria cuia – o que, vim a saber depois, é prova de amizade e confiança entre os gaúchos. Pergunta vem, pergunta vai e ela sempre respondendo a todas com muita convicção e simpatia. Até que, assim do nada, ela me perguntou por que as pessoas insistiam nos erros. Devo ter ficado calado diante da súbita mudança nos papéis: de entrevistada, ela havia se transformado em entrevistadora. Vendo o meu silêncio, ela expôs seu raciocínio. No seu íntimo, ela me disse, as pessoas sabem quando estão errando. Sabem que aquilo que elas estão fazendo não está correto e não vai terminar bem. Elas sabem que estão construindo sua própria infelicidade. E, no entanto, não são capazes de parar. Continuam insistindo no erro até quebrar a cara e o coração de forma irreparável. E o mais estranho nisso, ela prosseguiu, é que elas sabiam desde o início que este seria o fim. Podiam ter interrompido este curso, podiam ter mudado esta rota, mas nada fizeram para evitar a tragédia. Ao contrário, elas provocaram a tragédia. Por que nós somos assim, ela voltou a me perguntar.
Dali a pouco a entrevista terminou e eu voltei para casa pensando se ela estaria se referindo à peça. Fui à estreia e vi que não. A peça era linda e Julia Lemmertz estava comovente no papel da mulher cega que um dia, ao recuperar a visão, perde o controle que tinha quando seu mundo era totalmente escuro. Acho que até hoje não sei direito ao que ela se referia – talvez eu devesse ter perguntado, mas senti que não era o momento de perguntar nada naquela hora.
Hoje eu acho que as pessoas falam daquilo que elas entendem e também daquilo que não entendem e gostariam de entender. E é nos momentos em que falamos com perplexidade daquilo que não entendemos, que nos tornamos mais compreendidos. Vai ver que é isso.

sexta-feira, agosto 14, 2009

Procura-se

Atores de São Paulo que não estejam em cartaz em alguma stand-up comedy.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Sobre cigarros, críticos e Caetano Veloso

PRIMEIRA BAFORADA

Às vésperas da entrada em vigor da lei antifumo, fui até a padaria e comprei um maço de Marlboro para os meus amigos. Não se trata de um protesto pessoal contra a lei, não. Acho a lei até muito bacana e pertinente. É apenas um mimo para os meus amigos, uma forma de dizer que na minha casa nada mudou. Os amigos que fumam continuarão sendo muito benvindos aqui em casa, onde terão sempre à disposição o cigarro, o isqueiro, um cinzeiro muito legal, presente de um amigo fumante, e cerveja gelada. Por aqui, nada mudou.
Confesso que fumaça de cigarro em lugares mais ou menos arejados é algo que nunca me incomodou. De verdade. Sei que podem dizer que se eu estou a fim de jogar meus pulmões no lixo isso é problema meu. Bom, na verdade é problema meu mesmo. O que eu quero dizer é que o cigarro nunca foi motivo para que eu me afastasse ou discriminasse alguém. Nunca fumei um único cigarro na vida e sei o quanto eles incomodam. Não costumo mais freqüentar casa noturna, em parte pela minha falta de paciência mesmo, mas em grande parte por causa da fumaça dos cigarros. Nestes ambientes, eles são abomináveis. Na última vez em que fui à Lôca, por exemplo, saí de lá depois de 15 minutos, com os olhos ardendo e dor de cabeça. Não devo voltar tão cedo. Porque se existe algo que parece não funcionar na Lôca é a obediência a qualquer norma.
Mas se alguém pede para fumar na minha casa, com as janelas abertas, ou no meu carro, também com os vidros abertos, jamais ouvirá um não de mim. Acho que a sociedade já anda repressora demais para que eu passe a engrossar este coro. Tudo bem que fumar ao lado de quem está comendo não é nada educado, e muito menos saudável. Mas meus amigos fumantes sabem disso e só acendem seus cigarros aqui em casa quando o rango – isso nos dias em que há rango – já terminou. O prazer deles de empunhar um cigarrinho numa mão e uma cervejinha ou um copo de uísque na outra me parece ser tão grande que eu jamais cortaria o barato deles. Eles são grandinhos, inteligentes e devem saber que fumar faz um mal do caralho. E eu não preciso lembrá-los disso, não aqui em casa, pelo menos.
E tem mais: podem me chamar de fresco, metido, babaca ou qualquer outra coisa parecida: mas entre jantar ao lado de alguém que fume e alguém que palita os dentes na minha frente, eu estou com o fumante e não abro. Cigarro pode matar, mas tem um charme danado. Os palitos não matam, mas viram o estômago de qualquer um.

FALEM BEM MAS FALEM DE MIM

Eu gostava mais dos tempos em que os críticos guardavam uma distância prudente dos artistas a quem deveriam criticar – ainda que houvesse fortes laços de amizade ligando os dois lados. Aprendi, ao lado de alguns grandes críticos que (infelizmente para a grande imprensa) foram ser mais felizes em outras áreas que esta distância, ainda que não obrigatória, se fazia necessária ao exercício da profissão. Era como se, ao se afastar do convívio diário e direto com os atores, o crítico também promovesse um distanciamento quase científico da obra a ser criticada. O resultado era um só: as críticas costumavam ser muito melhores do que são hoje. Hoje, se você quiser encontrar um crítico, basta ir até qualquer festa de atores. Eles estarão lá, felizes como se fossem um deles, integrados, extremamente benvindos e estranhamente cúmplices e participantes. No dia seguinte saberão retribuir tanta hospitalidade em seus espaços nos jornais e revistas. Antes havia crítica, hoje existe uma animada ação entre amigos. Quer que seu espetáculo seja bem falado? Não precisa caprichar no texto e na direção: basta começar a freqüentar festinhas. De um dia para outro, você será o maior sucesso da temporada. Só morro de pena do público, que além de não ser convidado para as festinhas, vai cair no conto do vigário na hora de deixar seu suado dinheirinho na bilheteria daquela peça, show ou filme tão bem recomendados. Mas, sejamos sinceros: quem liga para o público hoje em dia, né?

LEÃOZÃO


Fui ver ontem o documentário Coração Vagabundo, realizado durante algumas apresentações de Caetano Veloso em São Paulo, Nova York e no Japão. Saí muito mais emocionado do que imaginava. Uso a palavra emocionado e não surpreso porque, no caso de Caetano Veloso, não são exatamente surpresas o que ele nos reserva. Sabemos que de Caetano podemos esperar sempre por três coisas: belíssimas letras (em alguns casos precisaremos de muitos anos para entender a beleza contida ali), interpretações originais nas quais a personalidade exuberante do artista sempre é capaz de corrigir eventuais deficiências na voz ou no domínio do violão, e um gosto irrefreável pela polêmica, ainda que nem sempre a de alto nível. Dizer que o documentário traduz Caetano Veloso não seria correto, porque não é isso que ocorre. Coração Vagabundo mostra um artista afinado na profissão e no pensamento. E há uma coerência tão grande ao longo dos 90 minutos, uma unidade tão arrebatadora que talvez tenha sido até acidental: o que vemos de Caetano é sempre seu olhar estrangeiro diante de um mundo tão vasto de possibilidades. Caetano é um músico que conquistou o mundo, não há dúvidas: mas ele continua a ver este mundo com os olhos de um garoto que nasceu e viveu até os 18 anos em uma cidade pequena do interior baiano. Excluindo qualquer possibilidade pretensiosa de comparação, quem nasceu no interior deve saber do que estou falando. Os olhos dele trazem a curiosidade e o estranhamento que o sucesso e a idade não apagaram. E só isso já vale qualquer ingresso. Se alguém pretende ver o documentário, por favor, preste atenção em dois momentos: sua fala final sobre a velhice e seu desconforto diante de um doce japonês oferecido a ele em um templo budista. Ali não é o artista, não é o músico, não é o cara polêmico e nem o ególatra: é só um ser humano, a quem os anos já deixaram claro o sinal de sua visita, diante das mesmas dúvidas que machucam o meu coração, o seu, o nosso e o da humanidade inteira. E de vagabundo, estes corações não têm nada. Eles dão um duro danado para entender esta vida.