quarta-feira, maio 21, 2008

Longe Dela

Minha tia, irmã mais velha da minha mãe, sofre do Mal de Alzheimer. Está em uma fase muito adiantada da doença: não reconhece mais ninguém, não anda e nem fala e precisa de duas enfermeiras diárias que se revezam na tarefa de alimentá-la e cuidar de sua higiene pessoal. Passa a maior parte do tempo na cama. Em alguns momentos do dia, uma das enfermeiras a põe sentada em uma cadeira, mas como os riscos de queda são iminentes, todos acham mais seguro deixá-la deitada mesmo. Quando os primeiros sintomas começaram a se manifestar, há cerca de seis anos, havia algo de cômico na situação: o Alzheimer parece ser uma doença que, no início, surge apenas para subverter a rotina na vida dos idosos e criar alguns constrangimentos familiares, grande parte deles de cunho sexual.

Fazem parte deste período três episódios que, embora dotados de certa graça, já antecipavam a tempestade que estava se formando na casa. O primeiro deles é também o mais inocente. Um dia, ao revirar o guarda-roupa, minha tia encontrou uma árvore de natal de plástico. Ela retirou a árvore da embalagem, cavou um buraco no quintal e a plantou ao lado de algumas bananeiras, estas sim de verdade. Durante uma semana, ela foi todos os dias até o quintal para regar sua árvore de plástico. Depois, desenterrou a árvore, enfeitou-a com bolas coloridas e a colocou no centro da sala. O Natal, para minha tia, tinha chegado em agosto daquele ano.

Alguns dias depois, uma vizinha foi visitá-la com o pretexto de entregar o convite de casamento de sua filha. Minha tia recebeu o convite, agradeceu e disse à mulher: "A senhora não vai sair daqui sem tomar um suco de laranja". Podia ser um café, uma água ou mesmo um chá. Mas ela decidiu que seria um suco de laranja. Em seguida, cortou algumas laranjas e tentou espremê-las usando o secador de cabelos. A mulher fugiu assustada da casa dela. Uma semana mais tarde, enquanto a família estava toda reunida na sala, ela pegou o celular de uma das netas e o colocou no microondas. Seguiu-se uma explosão daquelas.

Até este momento - e espero não haver muita crueldade nisso - a família ainda se divertia com suas confusões. Todas, é claro, comunicadas aos médicos. Aos 72 anos, minha tia havia se transformado em uma criança traquina, cujos atos resultavam num misto de preocupação e comicidade. Depois, seguiu-se uma fase em que sua libido passou a registrar níveis de uma adolescente num baile de formatura - embora casada com o mesmo homem havia mais de 50 anos, nos finais de tarde ela vestia suas melhores roupas, punha um pouco de perfume e batom e ficava à espera de um namorado imaginário que viria resgatá-la para passeios emocionantes. A cada dia, em sua ilusão, um homem novo, forte e bonito iria bater em sua porta. E ela, segundo suas próprias palavras, alimentava a esperança de fazer sexo com ele.

E então teve início a terrível fase do esquecimento. Primeiro, ela olhava para a própria casa e, assustada e entre lágrimas, perguntava quem vivia ali. Depois, começou a se esquecer dos filhos - um a um (eram cinco) eles foram sendo deletados de sua memória. Uma tarde, ela começou a perguntar quem era aquele homem que estava dormindo no sofá da sala. "É seu marido", disse uma das filhas. "Meu marido? Nunca. Eu nunca que ia me casar com um homem velho e feio daquele jeito. Meu marido é moço e bonito". Naquela tarde, era meu tio que tinha sido apagado. Algum tempo depois ele morreu, sem que ela tivesse sequer se dado conta do fato. Nunca perguntou dele, nem nas semanas em que ele ficou internado e muito menos depois do enterro.

Minha mãe foi a última pessoa da família de quem minha tia se desligou. Ela ainda reconhecia minha mãe, sabia o nome dela, sabia que elas eram vizinhas desde sempre e, num último resquício de preocupação com a irmã mais nova, vivia dizendo: "Você precisa casar. O tempo está passando e você não pode continuar solteira". Era o sinal de que meu pai, eu e meu irmão, seus sobrinhos, também já tínhamos sido enviados para o buraco negro da sua mente. Um domingo à tarde, depois de visitá-la, minha mãe voltou para casa assustada. "Agora acabou tudo", disse minha mãe. "Ela já não sabe mais quem eu sou também". Desde que minha tia havia ficado doente, foi a primeira vez que minha mãe chorou de verdade.

Tudo isso me voltou à mente, de maneira dolorida, enquanto eu assistia ao filme Longe Dela, em que a estupenda Julie Christie vive de forma arrepiante uma mulher vitimada pelo Alzheimer antes de chegar aos 70 anos. É um filme sutil, pequeno, em que todas as emoções parecem obedecer a uma equação que impede arroubos e atitudes heróicas. É, também, um filme muito incômodo quando mostra, em sua aparente trivialidade, como, no caso dos doentes mais evoluídos, nós nos encontramos diante de alguém que já foi embora. É como se estivéssemos velando uma pessoa que ainda está viva - mas não exatamente aqui. A realidade dos doentes e seus familiares, acredito eu, deve ser infinitamente mais dura do que o filme revela - mas os olhos azuis de Julie Christie, aterrorizados diante de um mundo que está desaparecendo diante deles, é uma destas imagens que a gente vai guardar por muito tempo.

6 comentários:

Anônimo disse...

Serjãooooooooooooo! Belo texto - se não fosse vc que tivesse escrito, eu diria ser ficção! Trites essa realidade do Alzheimer- Tenho amigos com pessoas da família com esse problema!! :o( - Abraços

Só no blog disse...

Pois é, querido. Não é ficção mesmo, pode crer. Saudades e obrigado pela visitinha por aqui.
Roveri

Alberico da Mota Silveira Filho disse...

Vc sempre me emociona com seus escritos de ficção ou de realidade .... Adorei o filme também e até escrevi algo a respeito ,só que ainda não tive tempo de posta´-lo ! Abraço

Só no blog disse...

Alberico, meu caro. Muito obrigado pelo carinho e pela atenção. Este tema é meio espinhoso mesmo, né? Abração

Unknown disse...

Sergio, vc escreveu um grande breve relato desta doença. Minha mãe está com Alzheimer e a evolução é bem semelhante da descrição das fases de sua tia. É bem triste e sofrido, principalmente para os cuidadores e pessoas muito próximas. Acredito que com a liberação e o desenvolvimento das pesquisas com as células-tronco poderemos em breve ter boas noticias também para este mal.
Esta semana usei o Guia Quatro Rodas e lembrei de vc! O Guia já foi bem melhor. Grande abraço.

Só no blog disse...

Fransber, queridão. Fico feliz de encontrar você por aqui. E um pouco chateado com a notícia que você me deu. Enfim, a gente vive sujeito a estas coisas, não é? Também tenho esperanças de que surjam progressos nesta área, sim. Como você disse, é uma doença muito triste. Abração