quarta-feira, abril 30, 2008

Uma é pouco, duas é bom, três é demais...

Ao comentar o caso envolvendo o jogador Ronaldo e três travestis em um motel na Barra da Tijuca, uma amiga saiu com esta: "Eu fico muito feliz quando coisas assim acontecem. É a prova de que toda baranga pode ter sua noite de Cicarelli. Isso faz com que a gente nunca perca as esperanças".

Acredito que Ronaldo tenha mesmo sido vítima de extorsão. Uma das travestis, a Andréia Albertini, já provou ser bem barraqueira: nesta quarta-feira ela destruiu espelhos e câmeras da Rede TV porque não queria ser entrevistada pelos repórteres do Pânico. Confesso que nisso ela conta com meu apoio incondicional. Se eu fosse famoso e aqueles idiotas do Vesgo e do Silvio viessem atrás de mim, acho que eu também não teria a mínima paciência com eles. Aquela bobajada toda já cansou faz um tempão. Só quem é realmente muito a fim de aparecer ainda suporta ser entrevistado pela dupla. Depois de quebrar os equipamentos da Rede TV, Andréia foi escoltada até a delegacia por dez policiais militares. Prova de que a moça é boa de briga mesmo.

A única coisa difícil de engolir nesta história - e em todas as outras de enredo similar - é que Ronaldo não tenha percebido que estava fazendo programa com uma travesti. Caramba, até minha santa mãezinha que mora em Jundiaí, e cuja última balada de que participou deve ter sido o Baile da Ilha Fiscal, ao olhar para aquela Andréia diria que havia gogó demais e mulher de menos naquela figurona. Impressiona muito saber que Ronaldo, com seu brilhante currículo de sedutor, foi se confundir diante de uma jogadinha tão elementar....

Voltando à minha amiga, que torce para que o caso termine bem para todos os lados, já que ela é muito mais romântica do que prudente, nossa conversa terminou com um hino à esperança. "Você vai ver só", ela me disse. "Um dia, quando eu estiver batendo perna tranquila na Vila Madalena, um carrão vai parar do meu lado, o motorista vai baixar o vidro e perguntar: moça, por favor, onde fica o bar do Sasha? Assim que eu me virar para responder, vou ver que é o George Clooney, perdido na vila e falando português. Ué, se acontece com os outros, por que não pode acontecer comigo?" Bom, que Deus a ouça.

Um fantasma e uma vida nova

O Fantasma de Nova York. Este é o nome do primeiro texto que escrevi quando decidi me aventurar pelo teatro. Fazia um ano que os ataques terroristas tinham posto abaixo as Torres Gêmeas e a prefeitura de Nova York, na incapacidade de resgatar ou identificar os corpos das vítimas, decidiu, em tempo recorde, fornecer atestados de óbitos para todos aqueles considerados desaparecidos no 11 de setembro na região do Ground Zero. Este foi o mote para que eu criasse uma pequena história, quatro páginas se não me engano, sobre um homem que, por estar atrasado naquela manhã, ganhou uma segunda chance na vida. Ou uma segunda vida.

A história era mais ou menos assim. Um trabalhador comum do World Trade Center perde a hora na manhã do 11 de setembro. Quando o primeiro avião se choca contra uma das torres, ele está a poucas quadras do seu local de trabalho. Assiste a tudo aquilo paralisado. Antes do choque do segundo avião, ele se dirige à rodoviária e compra uma passagem para o primeiro ônibus que sai da cidade. Me lembro que, quando escrevia este texto, abri um grande mapa dos Estados Unidos e fiquei imaginando para quais cidades ele rumaria. Escrevi o nome de todas elas no texto. Obviamente, em pouco tempo ele também é dado como morto, já que se desfez de todos os documentos na primeira cidadezinha a que chegou.

O maior ataque terrorista de todos os tempos, a grande ação orquestrada pela Al Qaeda para chocar o mundo e subjugar os Estados Unidos , para ele representavam apenas uma chance de começar de novo em algum lugar distante. Ele trabalhou como jardineiro, pintor de paredes, marceneiro e em outras funções que, acredito eu, não exigem assim tantas referências profissionais. O único vínculo com a realidade que ele deixou para trás era um telefonema anual no dia do aniversário do pai. Quando o velho atendia, ele desligava. Ele queria apenas saber se o pai continuava vivo. No quinto ano o velho não atendeu, nem do dia do aniversário e nem nos dias seguintes. Algo de grave havia acontecido. E então ele resolveu voltar.

Ao chegar a Nova York, ele procura a mulher e tenta se explicar. Tenta fazer com que ela entenda que ele não agiu por mal. Ao ver o prédio caindo, ele pensou que poderia estar lá. E, se não estava, aquilo deveria ser interpretado como um sinal de que algo na vida dele precisava mudar, algo radical. E então ele partiu. A mulher não diz nada. Entrega a ele um envelope fechado e vai embora. Ao abrir o envelope, ele encontra seu próprio atestado de óbito. EStá escurecendo em Nova York. Ele observa pela janela o desenho daquela cidade que um dia ele abandonou e, com o atestado de óbito em mãos, sussurra: para quem estava querendo nascer de novo, eu não posso reclamar.

O texto foi selecionado para uma concorrida oficina de três meses oferecida por alguns professores da EAD e lá eu comecei minha pequena jornada teatral. Sou muito grato ao homem do conto, que ao procurar uma vida nova para ele, abriu as portas de uma vida nova para mim também. Sem que nenhum prédio tenha precisado cair na minha frente.

quarta-feira, abril 23, 2008

Ele, o amor. Ou chega de saudade

Existem alguns filmes e peças que, por alguma razão misteriosa, não entram facilmente na nossa lista de prioridades - por mais que a crítica e alguns amigos confiáveis não se cansem de recomendá-los. Por descuido, preguiça ou uma inexplicável falta de curiosidade, vamos deixando que algumas obras saiam melancolicamente de cartaz sem que tenhamos reservado uma horinha do nosso tempo para ao menos saber se elas tinham algo a nos dizer. Quase deixei que acontecesse isso com o filme Chega de Saudade, mas reverti a situação a tempo. Felizmente.

Tenho dois amigos que trabalham no filme. Participações bem pequenas, é verdade, mas tratadas com algum carinho pela diretora Laís Bodanzky. Por telefone ou e-mail, eles viviam insistindo para que eu fosse ver o filme, alegando que era uma história bem-contada, que a trilha sonora era um achado, que Elza Soares arrasava como a crooner da orquestra que anima o baile dos velhinhos e que o elenco principal respondia por belas atuações, além de outras recomendações positivas das quais não me recordo no momento. E eu deixando tudo isso para lá.

Aproveitei o feriado de 21 de abril para, enfim, ver o dois-pra-lá, dois-pra-cá daquela geração que a gente não costuma ver mais nas pistas de dança. Quando o filme terminou, confesso que me perguntei por que eu havia demorado tanto para me presentear com aquela pequena delícia que é Chega de Saudade.

Acho que já ficou muito tarde para falar do filme como um conceito. Tenho a impressão de que tudo que podia ser dito sobre Chega de Saudade já o foi - o próprio Contardo Calligaris usou todo o espaço de uma de suas colunas semanais na Folha de S. Paulo para discorrer sobre o desejo e o erotismo que emanam dos corpos já tão gastos pela vida. Mas há, ainda, alguma coisa que precisa ser dita sobre o filme. E trata-se de algo aparentemente trágico - ou sublime, de acordo com o momento de cada um: Chega de Saudade é a prova mais contundente de que o amor nunca nos deixará em paz. Tenhamos nós 14, 18, 30 ou 70 anos, não importa: quando ele bater, ou arrombar, a porta que tão bem construímos para nos proteger do mundo, tudo que sabemos sobre maturidade, experiência de vida e dores acumuladas não nos servirá absolutamente para mais nada.

Ele, o amor, terá sempre o gosto de primeira vez. Ele, o amor, nos fará agir como se nunca tivesse havido um tempo passado. Ele, o amor, destruirá a nossa noção de prudência e a auto-estima que acreditávamos ser um intransponível escudo contra mais uma desilusão. Ele, o amor, nos fará dobrar a nossa coluna outrora tão rígida, como fez dobrar a dos personagens de Cássia Kiss, Tônia Carrero, Leonardo Villar e Miriam Mehler. Talvez venhamos a chorar na janela quando ele nos visitar, talvez venhamos a escrever bilhetes tolos e infantilizados, talvez venhamos a chorar no banheiro, talvez venhamos a nos embriagar de uísque barato, talvez venhamos a dançar uma canção já perdida no tempo, talvez voltemos sozinhos para casa - tudo isso os personagens do filme fizeram. E tudo isso é trágico. Mas talvez venhamos, por uma noite apenas, ter 14 anos de novo. E isso pode ser lindo. Mas tudo vai depender do que iremos fazer com tanta vida pela frente, no dia em que voltarmos a ter 14 anos. Ele, o amor.

Perolinhas...

"Quantas lágrimas há por trás das máscaras! Quanto mais perto o homem estaria do encontro com outro homem se nos aproximássemos uns dos outros nos assumindo como necessitados que somos, em vez de nos fingirmos fortes. Se parássemos de nos mostrar auto-suficientes e nos atrevêssemos a reconhecer a grande necessidade que temos do outro para continuar vivendo, como mortos de sede que somos na verdade, quanto mal poderia ser evitado".

Ernesto Sabato, na carta Entre o Bem e o Mal, parte do livro A Resistência, recém-lançado pela Companhia das Letras.

"Outro valor perdido é a vergonha. Vocês perceberam que as pessoas não têm mais vergonha, e que podemos encontrar qualquer sujeito acusado das piores corrupções misturado com gente de bem, com um largo sorriso no rosto, como se nada tivesse acontecido? Em outros tempos, sua família teria se enclausurado, mas agora tudo dá na mesma, e alguns programas de televisão até convidam o criminoso e o tratam como a um distinto senhor"

Idem, na carta Os Antigos Valores

sábado, abril 19, 2008

Voto vencido: falei de Isabella.

Eu havia prometido a mim mesmo que não comentaria o caso da garota Isabella aqui neste espaço. Dentre todos os motivos que me levaram a fazer tal promessa, dois merecem ser citados: 1) o caso, embora apresente novas evidências diárias que apontem para a culpabilidade do pai e da madrasta, parece ter provocado uma espécie de exaustão nos leitores - em parte pelo espaço que ele vem ocupando no noticiário e em parte pela nossa aversão natural ao horror que ele inspira, um horror que só faz crescer à medida que ilustrações sobre a queda da menina e novos depoimentos dos vizinhos vêm à tona; 2) eu considero este blog um espaço personalizado e alternativo, portanto pouco interessado em fazer eco às manchetes da imprensa e às chamadas do Jornal Nacional - seria pretensioso demais tentar competir com eles. Então, a maneira que encontrei para que este blog continue a existir é apostar na minha opinião pessoal e na minha particular visão de mundo - assim, garanto, não estarei competindo com ninguém. Já que nem sou louco de fazer o contrário.

Mas hoje, ao acompanhar a imensa platéia que fez figuração para os depoimentos de Alexandre Nardoni e Anna Jatobá, me vi obrigado a quebrar a promessa. Havia banheiros químicos destinados ao público ao lado da delegacia, houve quem tenha perdido um dia de trabalho para gritar assassinos diante da passagem do casal, houve quem tenha viajado 400 quilômetros para enfrentar, na calçada, o frio da noite de sexta-feira enquanto o casal depunha, houve quem tenha levado bolo de aniversário para comemorar os seis anos que a garota faria ontem e houve quem surgiu fantasiado diante das câmeras de tevê - como se estivéssemos diante de alguma celebração.

Prefiro acreditar que a culpa de tudo isso não seja apenas da carnavalização promovida pela mídia em torno do caso, e nem da tendência atual de nossa sociedade em encontrar uma possibilidade de espetáculo no mais íntimo dos acontecimentos. O que teria, então, dado ânimo para que aquela multidão saísse de suas casas e empacasse diante da delegacia? Ingênuo que talvez eu seja, prefiro localizar dois anseios legítimos neste fenômeno: o povo queria participar de um ritual em que pretensamente estava sendo feita a justiça e o povo queria ver, de perto, qual era a feição do mal.

Explico brevemente. Vivemos em um país notório também pela impunidade. O jornalista Pimenta das Neves matou a ex-namorada com dois tiros nas costas e está livre, o médico Farah Jorge Farah, que esquartejou a ex-namorada, talvez fique apenas um ano na prisão, Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, os assassinos de Daniela Perez, já estão em liberdade há muitos anos, o escândalo do mensalão não levou ninguém para a cadeia, ministros quebram sigilos bancários de caseiros, corruptos andam soltos, ladrões e criminosos andam soltos, juízes cobram por sentenças favoráveis a traficantes, celulares entram facilmente em presídios de segurança máxima, crianças são mortas diariamente na guerra das drogas, balas perdidas matam e aleijam inocentes em suas próprias casas... e nada acontece. De repente, um crime hediondo tem lugar e hora marcados para exibir seus autores. O mal, que nos assusta e nos intimida diariamente, agora tem rosto - o mal tem os lábios grossos de Alexandre e as feições angulosas de Anna Jatobá. A possibilidade de contribuir no exercício da justiça e ainda exorcizar o mal nos foi dada pela televisão e pelos jornais, que nos avisaram quando e onde os facínoras estariam.

Então as pessoas vão até lá, gritar por todos os delitos que sempre lhes deixaram a garganta muda, encarar os criminosos que são possíveis de ser encarados - já que Brasília fica longe - engrossar um ritual dionisíaco de exorcismo daquilo que nos causa angústia e terror - e ainda, de quebra, aparecer na televisão para mostrar que até nos momentos de indignação o brasileiro sabe cantar parabéns a você. É triste, mas parece ser o retrato mais bem-retocado destes tempos estranhos em que vivemos. No ano passado, ficamos chocados ao ver a socialite Narcisa Tomborindeguy e seus amiguinhos jogando ovos pela janela. Agora jogaram uma criança. O horror caminha rápido demais por aqui.

segunda-feira, abril 14, 2008

Um beijo roubado

Creio que duas coisas podem ser ditas a respeito de Um Beijo Roubado, o mais recente filme do diretor Wong Kar Wai. A primeira é que não estamos diante de um trabalho nem tão impactante e nem tão belo quanto alguns dos filmes anteriores deste diretor chinês, a exemplo de Happy Together, O Amor à Flor da Pele e 2046. A segunda, e é sobre esta que eu gostaria de falar um pouco aqui, é que há muito tempo eu não via no cinema (e olha que ir ao cinema está entre minhas atividades mais habituais) um filme que professassse de maneira tão delicada a fé no amor - ou na convicção de que qualquer sacrifício pode valer a pena (mesmo o de trabalhar como garçonete em espeluncas perdidas no deserto americano) desde que um amor esteja à nossa espera no dia em que decidirmos voltar para casa. Eu arriscaria dizer que Um Beijo Roubado não passa de um pequeno filme que, amparado na sempre bela fotografia de Kar Wai, tem como pretensão única resgatar o nosso ideal de amor. Pode ser pouco, mas pode ser a tarefa de uma vida inteira também.

Antes de continuar, devo alertar que tenho um amigo que vive dizendo que eu possuo o péssimo hábito de deixar escapar o fim dos filmes que vejo em qualquer conversa. Como o tema deste comentário aqui é justamente um diálogo que se dá no final de Um Beijo Roubado, convido aqueles que ainda não viram o filme a interromper a leitura agora mesmo - não quero ser visto como um eterno desmancha-prazeres.

Um Beijo Roubado marca a estréia da cantora Norah Jones como atriz - para mim ela é eficiente nos dois ofícios, não mais que isso. Norah vive uma jovem ingênua e determinada que, após ser abandonada pelo noivo, bota o pé na estrada e passa os 300 dias seguintes trabalhando como garçonete nos estados do Arizona, Tennessee e Nevada. Conhece bêbados, losers, jogadores de pôquer e toda sorte de gente que, de acordo com o que o cinema sempre nos ensinou, parece ser o habitante preferencial do grande deserto americano. No dia em que retorna para sua Nova York natal, onde os pacientes braços de Jude Law estão à sua espera, ela diz que precisava ter feito aquela viagem para se livrar da pessoa que ela era. Uma pessoa de quem ela não gostava. Lizzie, a personagem de Norah, precisou viajar para se reinventar como ser humano. Precisou fritar e servir batatinhas, passar noites sem dormir, perder o dinheiro que economizou e, acima de tudo, esfriar seu coração para, 300 dias depois, emergir disso como uma pessoa melhor - ao menos uma pessoa aprovada pela sua própria consciência.

E foi isto que me fez gostar de Um Beijo Roubado - eu também acredito que seja possível se reinventar como pessoa em algum momento de nossas vidas. Não só possível, mas necessário. No fundo, sinto que seremos sempre os mesmos: mudaremos um ponto de vista aqui, talvez nos tornemos menos radicais ali, com um pouco de sorte aprenderemos a sofrer menos diante de situações que se repetem, entenderemos a duras penas algumas lições que a vida nos dá, amaremos melhor, quem sabe, ansiaremos por um sono mais tranquilo e sem sobressaltos e pode até chegar o dia em que nosso coração consiga finalmente bater mais feliz. Mas, cético que sou, desconfio que tudo isso pode não passar de um grande truque de maquiagem para tornar a nossa imagem um pouco mais agradável a nós mesmos - no fundo, sinto que o nosso disco-rígido permanecerá inacessível no beco mais escuro das nossas almas, insistindo a nos conduzir pela trilha mais difícil e espinhosa.

Por isso é bom ver alguém que, em apenas 300 dias, conseguiu fazer o que a maioria de nós talvez não consiga fazer em uma vida inteira: olhar a partida e dizer com convicção que estamos jogando melhor. Repito que pode ser pouco, mas de uma coisa eu tenho certeza: o chopinho depois deste filme desce muito mais gostoso.

domingo, abril 06, 2008

País tropical

Confesso que não conhecia Wilson Simonal. Quando eu cheguei à idade de saber um pouco mais sobre a MPB, ele já havia sido banido das rádios e da televisão por conta de uma denúncia, pelo visto até hoje não comprovada, de que ele agia como informante para as forças da repressão. Assim, passei longe de seu talento de entertainer, mantive os ouvidos fechados para sua voz quente e suingada, nunca me seduzi pelo seu balanço, jamais tive algum dos seus CDs e nem fui tocado por sua ironia que beirava à provocação. Até ontem, Wilson Simonal era, para mim, uma figura distante a quem a mídia se referia como o pai de Simoninha e Max de Castro. Ontem à tarde encontrei por acaso uma amiga no Havana Café. Ela tinha acabado de ver o documentário Ninguém Sabe o Duro que Dei, que parece já ter nascido polêmico ao decidir entrevistar todas as pessoas próximas de Simonal na época em que ele desceu dos palcos para se refugiar a contragosto nos porões da memória nacional. Ela ainda estava comovida com o que havia visto. "Como minha mãe nunca me falou do Simonal?", ela se perguntou. "Ela tinha a obrigação de ter me apresentado a ele".

Achei que havia chegado a hora de conhecer o Simonal. Cheguei em casa e fui direto ao youtube. Passei mais de uma hora vendo tudo que havia sobre ele, vídeos antigos, em preto e branco na sua maioria - quando a cor chegou à tevê, Simonal já havia sido expulso dela. Fiquei chapado. Claro que eu já tinha ouvido, aqui e ali, a voz de Simonal em Sá Marina, Meu Limão Meu Limoeiro e País Tropical - mas isso não quer dizer que eu o conhecesse. Ontem fiquei com os olhos colados na tela do computador: Simonal era um Michael Jackson que não ficou branco. Sedutor, provocador, uma presença cênica fantástica e um domínio irrestrito sobre a platéia que só os grandes artistas costumam ter. Um ídolo de massa, em suma - quando os ídolos de massa ainda estavam na pré-história da imagem. Adorei o que vi. Fiquei triste com o que vi.

Há dois clipes em que ele se coloca na mesma estatura de duas cantoras histórias. Com Sarah Vaughan ele canta The Shadow of Your Smile e com Elis Regina, numa gravação de 1966, esmerilha no samba Vem Balançar - um dos pontos altos de seu parco acervo do youtube. Vejam e confiram se estou exagerando ou não. Sua gravação com Elis não é apenas a demonstração de uma técnica soberba dos dois lados - é a explosão de dois jovens e talentosíssimos intérpretes que parecem brincar para ver quem tem mais ritmo, quem divide melhor, quem é o dono da voz mais maleável e sapeca. Não entendo tanto assim de música, mas acho que estamos diante de um glorioso empate.

Foi, justamente, este clipe que me deixou triste depois. Elis e Simonal continuariam, ao que tudo indica, cantando excepcionalmente bem até o fim dos seus dias. Mas aquela alegria juvenil iria abandoná-los em breve. Simonal em função do escândalo que o reduziria a um pária da música brasileira, primeiro passo para sua depressão incurável e o mergulho no alcoolismo que o levaria à morte. Elis, que deve também ter enfrentado caminhos tortuosos apesar da veneração com que era tratada pela crítica e pelo público, foi aos poucos se afastando daquela imagem serelepe para se tornar uma cantora sofrida demais, que morreu jovem e carregando uma dor que parecia não caber mais em seu corpo miúdo. Os dois deixaram para o País um legado de suingue de indiscutível pedigree. Quando eu sentir saudade ou de um ou de outro (sim, porque agora já é permitido sentir saudades de Simonal), acho que é para este clipe que eu vou olhar. É muito, mas muito legal ver artistas bacanas numa época da vida em que eles ainda não tinham perdido a inocência.

sexta-feira, abril 04, 2008

Aqui e lá

Tenho alguns amigos que acabam de realizar um trabalho artístico em uma comunidade carente fora do Estado. Tudo indica que foi um destes trabalhos com potencial para mudar a visão de mundo de uma pessoa. Ou, ao menos, para apresentar a ela uma nova maneira de ver o mundo - infelizmente não muito melhor do que aquela com que estamos acostumados até o momento. Eles passaram quase um mês convivendo com os moradores daquela comunidade: gente que perdeu pais e irmãos vítimas da violência, garotas que se entregaram à prostituição quando ainda deveriam estar brincando de boneca, rapazes que aprenderam as duras leis do tráfico antes de aprender a somar e dividir, gente que foi abandonada na infância e agora anda pelos becos da comunidade a alardear que até os cães são mais felizes, gente que passa um dia inteiro às custas de um sanduíche de mortadela que chegou até ali por meio de doação e gente disposta a eliminar desafetos mediante uma quantia que, aqui em São Paulo, daria apenas para pagar uma boa refeição num restaurante bacana. Eles voltaram de lá tocados pelo horror e, talvez mais ainda, por uma resquício de humanidade e esperança que parece se esconder atrás de cada um desses casos.

Eles me contaram várias histórias e, aqui, acho que seria o caso de reproduzir apenas uma: na semana passada, uma garota daquela comunidade, viciada em crack, foi morta por uma gangue rival. O motivo do crime, aparentemente segundo seus mandantes, é que ela sabia demais e estava muito perto de começar a dar com a língua nos dentes. A cada vez que cheirava uma pedrinha, ela começava a falar mais do que devia, mais do que era permitido e desejado. Por isso, ela se converteu em um arquivo que tinha de ser apagado com urgência. Ela tinha nove anos.

Tento imaginar como seria seu rosto, se havia algum esboço de sorriso em sua face, se algum dos seus gestos ainda denunciava uma infância que talvez resistisse àquela brutalidade toda. Tento imaginar se ela voltava para casa de manhã, se havia uma casa para ela voltar e, caso houvesse, se havia ali alguém à sua espera. Tento imaginar se ela tinha uma boneca, se às vezes sentia vontade de colo, se tinha medo do escuro e dos trovões, se iria haver um bolo em seu aniversário de dez anos. Não perguntei como ela foi morta, pois este é o tipo de caso em que os detalhes pouco têm a acrescentar diante do conjunto da bestialidade. Esta história me fez lembrar da garotinha arremessada - ou não - do sexto andar do prédio aqui em São Paulo. As duas estão aí para provar que as crianças já podem ser assassinadas também sem muita cerimônia. Sempre o foram, é verdade. Mas a proximidade entre um caso e outro (talvez elas tenham sido mortas no mesmo dia) me faz crer que abrimos um precedente assustador. Isabela e a garotinha do outro estado tinham menos de dez anos e morreram como gente grande. Cada época tem a fábula que merece.