sábado, maio 31, 2008

O beijo gay das novelas

A novela Duas Caras termina neste sábado, dia 31. Como não assisti a nenhum dos capítulos anteriores, é muito provável que não veja o de hoje também. De tudo o que eu li a respeito desta novela nas colunas de televisão, me restaram apenas três informações: havia na história uma favela chamada Portelinha, Suzana Vieira era dona de uma escola e o autor do folhetim, Aguinaldo Silva, tentou até o último instante emplacar um beijo gay entre dois personagens homens. E parece que não conseguiu.

De alguns anos para cá, provavelmente desde o final da novela América, de Glória Perez, que cada novo folhetim promete, enfim, exibir um beijo entre dois homens. Às vezes, este fato isolado ganha, na imprensa, mais destaque do que a própria trama da novela. Há algumas semanas, a Folha de S. Paulo publicou, com certo destaque, que a continuação da novela Caminhos do Coração, na Record, teria dois homossexuais no enredo e que, lá pelas tantas, eles iriam se beijar. Ao ler notícias deste tipo, em que a possibilidade remota de um beijo merece tanto destaque, eu me sinto morando na roça em algum momento do século 19. Eles falam de um beijo como se falassem que, em setembro ou outubro do ano que vem, o papa faria um strip-tease ao som de Like a Virgin, de Madonna.

Então, eu me pergunto: mas por que tanto barulho por causa de um selinho entre dois homens? Semana passada, a Parada Gay reuniu um público estimado em três milhões de pessoas. Não fui, mas imagino que o que não faltou por lá foi beijo entre homens na avenida mais importante do País. Fotos de homens se beijando foram publicadas na internet, jornais e revistas. Acredito, também, que as milhares de crianças e velhinhas que costumam frequentar a parada não perderam o sono naquele domingo por ter visto dois bigodes se ralando bem ali ao seu ladinho.

O grande problema das emissoras, na minha opinião, não é a recusa em exibir o beijo gay, e sim os argumentos empregados por seus executivos para tentar justificar a proibição. Todos eles, sejam da Globo, Record ou Bandeirantes, dizem que a sociedade brasileira não está preparada para ver dois homens se beijando. Creio que nesta época em que a sociedade brasileira se mostra tão pluralizada, não seria nem o caso de se perguntar como tais executivos chegaram a esta conclusão. Ou a que tipo de perfil sociológico do povo brasileiro eles andam tendo acesso. A questão que se impõe é muito mais grave: para que a sociedade brasileira está pronta, então? Para ver seus representantes no Congresso sendo envolvidos numa série de falcatruas? Para ver parte de sua polícia fazendo negócios com traficantes? Para ver gente morrendo dentro da própria casa vítima de bala perdida? Para ver crianças serem arrastadas por carros de bandidos ou atiradas pelas janelas? Para ver gente sofrendo na fila do SUS? Para ver as idiotices ditas e praticadas pelos participantes do Big Brother durante quatro meses por ano? Para ver as idiotices ainda maiores dos programas vespertinos da própria televisão? Para ver adolescentes viciados em crack se arrastando pelas ruas das grandes cidades?

Para tudo isso estamos prontos e maduros, então? Mas um beijo, um único beijo, que seguramente não vai passar de um selinho caso venha mesmo a ser exibido, vai conseguir, sozinho, implodir todos os alicerces morais da nossa sociedade? Que beijo poderoso, meu Deus! É assustadora a capacidade que a televisão tem de vilanizar o beijo, esta forma tão inocente e pueril de carinho entre duas pessoas, enquanto que tudo aquilo que realmente é nocivo não para a nossa moral arcaica, mas para a nossa noção de cidadania, continua a ocupar o horário nobre da nossa programação, a esfregar na nossa cara o quanto somos incompetentes na hora de administrar a nossa coletividade.

Eu torço para que este aguardado beijo venha logo. Não por qualquer deleite estético ou sexual. Torço para que ele venha logo para que a gente possa ver, no dia seguinte nos jornais, uma notícia assim: beijo gay não levanta ibope da novela. E, neste dia, os executivos das emissoras de televisão vão aprender o que qualquer adolescente já sabe: um beijo sozinho não faz milagres.

quarta-feira, maio 28, 2008

A cerimônia do adeus

Acreditem: sou um leitor assíduo do caderno de esportes. Se me perguntarem a escalação do Corinthians, eu não saberia dizer. E se me pedirem para citar, assim de pronto, o nome de alguns ídolos do futebol, minha lista não iria além de Ronaldo, Ronaldinho, Kaká e Beckham, mas sem saber em que time cada um deles joga. O que eu tanto vejo, então, nos cadernos de esportes? Os títulos e os resultados dos jogos. Sempre penso que vou pegar um táxi e o motorista vai me perguntar o que eu achei da partida da noite anterior, entre Santos e Portuguesa, por exemplo. Nestas horas, é sempre bom saber que o Santos ganhou de dois a um com um gol aos 43 minutos do segundo tempo. Sei que isso não convence ninguém, mas me garante dois minutos de conversa com o taxista antes que o diálogo rume para as condições do trânsito.

Mas esta semana foi diferente. Li tudo sobre a despedida do Guga das quadras. Também não entendo nada de tênis, não sei o que é um tie-break, não sei o que é uma quebra de serviço e nem com quantos pontos se define um set. Independente disso, sempre achei o Guga um cara legal. Meus colegas de profissão, jornalistas de esportes que costumam entrevistá-lo, dizem sempre que o Guga continua tão simples como era antes de se tornar um campeão. Tenho uma amiga que mora em Florianópolis. Ela vive me dizendo que encontra o Guga na praia e no supermercado. Como ele nunca vestiu o figurino de ídolo, sua figura é tão acessível como o vendedor de mate da praia. Não sei se é verdade, mas acredito que seja. Quando ele disse, na terça-feira, que seu sonho agora era correr a Europa de mochila nas costas e depois fazer faculdade, pensei: pô, este cara podia ser o filho do meu vizinho aqui do prédio. Claro que o Guga vai ser o único mochileiro, acredito eu, a ter 15 milhões de dólares no banco. Mas o mundo está tão de cabeça para baixo que há lugar agora até para mochileiro milionário. Ainda bem.

Na verdade, o que me interessou no caso do Guga não foram seus planos de jovem aposentado e muito menos seu caráter aparentemente avesso a afetações. O que me atraiu, de verdade, foi o ato da despedida em si, foi este momento de dizer adeus quando ainda se está em evidência. Sei que ele foi levado a isso por limitações físicas, mas eu sempre acreditei que existe algo de muito nobre em alguém que resolve deixar a festa quando alguns convidados ainda estão chegando. Sair no auge é, acima de tudo, um ato de muita coragem. Não há nada mais triste e nem mais melancólico neste mundo do que deixar escapar a hora exata de sair de cena.

E é, acredito, o que mais fazemos nas nossas vidas. Deixamos passar o momento certo de abandonar o emprego que já não nos satisfaz, deixamos de sair de uma relação naquele instante exato em que todas as lembranças que carregaríamos conosco ainda seriam boas, deixamos para depois mesmo sabendo que o depois vai nos custar tão caro, mas tão caro que da próxima vez teremos ainda menos coragem de dizer adeus. Talvez evitemos as despedidas por medo. Medo de ficarmos sós, medo de termos menos dinheiro, menos prestígio, menos poder. Quando dizemos adeus a alguma coisa, trocamos tudo o que julgávamos conhecer bem por um futuro aparentemente incerto. Devemos nos sentir como aquele trapezista que, durante um segundo, soltou as mãos de um trapézio e encontra-se apavorado enquanto o trapézio seguinte não chega. O problema é que a vida costuma ser mais cruel e menos prudente do que o circo: há uma chance imensa de o trapézio seguinte não chegar a tempo e a certeza absoluta de que a rede de proteção não encontra-se armada aos nossos pés. Talvez cairemos de boca na serragem do picadeiro. Mas eu me pergunto: haverá, nesta vida, um momento mais valioso do que estes segundos que simbolizam a queda? Haverá, nesta vida, um outro momento em que levaremos tão a sério o nosso ideal de liberdade? Haverá, nesta vida, um único momento em que o vento nos soprará no rosto com tanta emoção e tanto pavor? Dizem que nós somos os únicos animais que sabem rir, que têm a consciência da finitude e a capacidade de se reconhecer na própria imagem. Mas eu acho que somos, para muito além de tudo isso, os únicos animais que podem dizer adeus.

E, no entanto, isso ainda nos parece tão dolorido. E vamos nos fiando nas migalhas de um amor que nunca se completa, na esperança de um dinheiro que nunca será suficiente para cobrir o saldo negativo da nossa alma, na bondade de um Deus que nos virou as costas no momento em que nascemos, na paciência de um chefe, na boa vontade de um amigo, na ilusão da arte. Sei que é isso que temos. E sei também que isto é ótimo. E é muito. E é, às vezes, até mais do que precisamos e merecemos. Mas, ironicamente, é de tudo isso, ou de parte disso, que precisamos nos despedir às vezes, em busca de um amor maior, de uma queda que, ainda que pela força da gravidade, desenhe um sorriso no nosso rosto. Sei que não teremos, na totalidade das nossas vidas, uma despedida tão coberta de honras como foi a do Guga. Mas já que a vida nos privou deste holofote derradeiro, que fiquemos atentos, ao menos, para saber o momento preciso de dizer adeus baixinho a alguém ou a alguma coisa. Antes de que chegue aquela hora, fatal para qualquer um de nós, em que, ao dizermos este adeus, já estaremos mortos há muito tempo para aquele alguém ou aquela coisa. E assim não conseguiremos ser nobres nem na hora de ir embora. Que a mochila do Guga lhe seja leve.

quarta-feira, maio 21, 2008

Longe Dela

Minha tia, irmã mais velha da minha mãe, sofre do Mal de Alzheimer. Está em uma fase muito adiantada da doença: não reconhece mais ninguém, não anda e nem fala e precisa de duas enfermeiras diárias que se revezam na tarefa de alimentá-la e cuidar de sua higiene pessoal. Passa a maior parte do tempo na cama. Em alguns momentos do dia, uma das enfermeiras a põe sentada em uma cadeira, mas como os riscos de queda são iminentes, todos acham mais seguro deixá-la deitada mesmo. Quando os primeiros sintomas começaram a se manifestar, há cerca de seis anos, havia algo de cômico na situação: o Alzheimer parece ser uma doença que, no início, surge apenas para subverter a rotina na vida dos idosos e criar alguns constrangimentos familiares, grande parte deles de cunho sexual.

Fazem parte deste período três episódios que, embora dotados de certa graça, já antecipavam a tempestade que estava se formando na casa. O primeiro deles é também o mais inocente. Um dia, ao revirar o guarda-roupa, minha tia encontrou uma árvore de natal de plástico. Ela retirou a árvore da embalagem, cavou um buraco no quintal e a plantou ao lado de algumas bananeiras, estas sim de verdade. Durante uma semana, ela foi todos os dias até o quintal para regar sua árvore de plástico. Depois, desenterrou a árvore, enfeitou-a com bolas coloridas e a colocou no centro da sala. O Natal, para minha tia, tinha chegado em agosto daquele ano.

Alguns dias depois, uma vizinha foi visitá-la com o pretexto de entregar o convite de casamento de sua filha. Minha tia recebeu o convite, agradeceu e disse à mulher: "A senhora não vai sair daqui sem tomar um suco de laranja". Podia ser um café, uma água ou mesmo um chá. Mas ela decidiu que seria um suco de laranja. Em seguida, cortou algumas laranjas e tentou espremê-las usando o secador de cabelos. A mulher fugiu assustada da casa dela. Uma semana mais tarde, enquanto a família estava toda reunida na sala, ela pegou o celular de uma das netas e o colocou no microondas. Seguiu-se uma explosão daquelas.

Até este momento - e espero não haver muita crueldade nisso - a família ainda se divertia com suas confusões. Todas, é claro, comunicadas aos médicos. Aos 72 anos, minha tia havia se transformado em uma criança traquina, cujos atos resultavam num misto de preocupação e comicidade. Depois, seguiu-se uma fase em que sua libido passou a registrar níveis de uma adolescente num baile de formatura - embora casada com o mesmo homem havia mais de 50 anos, nos finais de tarde ela vestia suas melhores roupas, punha um pouco de perfume e batom e ficava à espera de um namorado imaginário que viria resgatá-la para passeios emocionantes. A cada dia, em sua ilusão, um homem novo, forte e bonito iria bater em sua porta. E ela, segundo suas próprias palavras, alimentava a esperança de fazer sexo com ele.

E então teve início a terrível fase do esquecimento. Primeiro, ela olhava para a própria casa e, assustada e entre lágrimas, perguntava quem vivia ali. Depois, começou a se esquecer dos filhos - um a um (eram cinco) eles foram sendo deletados de sua memória. Uma tarde, ela começou a perguntar quem era aquele homem que estava dormindo no sofá da sala. "É seu marido", disse uma das filhas. "Meu marido? Nunca. Eu nunca que ia me casar com um homem velho e feio daquele jeito. Meu marido é moço e bonito". Naquela tarde, era meu tio que tinha sido apagado. Algum tempo depois ele morreu, sem que ela tivesse sequer se dado conta do fato. Nunca perguntou dele, nem nas semanas em que ele ficou internado e muito menos depois do enterro.

Minha mãe foi a última pessoa da família de quem minha tia se desligou. Ela ainda reconhecia minha mãe, sabia o nome dela, sabia que elas eram vizinhas desde sempre e, num último resquício de preocupação com a irmã mais nova, vivia dizendo: "Você precisa casar. O tempo está passando e você não pode continuar solteira". Era o sinal de que meu pai, eu e meu irmão, seus sobrinhos, também já tínhamos sido enviados para o buraco negro da sua mente. Um domingo à tarde, depois de visitá-la, minha mãe voltou para casa assustada. "Agora acabou tudo", disse minha mãe. "Ela já não sabe mais quem eu sou também". Desde que minha tia havia ficado doente, foi a primeira vez que minha mãe chorou de verdade.

Tudo isso me voltou à mente, de maneira dolorida, enquanto eu assistia ao filme Longe Dela, em que a estupenda Julie Christie vive de forma arrepiante uma mulher vitimada pelo Alzheimer antes de chegar aos 70 anos. É um filme sutil, pequeno, em que todas as emoções parecem obedecer a uma equação que impede arroubos e atitudes heróicas. É, também, um filme muito incômodo quando mostra, em sua aparente trivialidade, como, no caso dos doentes mais evoluídos, nós nos encontramos diante de alguém que já foi embora. É como se estivéssemos velando uma pessoa que ainda está viva - mas não exatamente aqui. A realidade dos doentes e seus familiares, acredito eu, deve ser infinitamente mais dura do que o filme revela - mas os olhos azuis de Julie Christie, aterrorizados diante de um mundo que está desaparecendo diante deles, é uma destas imagens que a gente vai guardar por muito tempo.

segunda-feira, maio 19, 2008

Ingredientes de primeira: mas o bolo não cresceu.

Quando eu estava no cursinho, tive um professor de inglês nascido em Toronto, no Canadá, que parecia não se dar conta de que havia se mudado para um país tropical. Ele era extremamente formal, avesso a brincadeiras, tinha a pele do rosto constantemente avermelhada e nunca foi visto sem seu guarda-pó branco de mangas longas. Era um tipo exótico e desprovido de senso de humor, o que não o impediu de ser, até hoje, o melhor professor de inglês que eu já encontrei. Um dia, ao falar sobre o emprego dos gerúndios, ele saiu com a seguinte teoria. Segundo ele, quando falamos "I like to dance", queremos dizer que gostamos de dançar, de curtir uma balada ocasionalmente, de não ficarmos sentados nas festinhas. Agora, quando se diz "I like dancing", é bom que se seja um Baryshnikov, pois esta forma só é empregada por aqueles que dançam profissionalmente. Como nenhum outro professor repetiu esta lição, não consegui descobrir, até hoje, se ela tem algum fundamento ou não.

Mas isso não importa. Eu emprego aquela teoria até hoje não para mostrar que meu inglês é melhor do que realmente é, mas para fazer uma distinção, nem sempre precisa e acima de tudo nem sempre justa, entre o esforço e o talento, entre o fazer bem-feito e o fazer com classe e encantamento, entre a aprovação pura e simples e a aprovação com louvor. Esta fronteira costuma ser imprecisa e nebulosa, mas quando conseguimos cruzá-la nos damos conta do abismo que se configurou à nossa frente. Sempre que penso nisso, me vem à mente um exemplo clássico: Marília Pêra canta muitíssimo bem, tem uma noção de ritmo impressionante, sabe dividir, consegue encontrar a carga exata de emoção para cada canção e, em seus dias de bom-humor, bate uma bola deliciosa com os músicos. Com todos estes predicados, Marília Pêra poderia ser uma grande cantora, mas não é. Não consigo me imaginar colocando um CD de Marília Pêra no carro e pegar uma estrada numa manhã de sol. O que impede Marília Pêra de ser, por exemplo, uma Gal Costa? Tudo aquilo que foi dito de Marília pode ser aplicado com as mesmas medidas no caso de Gal Costa. Mas Gal é uma cantora, Marília não. Não estamos falando que uma seja melhor que a outra - cada uma se mostra brilhante no ofício que abraçou.

O que eu quero dizer é que existe algo, um ingrediente misterioso e absolutamente ingrato que separa alguém que sabe cantar de um verdadeiro cantor. Podemos dar a este ingrediente o nome de talento, de dom, de vocação ou mesmo de aprovação coletiva - afinal, chamamos Gal Costa de cantora porque existe um consenso social que a vê como tal. Eu prefiro acreditar, no entanto, que este ingrediente ainda não foi batizado: ele faz parte de algo que nos toca, nos comove e nos convence ainda que não saibamos que nome dar a tal coisa.

Escrevo tudo isso a propósito de um livro que terminei de ler. Ele foi escrito por um profissional respeitado em sua área, um homem que, me parece, dedicou sua vida e sua formação acadêmica ao duro exercício de entender e reinterpretar a realidade. Ou, ao menos, de tentar torná-la um pouco mais compreensível para nós, seus leitores. Neste livro ele deixa clara sua familiaridade com as letras: sua narrativa é fluente, seu poder de observação é considerável e o convite para que o leitor mergulhe em sua história chega a ser quase irrecusável... quase! Ainda assim, ao me aproximar das últimas páginas, tive aquela sensação de que não estava diante da obra de um escritor. E isso me incomodou tanto que me senti obrigado, durante um bom tempo, a pensar no que havia de errado com o livro, em que momento o bolo não tinha crescido se os ingredientes eram bons e o chef, tarimbado.

Cheguei a uma conclusão talvez pueril, mas quem sabe todas as conclusões o sejam. O livro não é bom, como poderia ser, porque o autor nunca deixou sua história seguir sozinha. E nós, como leitores, nunca podemos nos apoderar de uma história que já tem dono, nunca podemos fazer parte de um clube que não nos quer como sócios. Um bom autor, pensei eu, se dilui em sua própria história a ponto de fazer com que ela, a história, tenha uma voz que nos soe mais límpida e agradável do que a voz do autor. Se a cada linha o autor faz questão de se fazer presente, se a todo momento ele se utiliza de algum recurso para nos lembrar de que aquele livro tem dono, se aqui e ali ele tenta nos mostrar como sua experiência pessoal pode ser mais rica e invejável do que a história que ele se propôs a nos narrar, então a comunhão não se faz. Não nos tornamos íntimos de seus personagens, não ouvimos seus sussurros, não imaginamos seus rostos e, o que me parece mais grave na literatura, não podemos fazer parte do seu mundo. Assim, entre nós e o livro cria-se uma barreira intransponível porque não é na erudição do autor que estamos interessados, e sim no convite para entrarmos num mundo do qual ele detém apenas as chaves, mas não todas as sinalizações do caminho.

Creio, então, que um bom autor sabe que em algum momento ele tem de soltar a mão de sua própria história, ainda que ela corra o risco de tropeçar e cair três páginas adiante. Não faz mal. Mais do que isso: ele tem de abrir mão da tentação irresistível de acariciar seu próprio ego. Ao contrário do que parece ocorrer no mundo real, acredito que na literatura não é o olho do dono que engorda o rebanho. Se o autor souber se diluir dentro de sua obra, teremos o prazer de nos reconhecer em seu próprio território e de nos tornarmos íntimos dos personagens que ele criou. Caso contrário, ele terá feito um diário. Ainda que muito bem escrito, mas apenas um diário.

domingo, maio 18, 2008

A Coleira de Bóris



Os rapazes da foto são os atores Nicolas Trevijano (à esquerda, na foto acima) e Rafael Losso, que estão no elenco da minha próxima peça, A Coleira de Bóris, que estréia na primeira semana de junho no Espaço dos Satyros Um. A direção é do Marco Antonio Rodrigues e, só por isso, já me sinto previamente realizado com este trabalho.
Ainda não assisti aos ensaios, mas a força e o estranhamento destas imagens me fazem crer que um trabalho muito interessante está sendo gerado. Um dia, talvez eu fale, com muito mais tempo, sobre o impacto que é ver assim, em carne e osso (e também em tatuagens, suor, sangue e correntes), os personagens que um dia só existiam na nossa cabeça. Como o espetáculo ainda não estreou, posso adiantar apenas que A Coleira de Bóris não foi um texto fácil de ser escrito. Talvez porque, com ele, eu tenha tentado (vejam bem, tentado!) trilhar um caminho diferente daquele que percorri em peças como O Encontro das Águas, A Noite do Aquário e mesmo na comédia Andaime. Estes três textos traziam personagens de um cotidiano um pouco mais acessível a todos - e também a mim. Os personagens de A Coleira de Bóris, para começar, não possuem sequer nome. São chamados de prisioneiros A (Nicolas) e B (Rafael). Não sabemos ao certo de onde eles vêm, o que estão fazendo naquele local misterioso em que se encontram e por que um insiste tanto em ir embora, em partir para um outro lugar, um outro mundo, uma outra realidade que ele, desde menino, acredita estarem à sua espera. Diante desta necessidade angustiante que move de um personagem, temos a melancólica aceitação por parte do outro, para quem talvez não exista nada lá fora que justifique qualquer movimento.
Sei que o Marcão, diretor inteligentíssimo e de sensibilidade cirúrgica, enxergou nestes dois homens muito mais do que eu próprio pude localizar no momento em que os construía. Sei que ele foi além do esperado, além do que seria o convencional no trabalho de um diretor. Pressinto que ele vai usar as histórias dos prisioneiros A e B para falar, acima de tudo, daquilo que nos aprisiona e nos cega - e daquilo que nos faz, em determinadas épocas da vida ou mesmo ao longo de toda ela, desistir de tentar ver o que existe do lado de lá do muro. Espero ter dado, em meu texto, condições para que ele consiga fazer isso.
Estou curioso. E espero também contar com vocês durante a temporada.

terça-feira, maio 13, 2008

Bauer, House e Dexter: heróis para todos os gostos

Acabo de voltar da locadora. Fui devolver a caixa com a primeira temporada da série Dexter, com 12 episódios dos quais consegui ver apenas três. Não por falta de tempo, e sim de paciência mesmo. Dexter é um perito da polícia de Miami, um cara que entende tudo de sangue e por isso é chamado a solucionar alguns dos crimes mais espinhosos cometidos naquela cidade que, a julgar pelas paisagens tropicais e o onipresente sotaque espanhol, não passa de uma Havana muito mais limpa, chique e evoluída. Só de olhar o estado em que ficaram os corpos das vítimas, Dexter já é capaz de dizer de onde veio a pancada, quanto de sangue se perdeu, se o infeliz caiu de primeira ou ainda tentou lutar pela vida contra seu algoz e até se o assassino sentiu algum prazer ao dar cabo de um aparente inocente.

Dexter sabe de tudo isso não por ser um perito gabaritadíssimo - ele sabe porque ele próprio é, antes de mais nada, um assassino também. Um assassino higiênico, um matador meticuloso que elimina seus inimigos com a assepsia que se espera encontrar em uma sala de UTI, um justiceiro sempre pronto a deixar a sociedade livre de seus malfeitores sem que a faxineira tenha de lavar as manchas de sangue do carpete no dia seguinte, tudo porque Dexter é limpo na hora de fazer o serviço sujo. E tudo isso, ao contrário do que se poderia esperar, faz de Dexter um personagem raso e previsível, um trintão que se vê dividido entre o presente e um passado um tanto quanto nebuloso, onde ele espera encontrar - e depois de encontrar, talvez compartilhar com o público - , a gênese, a cena inicial, o motivo primeiro que transformou o adolescente loirinho que ele foi no assassino científico que ele é.

Num exercício de psicologia que eu já assumo como raso, antes que alguém o faça em meu lugar, fiquei pensando onde os caminhos de Dexter se cruzam com os de outros dois heróis de séries americanas, de quem a morte também se tornou uma companhia constante - Jack Bauer, de 24 Horas, e o doutor House, da série House. Os três, de alguma maneira, têm, a capa episódio, o poder de decidir entre a vida e a morte de seus companheiros de cena. O caso de Jack Bauer é sempre o mais complexo, já que seus inimigos querem destruir o mundo - ou ao menos aquela parte do mundo compreendida pela mente de Jack Bauer, que é a sociedade americana e, ainda mais especificamente, a cidade de Los Angeles. Jack Bauer não luta por um mundo melhor - ele luta para que o mundo possa continuar exatamente do jeito que é. Ele não é o herói romântico que defende ideais de igualdade, justiça social e respeito humano: ele quer apenas que os prósperos e pacatos cidadãos americanos continuem a ser prósperos e pacatos até o fiml dos tempos. E, se ainda for possível, dando as cartas na grande partida mundial que estamos jogando. É o herói prático, o cão de guarda treinado para morder ou até matar o invasor que pular o muro da casa de seu dono. Se há fome, dor e tristeza do lado de fora desta casa, paciência, Jack Bauer tem de cuidar do jardim e não das vielas escuras que rodeiam sua mansão tão imaginária quanto vulnerável.

Doutor House, ao contrário de Jack Bauer, foi treinado para vencer a morte, ainda que a vida que ele resgata tão brilhantemente no final de cada episódio represente mais uma punição do que uma dádiva para seu. É como se ele dissesse:"Você quer viver? Está bem, viva, então. Mas não me culpe por isso depois." A vida que o doutor House devolve aos seus pacientes até então terminais vem carregada de uma quantidade de ironia e desprezo que consegue ser mais daninha do que qualquer efeito colateral de um remédio poderosíssimo. House salva as pessoas como quem tira um abelha que caiu num copo de coca-cola, com um misto de nojo, antipatia e revolta porque, afinal, ele ainda tinha intenções de beber a tal da coca-cola. Salvar um paciente não redime House de sua dor mais profunda, porque ele sabe, melhor do que ninguém, que ele está restituindo ao paciente algo no qual ele já deixou de acreditar há muito tempo - a graça de viver.

Jack Bauer mata e House salva porque eles estão a serviço de algo muito maior, a serviço de uma crença, de uma filosofia, de um treinamento e de um dogma que são superiores a eles próprios. Como todo personagem trágico, suas ações resultam maiores do que sua capacidade de compreendê-las. Eles fazem o que fazem porque não conseguiriam fazer diferente. E o que eles fazem, do ponto de vista da lógica muito peculiar de cada um, é o certo. Perto deles, Dexter é um menino mimado que mata porque chamou para si uma responsabilidade que não lhe cabe. É o garoto que, na escola, entregaria para a professora os nomes dos coleguinhas que colaram na prova e não fizeram a lição de casa, com a crença infantil de que estaria ajudando a construir uma classe melhor. O que Dexter pratica é a eugenia, e não a justiça. Seu maior pecado é o mesmo que levou para o calabouço outros tantos vilões da história: a incapacidade de conviver com os seus iguais. No caso, com os tão assassinos quanto ele. Tive medo de assistir à primeira temporada completa da série e descobrir, lá na frente, que ele se transformou num assassino porque o pai não lhe deu uma bicicletinha quando fez sete anos. Sei que não deve ter sido este o motivo, mas se fosse, faria todo o sentido.

quinta-feira, maio 08, 2008

Sinto muito, seu tempo acabou.

O canal pago HBO vem divulgando, em anúncios de página inteira, a estréia de sua nova minissérie, Em Terapia, que começa a ser exibida na próxima segunda-feira, dia 12, às 20h30. Serão 43 episódios de pouco mais de meia hora cada um, que devem ocupar as telas da emissora até meados de julho. Em Terapia ousou invadir um dos últimos redutos de privacidade dos tempos modernos - o consultório de um psicanalista. E, após assistir aos dois primeiros capítulos da série, em uma sessão exclusiva para a imprensa, posso afirmar sem exageros: vai ser difícil sair de casa nas noites em que o programa estiver sendo exibido.

Muito superior a bobagens como Big Brother, Simple Life e Trocando de Família, ainda que, a exemplo destes programas, também recorra à mesma cartilha de agradar os curiosos, Em Terapia é um projeto ousado e inteligente, sustentado por bons diálogos, interpretações convincentes e um repertório de casos psicanalíticos aparentemente comuns, como ciúmes, amores não correspondidos, traições e arrependimentos - ou seja, o telespectador não terá dificuldade para imaginar-se sentado no sofá do terapeuta vivido pelo ator Gabriel Byrne.

Não vou me estender mais sobre a série, para não tirar o prazer da novidade. Gostaria de dizer, apenas, que a cada noite teremos um personagem diferente na sessão de análise. E, nas noites de sexta, encerrando a semana, é a vez de o terapeuta contar os seus problemas para o seu analista, no que promete ser uma deliciosa inversão de papéis. Não há tomadas externas, cenas de flashback ou qualquer outro recurso destinado a conferir mais agilidade à narrativa. Em Terapia é teatro filmado. E dos bons.

terça-feira, maio 06, 2008

Iracema, a cantora.

Assim que Iracema se mudou para o bairro, em uma casa amarela de três cômodos e muros baixos de tijolos, a notícia começou a se espalhar: ela queria ser cantora. Numa época em que as nossas mães não passavam de donas de casa, professoras primárias ou balconistas de uma loja de armarinhos, Iracema, dois filhos pequenos e casada com um homem que raramente parava em casa, só queria mesmo saber de cantar. Levou muito tempo até que as mulheres da vizinhança aceitassem com naturalidade a vocação de Iracema. Mas não havia como culpar as vizinhas por aquela renitente hostilidade: era realmente difícil tratar Iracema como uma igual, ainda mais naquelas duas ocasiões em que sua voz, afinada e potente, escapava dos limites daquela casa pequena - ora quando cantava, ora quando era espancada sem dó pelo marido. Com sua magreza impressionante, a pele branca e o pescoço alongado, Iracema era uma mulher de Modigliani. Ainda que na época eu não conhecesse Modigliani.

Os filhos de Iracema se chamavam Rodinei, o mais velho e de quem eu rapidamente me tornei amigo, e Regina, a caçulinha de cabelos negros e encaracolados que gostava mais de brincar sozinha. Eu só precisava pular o mulo para chegar ao quintal de Iracema e brincar com Rodinei. Na maioria das vezes, Iracema dava duas bolachas Maria para cada um de nós - e minha mãe não compreendia por que, em casa, eu sempre reclamava quando só tínhamos bolacha Maria na lata de doce. "Na casa dela você come, que eu sei", minha mãe dizia. E comia mesmo - às vezes, as bolachas eram murchas e velhas. Mas Iracema era uma cantora e acho que eu, já naquela época, talvez acreditasse que os artistas deviam ter lá as suas manias e precisavam ser perdoados por suas bolachas velhas e com a data vencida.

Diziam, no bairro, que Iracema deixava os dois filhos amarrados ao pé da mesa quando saía de casa para cantar. Nunca conseguimos confirmar se esta história era verdadeira. A única certeza que tínhamos era de que, quando o marido de Iracema voltava de suas misteriosas viagens e descobria que ela havia escapado para cantar, o pau comia solto para o lado dela. Iracema apanhava até aparecer com o rosto branco manchado por hematomas no dia seguinte. E, nestas ocasiões, minha mãe não me deixava pular o muro para brincar com os filhos dela.

Um dia, Iracema começou a espalhar pela vizinhança que no sábado seguinte iria cantar na televisão. Era um programa de calouros - talvez o Chacrinha, talvez o Bolinha, já não me lembro mais. Quando chegou o sábado, o bairro todo ficou empuleirado diante das tevês em branco e preto e com chuviscos. Era verdade: Iracema surgiu diante das câmeras e cantou, em um vestido branco até os pés - parece que fora alugado - e com um penteado tão alto que quase não cabia na tela. Não me perguntem o que ela cantou e nem se foi aprovada. O fato é que Iracema nunca havia mentido para nós - ela era mesmo uma cantora.

Pouco tempo depois, Iracema, eterna pioneira, se separou do marido e foi embora de casa. Rodinei e Regina ficaram morando com o pai, que se viu obrigado a diminuir o ritmo das viagens. Os meses foram se passando até que eu e Rodinei caímos na mesma classe no último ano do primário. Uma tarde, pouco antes do final das aulas, a diretora da escola entrou na sala e pediu para que Rodinei a acompanhasse: havia alguém querendo falar com ele. Rodinei, assustado, caminhou em silêncio atrás da diretora. Quando a aula terminou, uns cinco minutos depois, eu também saí e pude ver Rodinei, em um canto do pátio, aconchegado e chorando no colo da mãe. Iracema, que, disseram depois, havia se mudado para o Mato Grosso, tinha voltado para ver o filho. Foi a última vez em que a vi . Alguns meses depois daquela breve aparição, Iracema morreu, longe dos filhos, aos trinta e poucos anos.

Estávamos no fim de 1972 e, quando se falava em cantora naquela época, ninguém pensava em outros nomes que não nos de Maria Bethânia, Gal Costa e Elis Regina. Mas para nós, os moradores daquele bairro que quase já nem existe mais, naquela tarde de sábado que ficou perdida entre os chuviscos da televisão, nenhuma delas três, juntas ou separadas, cantava tão maravilhosamente bem quanto a nossa Iracema.

domingo, maio 04, 2008

Paris-Dacar

Os trajes coloridos do beduíno
riscam o espelho retrovisor
a estrada segue mais reta
do que seria o esperado

Um buraco e eu desvio
um oásis logo ali e eu...
já ficou para trás

A tempestade de areia
sela os meus lábios
e eu acho que é para sempre

Prometeram que ia anoitecer

sábado, maio 03, 2008

Cem coisas pra você esquecer antes de morrer

Não sei se quem começou com este lance de listas foi o escritor inglês Nick Hornby naquele livro Alta Fidelidade. Pode ser que não tenha sido ele a dar a largada, mas não me lembro de outro nome que tenha incutido tanto na cabeça da gente esta mania de enumerar tudo na vida. Admito que no início até que foi engraçado: os cinco melhores filmes, os cinco melhores shows, as dez melhores capas de disco e por aí vai. O problema é que a coisa não parou e estas listas, na maioria das vezes, não produzem outro efeito na gente a não ser uma frustração por termos perdido algo algo muito importante. Vejo, por exemplo, a lista dos dez discos mais importantes da música brasileira: corro até minha estante e percebo que só tenho dois. Daí já vem a pergunta: onde eu estava com a cabeça que não comprei os outros oito? Que porcaria eu devo ter comprado no lugar daquele disco que os Mutantes gravaram no fim dos anos 60 e que agora eu não encontro mais em lugar nenhum? Então eu me conformo diante da constatação de que fui reprovado neste quesito.

Agora inventaram uma coisa muito mais perversa: a quantidade de coisas que a gente precisa conhecer antes de morrer. E eles não disfarçam, não: são tarefas que a gente precisa cumprir não para viver feliz, mas para morrer com a lição de casa feita. Tudo agora vem nestes termos: os cem livros que você precisa ler antes de morrer, os cem discos que você precisa ouvir antes de morrer, os 50 restaurantes em que você precisa jantar antes de morrer - até pouco tempo, o único direito que todas as pessoas tinham era o de morrer em paz. Agora, nem isso mais a gente tem. Eu me imagino moribundo, respirando por aparelhos e tomando soro até pelo fiofó com a expressão desolada porque ainda não conheci a Capadócia e nem me hospedei naquele hotel de Dubar que parece um cenário de Guerra nas Estrelas. Não importa se eu tive uma vida legal e honesta - o importante, agora, é provar que a gente conheceu cem lugares bacanas antes de partir desta pra melhor....

Eu acho, de verdade, que a gente tem uma única obrigação a cumprir antes de morrer: a obrigação de viver. E, se der, a de tentar ser feliz. Todo o resto é acessório: se vier, vai ser lindo, se não vier também, paciência, é porque não era realmente para ter vindo. Eu não quero, quando chegar a minha hora, ter de olhar os carimbos em meus passaportes para ver se morro com as milhagens em dia. Até porque a grande viagem a gente vai fazer sozinho - e não vai poder contar para ninguém se foi legal e muito menos mandar fotos de lá. Então, esqueçamos de todas estas listas. A vida não precisa ser assim tão certinha.

sexta-feira, maio 02, 2008

Marina Lima

É engraçado notar como a vida traz algumas compensações. Fui ver o show de Marina Lima no Sesc Pompéia, no feriado da quinta-feira. Marina é uma das cantoras mais legais que a gente tem - aquela voz meio rouca de quem acabou de acordar feliz, a interpretação precisa e sem grandes floreios dramáticos, o figurino de quem está sempre pronto para uma baladinha, e não para uma noite de gala, um modo contemporâneo de ver a vida, expresso em quase todas as canções que compõe, e uma habilidade rara de combinar o que existe melhor no Rio e em São Paulo: a carioca branquinha que traz o frescor de quem vive de frente para o mar aliado ao jeitão cool e um pouco melancólico que só a noite de São Paulo é capaz de propiciar. Resumindo: uma cantora que nasceu e continua moderna.

Dizem que no fim dos anos 90 Marina perdeu a voz, roubada por uma depressão profunda. Confesso que não acompanhei tanto a trajetória de Marina neste período: minha cabeça ainda vivia ligada em canções como À Francesa, Grávida e Fullgas. Continuei gostando de Marina, mas a uma certa distância. Soube que ela faz vários shows no Baretto, mas nunca tive cacife para frequentar estes botecões de alto luxo. Então, o show do Sesc Pompéia teve o sabor de um esperado reencontro. Talvez Marina, no momento, não seja mesmo a cantora que um dia foi. Um grande amigo diz que hoje ela declama muitíssimo bem - e pode ser que ele esteja certo.

Todos os antigos sucessos de Marina estão no show, que pode ser visto até este domingo, dia quatro. E mais uma coisinha ou outra que ela andou compondo ultimamente. Mas, se Marina realmente perdeu um pouco da voz, ela ganhou uma outra coisa que não tinha, ao menos não na quantidade que exibe agora: carisma. Marina se tornou uma entertainer fascinante: brinca com a platéia como nunca brincou antes, conta histórias, conversa, fala dos pais que nasceram no Piauí, do irmão Antonio Cícero que esconde seu lado romântico atrás da poesia e da filosofia, de sua rotina de compositora, de seu apego aos ritmos nordestinos e de sua relação com a vida. O rock nacional ganhou, com Marina, um mestre de cerimônias sexy e cativante. Ouvir a Marina que fala é tão bom quanto ouvir a Marina que cantava um pouco melhor. Se sua voz diminuiu, sua timidez também. Não sei se o ofício se tornou mais fácil para ela e nem sei se era isso que ela esperava da vida ao dobrar os 50 anos. Não importa: ela continua linda, gostosa, sedutora e, pela reação do auditório que lotou o Sesc Pompéia, completamente venerada pelo seu público.

Neste momento em que todo mundo diz que é preciso se reinventar, Marina mais uma vez foi pioneira. Ela se reinventou com o pouco de voz que lhe restou e conseguiu uma proeza rara em se tratando de uma cantora: talvez não consiga mesmo cantar tão bem como antigamente. Porém, nunca esteve tão próxima de seu público e nem tão calorosa. A falta da voz revelou a dimensão humana da artista. Repito: não sei se ela está mais feliz agora. Mas pra gente nada mudou: Marina continua dando o que a gente sempre quis e esperou dela. O que mais um artista pode desejar?