quarta-feira, maio 30, 2007

Banco dos réus para quem precisa, não para Ricardo.

Os rumos da justiça brasileira (ou a falta deles) parecem estar um pouco além da compreensão do cidadão comum. Tavez tenha causado surpresa a muita gente, a mim realmente causou, a decisão do promotor Ricardo Manuel Castro, que denunciou por homicídio culposo o biólogo Ricardo César Garcia, o jovem pai que numa manhã do último mês de abril esqueceu seu filho Gustavo, de pouco mais de um ano, trancado no interior de seu carro, na cidade de Guarulhos. Segundo notícias publicadas na época, ao se dar conta do que havia feito, o biólogo correu enlouquecido em direção ao veículo, gritando pelo nome do filho. Quando chegou, era tarde demais. O garotinho, já desfalecido, morreria a caminho do hospital. Agora, com a decisão do promotor, o biólogo irá a júri popular - o que significa dizer que terá de reviver várias vezes, e em público, o horror daquela manhã. Se é que ele tenha sido capaz de se esquecer dela, por um segundo sequer.

Não tenho filhos, o que não me impediu de enxergar a dimensão exata daquela tragédia familiar. Todas as notícias publicadas à época davam conta de que Ricardo era um pai mais que zeloso e extremamente responsável. O que teria, então, acontecido com ele naquela manhã? Uma quebra inesperada na sua rotina de trabalho? Problemas financeiros? Preocupações com o emprego? Uma briga com a mulher? Contas atrasadas? Tudo isso junto ou nada disso? Acredito que, desde aquela manhã, Ricardo esteja se fazendo estas e tantas outras perguntas milhares de vezes ao dia. Mais: continuará se autoflagelando e lutando pelo perdão do filho ausente até o último dos seus suspiros. Naquele dia achei, e continuo achando, que não pode haver castigo maior para um ser humano do que sentir-se responsável pela morte de alguém. Quando este alguém, por uma dessas armadilhas do destino, trata-se do próprio filho, o volume da culpa deve transformar a mais terrível das tragédias gregas em adocicada fábula infantil.

Quando eu tinha 15 anos e vivia em Jundiaí, um vizinho, chamado Milton, atropelou e matou o filho caçula quando saía com seu caminhão de marcha-à-ré da garagem de sua casa. O garoto, dois ou três anos não me lembro, havia se metido entre as rodas e não foi visto pelo pai ou pela mãe. Depois do acidente, Milton vendeu o caminhão, que era seu instrumento de trabalho, e passou os nove meses seguintes sentado calado, na mesa do bar ao lado da casa, com o olhar perdido em algum lugar. No fim do nono mês, morreu. Não houve terapia, medicamento ou reza brava que o resgatassem da depressão abissal na qual ele mergulhara.

Desejo, de todo o coração e com a mais profunda das minhas poucas orações, que o destino reserve um outro final para o pai Ricardo César Garcia. Que em algum momento dos seus dias ele encontre paz e, principalmente, algum tipo de resposta que, ao menos para ele, esclareça o que ocorreu naquela manhã. Que ele sinceramente se perdoe e que reserve muito do seu amor para os futuros filhos que a vida ainda há de lhe dar.

E que os promotores brasileiros prestem mais atenção nos corruptos, nos senadores que têm suas contas pagas por empreiteiros, nos devassos, nos criminosos do colarinho branco, nos que manipulam a fé do povo e constróem impérios a partir de dízimos pagos por miseráveis, nos que roubam merenda escolar e com isso causam, propositadamente, a morte não de uma, mas de inúmeras crianças País afora, nos juros dos bancos, nas escolas sucateadas, na polícia violenta, nos traficantes, nas balas perdidas, nos envolvidos em todas as operações de nome bonito deflagradas pela Polícia Federal, nos mensaleiros e nos nossos políticos. E que deixem o biólogo Ricardo César Garcia em paz. Não há justiça dos homens mais implacável do que aquela que ele vem enfrentando desde o momento em que o pequeno Gustavo morreu em seus braços.

segunda-feira, maio 28, 2007

Mudamos de endereço

Depois de uma temporada bem bacana de três meses no Teatro Vivo, a peça Andaime, de minha autoria, reestréia na próxima sexta, dia primeiro, no Teatro Imprensa, na Rua Jaceguai, 400. É a história de dois limpadores de janela, Claudionor (Cássio Scapin) e José Mário (Cláudio Fontana), que passam os dias nas alturas, com seus rodinhos, seus baldes de água e sua filosofia muito peculiar. A direção é do Elias Andreato e o cenário e figurino, de Gabriel Villela. Os dois atores dão um show, garanto. Tenho alguns convites para a primeira semana da nova temporada. Quem quiser ir, basta me consultar pelo e-mail. Beijão a todos.

Nem tanto lá, nem tanto cá

Fim de semana teatral, como têm sido quase todos os outros, para ser sincero. Mas neste houve algo de especial, que talvez mereça registro: a distância estética entre os espetáculos vistos. No sábado, O Manifesto, no Teatro Renaissance; no domingo, O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo, no Sesc Avenida Paulista, duas peças separadas por quilômetros de ousadias, propostas, encenações e perfomance do elenco.

O Manifesto é um brinde ao convencionalismo. Tudo funciona de uma maneira tão milimetricamente já testada que é difícil conseguir algum arrebatamento na história de um casal que passa quase duas horas discutindo suas desavenças políticas e suas picuinhas amorosas tendo como pano de fundo a invasão americana no Iraque e uma doença terminal que afeta a personagem Margareth, vivida com a costumeira elegância e competência por Eva Wilma. A atriz encontra em Othon Bastos um parceiro à altura, mas a peça não vai muito além disso: é uma bela partida de tênis entre dois grandes atores que não deixam a bolinha tocar o solo. O texto, escrito pelo inglês Brian Clark há mais de 20 anos, foi atualizado por ele mesmo especialmente para esta montagem. No original, a peça fazia referência à Guerra do Vietnã. No meio do espetáculo, me lembrei de uma pergunta feita há algumas semanas pelo dramaturgo Mário Viana: será que todo espetáculo de dois atores está eternamente condenado ao velho esquema pergunta-resposta, indagou ele. Não sei se está, mas O Manifesto leva esta equação às alturas. Do cenário à trilha sonora, tudo é de um deja-vu indisfarçável. Flávio Marinho, que não ousou em nenhum segundo do espetáculo, atinge o auge do previsível quando, a poucos minutos do fim, presenteia a platéia com uma chuva de folhas secas que avisam que está chegando a hora de ir para casa.

O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo segue uma trilha completamente oposta. Ali tudo tem gosto de surpresa e frescor, do cenário deslumbrante à narrativa fragmentada, da interpretação naturalista do elenco à projeção de vídeos que ilustram as cenas. A peça é dirigida pelo carioca Jefferson de Miranda, que há três anos mostrou o estupendo Deve Haver Algum Sentido em Mim que Basta, no Sesc Belenzinho, considerado pela APCA, merecidamente, como o melhor espetáculo do ano. O Perfeito Cozinheiro retoma a fórmula vitoriosa de Deve Haver, mas não chega tão longe quanto a matriz. Esteticamente é um espetáculo deslumbrante, mas a dramaturgia de Nina Crintzs não fornece um alicerce tão seguro para as ousadias da encenação. A história de amor de final infeliz entre uma normalista e Oswald de Andrade, que tinha como cenário uma garçonnière mantida pelo escritor no centro de São Paulo, nunca chega realmente a decolar e a ambientação da trama em três épocas diferentes precisaria de alguma costura um pouco mais consistente. A passagem ambientada no futuro, por exemplo, soa deslocada do resto do espetáculo e parece ter sido criada apenas para nos mostrar que, daqui a algumas décadas, as pessoas vão se vestir muito mal.

Puxadinhos e chiqueirinhos

Leio na Folha de S. Paulo que a passeata gay realizada neste fim de semana em Moscou terminou em agressões, prisões e com alguns participantes - eles eram pouquíssimos - feridos. Enquanto passavam pelo centro da cidade, os manifestantes ouviam dos populares que Moscou não era Sodoma e que a pederastia deveria ser banida. Segundo o jornal, o homossexualismo deixou de ser crime na Rússia há alguns anos, mas a tolerância do país é baixíssima.

Meia hora depois, navegando pelo site do Terra, vejo que na Austrália o dono de um bar gay conseguiu na justiça o direito de impedir a entrada de heterossexuais em seu estabelecimento. Segundo ele, os homens gays estariam se sentindo constrangidos ao ser observados pela clientela hétero - algo como animais num zoológico, para repetir aqui a metáfora que eles mesmos usaram.

Depois, voltando ao jornal impresso (que mania esta de procurar tanta notícia logo numa segunda-feira), vejo que a administração Bush não vai assinar uma proposta redigida pelo países do G-8 para a redução da emissão de gases nos próximos anos, o que seria uma maneira de reduzir o aquecimento global pelas próximas décadas. Bush, como tem feito nos últimos tempos, reafirma que o crescimento econômico do seu país e a manutenção do seu PIB são muito mais importantes que a preservação da humanidade como um todo. O maior genocida ambiental de nossa era parece não perceber algo simples demais: o que os Estados Unidos vão fazer com seu pujante parque industrial e seus bilhões de dólares, aliás, cada vez menos valorizados, em um planeta que em pouco tempo talvez deixe de existir?

Moral da história: parece que estamos longe mesmo de um mundo que dê espaço para a convivência e a tolerância. Gays não entram aqui, héteros não entram ali e, enquanto isso, a temperatura da Terra vai subindo, subindo, subindo....e o mundo inteiro continua a olhar apenas para seu umbiguinho cada vez mais sujo.

sábado, maio 26, 2007

Um gatinho para Phedra


Algumas semanas atrás, o Alberto Guzik escreveu em seu blog um imenso, carinhoso e revelador comentário sobre Phedra de Córdoba, a diva que Cuba exportou para o Brasil pouco antes da revolução de Fidel Castro e que hoje é uma das estrelas do Satyros, aquele pequenino espaço de céu na Praça Roosevelt em que as estrelas não precisam ser muito convencionais. Eram impressões precisas de quem conhecia Phedra de perto, de quem trabalhava e viajava com ela, de quem entendia suas manias e excentricidades, de quem sabia, pelo convívio, dos detalhes que a deixavam realizada ou destruída. Guzik aproximou sua lupa de Phedra de uma maneira tão estranhamente dolorida a ponto de revelar seus trajes puídos, seus velhos e reformados vestidos presos com alfinete, sua antiga majestade, enfim, sustentada por alinhavos e colchetes. Fiquei impressionado com o que li. Era uma grande homenagem a Phedra, mas sem concessões, destas que devem provocar no homenageado um misto de contentamento e nudez.

De todas as histórias que ouvi a respeito de Phedra, e não foram poucas, existe uma da qual não consigo esquecer, e que me volta à mente vez ou outra, talvez por ter ouvido diretamente dela. Naqueles dias em que nossa carteira torna-se folgada demais para guardar o pouco dinheiro que temos, Phedra me disse, ali na frente do Satyros, que estava com apenas 20 reais no bolso. O que, no caso dela, pode ser entendido como 20 reais na vida. Era tudo de que dispunha para passar vários dias. Antes que eu falasse qualquer coisa, ela continuou. "Mas destes 20 reais eu tenho de tirar 18 para a ração do meu gatinho. Vão me sobrar apenas dois reais. Mas eu sei me virar, o gatinho não". Pensei em quantas pessoas no mundo seriam capaz de colocar em risco o próprio estômago para que um bichinho de estimação não passasse fome. Naquele dia sim, para mim, Phedra revelou seu lado de rainha.

Ontem, num início de noite gélido na cidade, Phedra me contou, exatamente no mesmo lugar em que, meses atrás, falara da história dos 20 reais, que seu gatinha havia morrido minutos antes. Ela levou o bichinho para tomar vacina e, no consultório, amparado por ela e pela veterinária, o gatinho teve uma parada respiratória e morreu. A cena, segundo ela, durou alguns segundos. De repente as patinhas, antes retesadas, decerto temerosas com a picada iminente, relaxaram totalmente e o resto do corpo fez o mesmo. Seu amiguinho acabava de partir. A veterinária ficou perplexa, desmanchando-se em desculpas. Elegante à sua maneira, Phedra aceitou todas as explicações científicas sobre a morte súbita do animal e voltou para o Satyros. E ali, contava esta história para um ou outro disposto a ouvi-la. Eu fui um deles. "Nas noites de frio", disse Phedra, "ele dormia no meu pescoço".

Saí de lá e fui me divertir com amigos, tomar vinho, jantar, falar de histórias muito mais divertidas, saber dos projetos de cada um, um cenário, enfim, que combinava melhor com as noites de sexta-feira. Quando voltei para casa, quase cinco da manhã, percebi o quanto fazia frio. E, na hora de me deitar, me lembrei de que na casa de Phedra talvez o frio estivesse ainda um pouquinho mais forte, sem o gatinho para aquecer seu pescoço. Segundo a meteorologia, foi a noite mais fria do ano. E a mais triste para se despedir de um bichinho tão amado.

quarta-feira, maio 23, 2007

Naquele lugar que começa com c

O Youtube representa hoje a menor distância entre o anonimato e a mais efêmera das celebridades. De uma hora para outra, a imagem de um crocodilo decepando o braço de seu incauto tratador ou a gravação de um limítrofe que não consegue pronunciar as palavras árvores e nozes na mesma frase, viram assunto de todas as rodas. Às vezes, raras diga-se, o objeto de culto tem lá os seus valores, como no caso do filme Tapa na Pantera, em que uma hilária e irônica Maria Alice Vergueiro discorre sobre os efeitos do consumo da maconha. O vídeo mostrou a quem ainda não conhecia - e estes eram numerosos - o talento e o deboche de Maria Alice, uma das grandes atrizes brasileiras, que, resultado ou não do sucesso no Youtube, está voltando aos palcos.

Porém, o mais novo fenômeno desta onda é de uma chatice só. O clipe da atriz Cris Nicolotti cantando Vá Tomar no Cu, que já recebi por e-mail de umas 30 fontes diferentes, beira o insuportável. Tudo bem que a musiquinha grude na cabeça da gente - mas a proposta é tola e se desgasta antes do término da primeira exibição. Vi o vídeo uma vez já bocejando e nunca mais voltei a ele. Sei que a música está sendo usada para animar uma série de outras situações no Youtube e que serve de trilha sonora para espantar de George Bush a Galvão Bueno. E sei, também, que às vezes sentimos vontade de mandar muita gente tomar no cu. Mas não naquele ritmo meloso e grudento da canção. Se é para mandar alguém tomar no cu, que me venha Marilyn Manson e não Cris Nicolotti. Bom, em todo caso, a moça, que andava sumida da tevê, também está voltando em um programa de televendas e parece que vai encontrar um lugarzinho no teatro... O mundo é grande e nele cabem de panteras a xingamentos. Ainda bem, ou não. Sei lá...

Um passado de presente

A exposição sobre Darwin, no Masp, até o momento parece não ter despertado no público o mesmo interesse de outras mostras recentes que passaram pela cidade, ou que ainda estão por aqui, como a das gravuras de Goya, a das imagens do corpo humano, na Oca, ou mesmo o sertão de Guimarães Rosa mapeado até o mês passado no Museu da Língua Portuguesa. Talvez porque os objetos expostos no Masp não despertem mesmo um interesse tão imediato: grande parte do acervo da mostra é composta por manuscritos, reproduções de pouco apelo visual e alguns animais vivos que surpreendem mais pelo aparente desconforto de suas pequenas jaulas ou aquários.

O impacto da mostra de Darwin não é visual, já que, ao contrário de Rodin, Michelangelo ou Renoir, ele não passou a vida empenhado em criar formas sublimes. Seu olhar sempre se voltou para os besouros, os ratos, caramujos e iguanas, criaturas sobre cuja aparência a estética nunca se debruçou. Assim, os sintomas de uma visita à mostra de Darwin surgem com efeito retardado: quando se abandona o Masp, às vezes mais tarde, às vezes no dia seguinte, é que se percebe que o que vimos ali foi o nosso atestado de antecedentes. Darwin nos presenteia com o nosso próprio passado e, por tabela, nos obriga a rever todos os nossos valores sobre ética, amor próprio, senso de responsabilidade e luta pela sobrevivência.

Antes de Darwin, ou melhor, antes de sua viagem de cinco anos ao redor do planeta a bordo do pequeno Beagle, a história do nosso surgimento repousava confortável nas páginas da Bíblia: a Terra tinha apenas seis mil anos e o homem havia sido criado à imagem e semelhança de Deus para reinar sobre todas as outras espécies. Ao publicar o seu livro mais impactante, A Origem das Espécies, Darwin comprovou que nós, humanos, éramos parentes de todas as demais espécies e que, como elas, havíamos evoluído a partir de um ancestral comum. Ao explicar a nossa origem, Darwin retirou o sopro divino de nossas vidas e, talvez sem querer, revelou que estávamos irremediavelmente sozinhos neste planeta, a menos que reconhecêssemos nos gorilas, chimpanzés e orangotangos os nossos parentes mais próximos.

A seção mais comovente da exposição é aquela dedicada à vida familiar de Darwin. Em particular, a passagem que registra a morte de sua filha Annie, provavelmente vítima de tuberculose, aos 10 anos de idade. A morte da menina talvez tenha sido o mais duro dos golpes que o naturalista e sua mulher, Emma, tiveram na vida. Mas, revelam os biógrafos, a dor de Darwin pode ter sido ainda maior que a da sua esposa, já que ela, mulher religiosa, acreditava que a menina descansava no céu. Ele, o grande Darwin, nem com isso podia contar: o homem que descobrira que nós e os macacos descendíamos da mesma linhagem não podia mais se dar ao luxo de acreditar no céu. Sua filha havia simplesmente desaparecido para sempre, como desaparecem os representantes de qualquer outra espécie. E este foi, seguramente, o mais amargo e irônico dos resultados a que sua vida de pesquisa poderia chegar.

segunda-feira, maio 21, 2007

Uma dose de verdade, por favor. Mas sem chorinho

É incrível a capacidade que a ciência tem de estipular a dose exata para tudo. Sabemos até que ponto o consumo de álcool é uma atividade prazerosa e a partir de que dose ele já se transformou em vício; sabemos quantas porções de carboidratos podemos consumir diariamente sem que a balança nos recrimine no dia seguinte; sabemos (ainda que não damos bola para isso) se o cigarrinho de maconha é um prazer compartilhado com os amigos ou se já estamos atravessando alguma fronteira arriscada, quanto de doce podemos comer (se é que podemos), quantos minutos podemos passar na esteira sem lesionar nossas articulações, quantos poucos minutos podemos ficar sob o sol com ou sem protetor 30, quantos copos de água temos de ingerir por dia, quantas vezes por mês podemos tomar comprimidos para dormir sem entrarmos na mais profunda das dependências e quantas horas a mais podemos ficar naquela festa tão boa sem que o trabalho do dia seguinte esteja irremediavelmente comprometido. Com o tempo, aprendemos a ver o nosso corpo como uma grande máquina, a quem podemos alimentar com doses exatas do que bem entendermos, ou extrapolar as medidas e sofrer com as prováveis consequências. Só não sabemos o quanto de verdade somos capazes de tolerar.

Para isso, a ciência ainda não inventou nenhum delicado mecanismo de medição. Nem os amigos, nem a família, nem as relações que vamos criando ao longo da vida têm a receita - com este ingrediente, a verdade, ainda nos comportamos como velhos alquimistas ou cientistas pioneiros sempre expostos a doses mortais daquilo que sai das nossas bocas - ou entra pelos nossos ouvidos. A verdade continua sendo um elemento químico de propriedades desconhecidas: sabemos mais ou menos como ela é, em que situações ela se apresenta ou não, que cara ela tem, que efeitos produz (e aí reside o grande risco, já que alguns deles, a exemplo de vírus traiçoeiros, podem manter-se incubados ao longo dos anos, aprisionando o nosso peito e apertando a nossa garganta, mas sem nos matar de imediato). Clamamos pela verdade, mas quando ela chega, às vezes preferimos bater em retirada. Ainda mais se ela chega disposta a nos apontar seu dedo esquálido.

Até que ponto podemos dirigir aos nossos amigos palavras e pensamentos que traduzam aquilo que, sob o nosso ponto de vista, mais se aproxima da verdade? Até que ponto podemos dizer que não, definitivamente eles não ficaram bem com aquela roupa, com aquele corte de cabelo, que a passagem do tempo não está sendo generosa com eles, que o último trabalho ao qual estão se dedicando não é tão bacana como os anteriores, que o namorado que arranjaram é um puta chato e que a gente só o tolera por educação e...por...justamente não termos coragem de dizer a verdade. E o mais triste é saber que eles podem agir exatamente assim em relação a nós. É saber que se eles disserem qualquer uma dessas coisas ao nosso respeito, no fundo vamos ficar magoados e uma vozinha lá no fundo vai dizer que eles não foram nossos amigos, que não souberam respeitar o nosso momento e nem o tanto de anos que compartilhamos juntos.

Só sei que a verdade dá um trabalho imenso. E que uma mentirinha, ainda mais quando sabemos tratar-se de uma mentirinha, nos engana tão bem quanto um doce diet. E assim vamos seguindo com a nossa vida, cutucando com uma verdade aqui, soprando com uma mentirinha ali, fazendo sangrar com as críticas, alisando com os elogios. Não é uma receita de hipocrisia - talvez seja apenas um método ancestral que encontramos para viver na companhia dos outros até que a ciência nos salve com um aparelhinho que mostre o quanto de verdade cada um de nós tem capacidade de dar e receber, sem que nos tornemos seres radioativos a vagar por um mundo solitário. E queira Deus que este aparelhinho custe bem baratinho.

domingo, maio 20, 2007

O skatista solitário


Se não é uma das mais belas da cidade, a praça Horário Sabino seguramente é, ao menos, uma das mais ecléticas. Situada no trecho mais classudo da Rua João Moura, quando o bairro do Sumaré começa a se transformar lentamente na Vila Madalena, a praça parece se adaptar a uma série infinita de perfis. Mamães com filhos de colo dividem o espaço com cachorros, alunos de auto-escola, adestradores de cães, praticantes de ioga, estudantes da Escola Estadual Antonio Alves Cruz, equilibristas em pernas de pau e grupos de jovens maconheiros que emprestam à praça aquele irresistível aroma que a gente conhece de longe - estes últimos a polícia não deixa em paz, não tem jeito. Eu deveria frequentar muito mais aquela praça, já que moro a apenas três quadras dali. Mas alguém pode me apontar um morador de prédio com piscina que realmente desça de vez em quando para dar umas braçadas? A gente parece nunca saber usar o que está à mão.

A praça sempre me atraiu pela beleza e por esta multiplicidade de usos. Outro dia, os moradores se reuniram e mandaram celebrar uma missa em louvor sabe de quem? Da saúde dos cães e gatos que frequentam o local. Isso mesmo: era uma missa em ação de graças pela saúde e bem-estar dos animais. Foi um dos mais belos e tocantes exemplos de cidadania que eu vi no bairro. E, antes que alguém já surja com críticas engajadas, eles também mandam celebrar missas em louvor dos humanos, sim. E estas são bem mais numerosas.

Mas o que mais chama a atenção na praça, durante os fins de semana, é a presença dos skatistas. Eles descobriram que a ladeira que circunda a praça, a qual passaram a chamar de Ladeira do Alves, era perfeita para a prática do esporte, com sua inclinação suave, seu asfalto lisinho e o pouco trânsito de automóveis. Aos sábados e domingos, eles começam a chegar por volta do meio-dia e, às quatro da tarde, o movimento está no pico. A Ladeira do Alves começa na escola e desce sinuosa por uns 150 metros até terminar na João Moura. Ali, depois de manobras e contorcionismos invejáveis, os skatistas pedem carona aos motoristas para chegar ao topo de novo. Perdi a conta de quantas vezes levei grupos de skatistas agarrados à janela e ao pára-choque do carro. Com medo de algum acidente, sempre subi em primeira marcha, lento demais. Eles não gostam tanto. Batem no vidro e dizem: pode acelerar, tio. Ou mano, sei lá, algo do tipo. Acho que de tio não me chamaram, não. Ao menos, espero que não.

Até que, na semana passada, ao passar pela praça, vi um grande grupo de funcionários da prefeitura, divididos em três frentes, destruindo o asfalto da Ladeira do Alves - aquele pequeno paraíso tinha ficado com cara de Bagdá. Parei o carro e perguntei o que eles estavam fazendo. "Vamos colocar paralelepípedos para os skatistas não descerem tão depressa". Não acreditei no que ouvi. Desde quando skatista gosta de paralelepípedo? Desde quando qualquer praticante de esporte radical precisa que o poder público coloque freios em suas atividades? Segurança do esportista é uma coisa, mas acabar com o prazer é outra. Na hora vi que a prefeitura estava pondo um fim ao lazer gratuito de uma galera que parecia vir da cidade inteira para se divertir ali. E não deu outra: hoje, um belíssimo e ensolarado domingo de outono, resolvo passear na praça, exatamente às 16h, e a visão foi de uma tristeza só: toda a ladeira esburacada e um único skatista, somente um mesmo, sentado ao lado do skate, de boné e cara de abandono. Provavelmente ele nem se arriscaria a descer, provavelmente não acreditava no que estava vendo: seus fins de semana destruídos a golpes de picareta. É triste ver que a mesma prefeitura que promoveu a virada cultural e levou 3 milhões de pessoas às ruas, agora mande um grupo de funcionários acabar com o único sobe e desce aventureiro que aqueles jovens encontravam na hoje bem menos bela praça Horácio Sabino.

terça-feira, maio 15, 2007

Papa don't preach*

À exceção de alguns católicos mais fervorosos, acredito que a recente viagem do papa Bento 16 a São Paulo não interesse a mais ninguém. Por algum motivo qualquer, passei a tarde desta terça-feira pensando no papa. Não exatamente em algo para escrever aqui neste espaço, mas no papa mesmo, ou, quem sabe, na herança que sua viagem nos deixou. Depois de ler um certeiro comentário sobre o papa feito por Alberto Guzik em seu blog, vi que praticamente tudo havia sido dito ali: em tom jornalístico ele falou sobre os números da viagem, interpretou a cobertura das televisões, encerrou o assunto praticamente, deixando muito pouco a ser dito. Ainda assim, não parei de pensar em Bento 16, que a esta hora deve estar repousando tranquilo no Vaticano, talvez com uma reconfortante sensação de missão cumprida. Não deve ser fácil, para alguém de 80 anos, atravessar um oceano para reafirmar um tipo de crença que por aqui parece ter enfrentado uma certa resistência.

Durante o ano que passei no Exército, fui ensinado a respeitar não a pessoa dos tenentes e capitães, mas sim as insígnias que enfeitavam seus braços, as estrelas que brilhavam em seus ombros. Ainda que vocês não gostem de nós, diziam eles diante dos pelotões, vocês nos devem respeito, pois somos superiores. Eu nunca mais havia pensado neste tipo forçado de admiração e respeito até a chegada do papa. A mim, é esta a imagem que ele transmite: a de um líder religioso a quem devemos respeitar, mas não conseguimos verdadeiramente amar. Sua visita nos fez lembrar muito mais das privações da vida do que de seus eventuais prazeres - como se fosse um síndico a nos alertar, dentro de um elevador do qual não podemos fugir, que nosso condomínio está atrasado, que não comparecemos à última reunião e que seremos multados por ter ouvido música alta depois das dez da noite. Não me restou na memória um único gesto mais tocante do papa durante seus poucos dias na cidade, uma palavra mais calorosa que não soasse ensaiada, uma expressão um pouco menos dura em seu rosto já cansado, uma gafe que o humanizasse para além de suas vestes e seu anel. Talvez um católico mais competente que eu tenha enxergado tudo isso até em demasia, mas meus olhos poucos treinados para a autoridade religiosa viram muito pouco.

Confesso que eu nunca achei assim tão difícil a missão dos religiosos. Tudo que eles fazem, dizem e ensinam, na minha caolha opinião de leigo, poderia se resumir a um único e essencial mandamento: ame ao próximo como a si mesmo. E seria este seu único ensinamento, sua única pregação, a única lição que eles passariam a vida a repetir, até que nós, pecadores que somos, finalmente a aprendêssemos e a praticássemos. E tudo o mais seria abolido: os demais mandamentos, as ladainhas, os pecados...tudo seria queimado numa fogueira orgiástica que nada teria a ver com a fogueira na qual Roberto Carlos pretende jogar os exemplares do livro que conta sua vida e que ele por simples capricho abominou. O mundo só precisaria saber desta única lição, a de amar o próximo e não fazer com ele o que não gostaríamos de ver feito a nós mesmos. Todo o resto seria consequência deste amor. O uso da camisinha, a união entre pessoas do mesmo sexo, o sacerdócio feminino, o nosso diálogo direto com Deus sem a ajuda de atravessadores, o respeito às raças, a proteção às crianças, aos animais e ao planeta...do alto da sua janela, lá no Vaticano, o papa veria um mundo novo e, quem sabe, ficasse mais feliz em saber que ele, assim como cada um de nós, também estaria livre do fogo do inferno com o qual ele vive insistindo em nos chamuscar.

* Em homenagem ao amigo Gustavo Fioratti, que me deu o título de presente

quinta-feira, maio 10, 2007

A finitude da vida

Entrevistei Eva Wilma por quase meia hora sobre a estréia da peça O Manifesto, que entra em cartaz nesta sexta-feira no Teatro Renaissance. Encontrei um atriz animada, falante, disposta - muito diferente da mesma Eva Wilma com quem falei alguns meses após a morte de seu companheiro Carlos Zara. Na época, ainda bastante abalada com a perda, ela sentia a necessidade de falar muito mais dele do que do próprio trabalho que estava prestes a estrear, o monólogo Primeira Pessoa, espetáculo confessional, repleto de recordações e saudades. Agora, em O Manifesto, ela vive a esposa de um general interpretado por Othon Bastos, que um dia decide assinar uma petição contra a Guerra do Iraque. Esta assinatura representa, de algum modo, o grito de liberdade de uma mulher que se manteve ligada ao mesmo marido por quase 50 anos. Quando o general resolve questioná-la sobre o manifesto contra a guerra, surge em cena uma série de revelações sufocadas pelo cotidiano. Entre elas, a notícia de que a mulher está seriamente doente. É por isso que O Manifesto, na opinião de Eva Wilma, é uma peça que trata, acima de tudo, da finitude da vida. Fiquei pensando muito neste termo, a finitude da vida...

Há algumas semanas, meus pais resolveram ampliar um muro que existe no fundo do quintal da casa deles, em Jundiaí. Para isso, foi preciso cortar uma árvore que dificultava a reforma, uma pitangueira, se não me engano. Assim que terminou de cortar a árvore, o pedreiro chamou meu pai para mostrar que havia, num dos galhos mais altos, um ninho de passarinho, felizmente sem ovo algum. No final daquela mesma tarde, um casal de rolinhas apareceu. O ninho era deles. Quando não viram mais a árvore, os bichinhos ficaram perdidos, voando baixo, em busca da casa que havia sido destruída. E, então, pousaram no chão mesmo. Meu pai tem uma gata, chamada Mafalda, exímia caçadora de borboletas, moscas, lagartixas e passarinhos, ainda que todos na família insistam em, diariamente, reprimir seus instintos naturais, dando quantidades extras de ração para que ela não saia por aí caçando feito uma desesperada. Mas é inútil. Ao ver as rolinhas no chão, Mafalda deu um golpe certeiro, ali, na frente de todo mundo, e abocanhou uma delas. A outra voou assustada. Naquela noite, a rolinha sobrevivente não tinha mais casa nem parceiro. Até o dia anterior, provavelmente ela deve ter sido um pássaro mais feliz. Tinha onde dormir, tinha um parceiro e o ninho estava ali, à espera dos ovos, como prova da continuidade da vida. De uma hora para outra, ela perdeu tudo. Aquela triste rolinha passou a ser, para mim, o exemplo mais acabado de que a finitude da vida não era um privilégio de nós, humanos. Claro que não tive coragem de contar esta história para a Eva Wilma. Mas ela não me saía da cabeça enquanto a atriz, com elegância e voz trabalhada, me falava calmamente sobre o que era a finitude da vida. Será que Eva Wilma ficaria brava se eu dissesse que sua personagem na peça O Manifesto tinha muito a ver com aquela rolinha solitária lá de Jundiaí? Acho que não, acho que ela até entenderia...

terça-feira, maio 08, 2007

Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu e depois eu também...

Estou em crise existencial com os blogs - e este é o principal motivo de eu estar escrevendo tão pouco, cada vez menos, para ser sincero. Nunca gostei de textos escritos em primeira pessoa. E os blogs são um terreno absolutamente fértil para este tipo de narrativa. Sou cria da imprensa escrita, do jornalismo diário feito em uma época em que apenas alguns poucos eleitos - a maioria por mérito e outros tantos por indicação - usufruíam do direito de escrever em primeira pessoa. Não sei se é saudosismo de minha parte, mas continuo gostando muito mais daquela época. Uma vez, no Jornal da Tarde, um editor pediu para que eu fizesse uma matéria em primeira pessoa. Sutilmente desobedeci. Mas um redator, instruído pelo tal editor, colocou todos os verbos do texto em primeira pessoa. Eu não gostei do resultado porque era uma matéria banal, que não mudaria nada em lugar nenhum do mundo. Foi escrita por mim, mas poderia muito bem ter sido escrita por outro repórter, qualquer um. E o resultado não seria tão diferente. É por isso que eu acho: se o que a gente escreve não vai fazer diferença alguma, então por que escrever em primeira pessoa?

No dia seguinte à publicação da tal matéria, um outro editor, um cara tão competente quanto mal-humorado, mas a quem eu aprendi a respeitar muito, me chamou em sua mesa e perguntou: Roveri, por que você escreveu aquela matéria em primeira pessoa? Eu disse que não havia escrito, que um redator mudara tudo. Ao que ele respondeu: ainda bem, eu sempre confiei em você. Como não gostar de um cara desses? Antes de terminar a conversa, ele completou: "Na minha opinião, existe só um tipo de matéria que mereça ser escrita em primeira pessoa. E ela seria assim: eu pulei de pára-quedas. E o pára-quedas não abriu". Ri muito do exemplo. E, como outras tantas coisas das quais a gente ri muito, nunca mais consegui me esquecer dela.

E então surgiram os blogs. E, com eles, a ilusão de que o nosso cotidiano, as pequenas coisas do nosso dia a dia, podem ser importantes para quem quer que seja. Ao navegar pelos blogs, a gente fica sabendo o que as pessoas comeram no almoço, se a digestão foi boa ou se tiveram azia, se foram trabalhar de tênis ou de sapatos, se pentearam o cabelo da direita para a esquerda ou no sentido contrário, se o banheiro entupiu, se o ônibus atrasou, se o elevador emperrou entre os andares do prédio, se o intestino funcionou direito ou se houve alguma constipação, se o celular descarregou durante uma conversa, se a vizinha olhou de atravessado....se...se...se...

Não consigo evitar a pergunta: meu Deus, a quem isso pode interessar? Que curiosidade doentia é essa que nos move? Que síndrome de revista Caras atingiu a nós, a cada um de nós, que sentimos esta necessidade estúpida de divulgar cada um dos nossos pequenos e desimportantes gestos? Que desejo obsceno de nos imortalizar, de nos tornarmos admirados pelo tão pouco que fazemos e pelas picuinhas dos nossos gestos e das nossas obrigações mais banais? Que fascínio oculto este de ser, cada um de nós, um big brother da era virtual, expondo nossas intimidades a quatro ou cinco visitantes diários? Será que, ao escrever, automaticamente passamos a acreditar que nossos afazeres são mais importantes do que realmente são? Será que revestimos uma simples ida ao supermercado do heroísmo de quem salva uma vida?

E, apesar de todas estas indagações, continuo aqui, me expondo também, ocupando este espaço que dizem ser infindo com minhas dúvidas e ansiedades. Mas, cada vez mais seguro - e espero que isso já seja um grande progresso - de que elas não têm poder de fogo algum. Que estão escritas aqui, mas poderiam estar num caderno escondido debaixo do colchão e sua relevância seria a mesma. Eu sei que alguém pode deixar um comentário sugerindo, então, minha desistência deste mundo virtual, já que eu me sinto desconfortável nele. Talvez um dia eu desista mesmo. Por enquanto, estou na fase da indignação. Ou da indagação. Mas sou virginiano. E dizem que nós, virginianos, levamos algum tempo até transformar em ação os nossos desejos. Somos práticos demais para correr riscos, prudentes demais para jogar tudo para o alto, caretas demais para ousar. Inseguros demais para deixar de fazer o que todos estão fazendo. Minha casa está cheia de espelhos. Eles já estavam lá antes de inventarem os blogs. Talvez já denunciassem o desejo oculto, obsceno, doentio e insignificante que eu tenho de me ver a partir de vários pontos de vista e de diversos ângulos. Este blog só faz, aqui, o que os meus espelhos fazem em casa....

quinta-feira, maio 03, 2007

Oitavo andar

Um grande amigo, na época em que era estagiário na Folha de S. Paulo, chegou ao prédio do jornal, na Alameda Barão de Limeira, tomou o elevador e viu, lá dentro, ao lado do painel de botões, um senhor idoso, de terno azul escuro e postura ereta. Não teve dúvidas.
- Oitavo, por favor.
O senhor, gentilmente, disse pois não e apertou o número oito.
Quando chegaram no andar desejado, meu amigo saiu do elevador satisfeito com a simpatia daquele ascensorista...
Na segunda-feira, quando a Folha de S. Paulo estampou em manchete a notícia da morte do publisher Octavio Frias de Oliveira, o dono do jornal, meu amigo levou um susto.
- Meu Deus - disse ele. - Mas era o velhinho que apertou o botão do elevador pra mim naquele dia. Eu nem sabia....

Li tudo que escreveram nestes últimos dias sobre a personalidade do seu Frias, como o chamavam. Clóvis Rossi, Marcelo Coelho, Gilberto Dimenstein e todos os grandes jornalistas da empresa - além do governador José Serra - ressaltaram a nobreza de caráter, a presteza e acima de tudo a humildade do seu Frias. Eram todos artigos comovidos e sinceros. Mas, como eu não tive o prazer de conhecer o seu Frias, entre todas as histórias contadas nos últimos dias sobre ele, a que eu mais gosto ainda é a do meu amigo estagiário.