sábado, março 31, 2007

A primeira dor de Rajid. E também a última.

Rajid era uma menino paquistanês que não sentia dor. Normal. Rajid tinha nascido em uma família portadora de uma anomalia genética que os impedia de sentir dor física. Quando alguns cientistas britânicos conheceram o garoto, ele vivia nas ruas de Islamabad, onde ganhava alguns trocados exibindo o que de melhor sabia fazer: andar sobre brasas, perfurar o corpo com facas e ferir sua pele com lâminas afiadas. Um dia apareceu uma garota de cabelos negros e olhos pequenos para ver o show de Rajid. Assim que a viu, ele decidiu que naquela hora iria se mutilar e queimar seus pés sem sentir dor somente para ela. Na tarde seguinte, a garota apareceu de novo, e Rajid percebeu o quanto era prazeroso se esfolar só para alguém. Mas a garota não gostava de Rajid, ela o via como mais uma das inúmeras aberrações que vagavam pelas ruas quentes da cidade. Rajid descobriu onde a garota vivia e começou a se apresentar na frente do seu portão. Em vão. A garota não aparecia mais para vê-lo. Ao ter certeza de que ela não lhe daria mesmo nenhuma chance, Rajid passou a se perfurar com os espinhos das rosas que a garota nunca aceitou de presente. Depois de um mês de cortes que não doíam, brasas que não queimavam e perfurações que não sangravam, Rajid subiu no telhado de uma casa e saltou para a morte. Os cientistas disseram que o garoto estava testando seus limites para ganhar um pouco mais de dinheiro dos curiosos. Mas Rajid sabia que o motivo era outro: lanças, chamas e espinhos eram nada diante daquela inesperada dor que ele começou a sentir no coração desde o primeiro dia que viu a garota de cabelos negros e olhos pequenos. E, com aquela dor, o pobre Rajid, tão inexperiente diante dos sofrimentos do corpo, viu que não daria para conviver.

P.S.: o garoto paquistanês que não sentia dor realmente existiu. E pulou do telhado de uma casa no dia em que fez 14 anos. A garota de cabelos negros e olhos pequenos nunca existiu, mas conforta mais pensar que Rajid pulou por ela.

quinta-feira, março 29, 2007

O Dia das Crianças, enfim, chegou.


O Dia das Crianças, peça infantil que escrevi a pedido do grupo Os Satyros, estreou hoje no teatro do CEU Três Lagos. Eu nunca havia estado em um CEU antes. Eles ficam longe, ou melhor, longe da região central da cidade que a gente costuma frequentar, mas quando a gente chega lá, a viagem de uma hora, ou às vezes um pouco mais, vale a pena. Eles são imensos, limpos e com crianças, muitas crianças, por todos os lados, para onde quer que você olhe. Os teatros dos CEUs também são bárbaros: 450 lugares, quatro camarins, um palco imenso e ótimos recursos de iluminação. Para o elenco espetáculo, que havia ensaiado dois meses no palco bem mais modesto dos Satyros, estrear no palcão do CEU também deve ter tido gosto de férias.


Os atores estão ótimos - e é verdade mesmo! Esta cara de felicidade aí da foto não é pose, não. A direção do Ivam Cabral é de uma inventividade ímpar, e o figurino do Fabiano Machado e a produção visual do Laerte Késsimos comprovam o quanto os Satyros capricharam nesta sua primeira investida no universo infantil. Eles criaram uma embalagem mágica para contar a história de um reino no qual, em virtude de guerras, fomes e medo, as crianças pararam de nascer. A estréia teve um convidado de luxo: o governador José Serra. Ele prometeu que iria e foi mesmo. Serra passou a manhã em Brasília, aterrissou em Congonhas pouco antes das 15h e seguiu direto para o CEU Três Lagos, a tempo de ver o espetáculo desde o começo. No final, teve de distribuir autógrafos e posar para fotos ao lado de uma garotada muito animada. Antes de ir embora, chamou o Ivam Cabral num canto para dizer que tinha curtido muito o espetáculo. "Mas peça para que o elenco interaja mais com a garotada", disse o governador. "As crianças adoram ser chamadas para colaborar, a toda hora. Se elas perceberem que são essenciais para o espetáculo, o desafio de vocês está vencido". Serra entende de crianças: uma vez por semana, sejam quais forem seus compromissos, abandona tudo para dar aula em uma escola da periferia. Cada semana numa escola. Chega, pede licença ao professor, vai para a lousa e tasca lição na criançada. Nestas horas, deve se esquecer um pouco do que é ser governador. Acho que, no fundo, ele se diverte mais que os aluninhos.

segunda-feira, março 26, 2007

Gargalhada um pouquinho cabeça

Se eu já tinha achado uma missão espinhosa participar como jurado das eliminatórias do concurso de cenas cômicas promovido pelos Parlapatões nos dias 17, 18 e 24, desempenhar a mesma função na final de domingo, dia 25, foi ainda mais complicado. Dez cenas, girando em torno de 20 minutos de duração cada uma, foram apresentadas na seqüência para que, deste conjunto, apenas três fossem premiadas. Platéia abarrotada, torcidas organizadas, mais de 60 pessoas do lado de fora do teatro, à espera de que alguma cadeira por milagre fosse desocupada. Em meio a tudo isso, um surpreendente clima de organização nas coxias, na técnica e na organização do evento: os intervalos entre uma cena e outra não superavam os três minutos e todos os dez números passaram pelo crivo do júri e do público sem nenhum problema técnico mais grave.

O primeiro lugar, com um prêmio no valor de R$ 1 mil, coube à cena Pelo Cano, um comovente e impressionantemente bem-acabado número de clown feito por duas atrizes do Jogando no Quintal. Com uma economia de recursos e uma quase ausência de objetos cênicos, elas alcançaram um resultado de incrível beleza plástica. Em segundo lugar veio o humor contemporâneo e inteligente da dupla As Gêmeas - um texto implacável que metralhou tudo que havia pela frente: os sertanejos, a sociedade de espetáculos, o merchandising da televisão e as cantoras gays da MPB. É Nós na Xita, que combina número de malabares à mais saudosa tradição do teatro de rua, com um resultado que surpreende pelo refinamento da técnica aliado a uma deliciosa ingenuidade de cenários e canções, ficou em terceiro lugar.

Mais do que falar de um ou outro grupo, é importante ressaltar a importância deste evento promovido pelos Parlapatões que, acredito eu, tenha ido muito além das expectativas do público e dos próprios organizadores. Como qualquer concurso deste tipo, seja ele no campo das artes ou da engenharia e arquitetura, o resultado nunca é uniforme. Ao lado de companhias experientes, que exibiram cenas precisas lapidadas ao longo de anos na estrada, surgiram grupos novos, titubeantes no conteúdo de suas propostas e morosos em sua encenação, mas com um experimentalismo que já começa a apontar para alguma direção. Sucesso de público, o grupo de universitários que exibiu o quadro A Traição de Cristo mostrou, por exemplo, que sabe dominar com tranquilidade o universo das sátiras. O que eles fazem, a bem da verdade, não chega a ser exatamente novo: a turma do Casseta & Planeta e o pessoal do Pânico extraem sua matéria-prima da mesma fonte - a sátira aos programas de televisão. Mas ao realizar ao vivo o que os outros fazem amparados pelo conforto dos estúdios e da tecnologia, os rapazes provaram que são um grupo a quem todos os interessados em humor devem ficar atentos. Não ficaram entre os primeiros desta vez, mas com certeza darão o que falar em breve.

Como jurado, talvez não fosse muito ético falar aqui sobre todas as peculiaridades levadas em conta na hora da premiação. De um modo geral, posso apontar aqui alguns fatores que fizeram a diferença. Os mais importantes, e nisso parece ter havido um consenso entre o júri, foram o acabamento de cena, a atualidade do tema (o que envolve a contemporaneidade dos textos ou das situações propostas a partir de imagens), a fluidez do ritmo, o trabalho de ator, a originalidade do assunto, a ousadia a irreverência e a iconoclastia. E, talvez o mais importante de todos: a difícil manutenção no clima de humor ao longo de toda a apresentação. Este primeiro festival parece ter funcionado como uma precisa radiografia de como os grupos, experientes ou novatos, concebem o exercício do humor nestes tempos em que rir está se tornando um hábito cada vez mais escasso. E o resultado final - e só por isso as quatro tardes passadas com os parlapatões já valeram a pena - não teve o sabor de piada velha.

domingo, março 25, 2007

Nascidos para ser Knut


Knut, o ursinho polar rejeitado pela mãe no zoológico de Berlim, é uma das figuras mais belas que os jornais publicaram nas últimas semanas. Um dia antes de a imprensa escrita ter despertado para o caso do ursinho, a internet já havia dado o alarme: ambientalistas alemães diziam que Knut deveria ser sacrificado porque, ao ser alimentado e cuidado pelo ser humano, jamais seria capaz de conviver como um urso de verdade quanto se tornasse adulto. Diante deste quadro, eles acharam melhor matar o ursinho. A chiadeira foi tanta que o filhotinho foi poupado e ser tornou um caso de amor mundial.
Knut não sabe. Mas mesmo tendo nascido na distante Berlim, ele tem vários irmãozinhos brasileiros. Filhotinhos não de ursos, mas de seres humanos, que nos primeiros dias de vida também conheceram a rejeição. Bebês que, rejeitados pelas mães, foram abandonados em latas de lixo, atirados em lagoa, em bueiros, deixados na porta de estranhos e até despejados em lixeira. A dor do abandono (e seu consequente trauma) deve ser tão brutal que a vida em sociedade destas crianças talvez esteja também irremediavelmente comprometida. No caso delas, ainda bem que nenhum ambientalista se prontificou a resolver a questão usando a mesma fórmula alemã....

sexta-feira, março 23, 2007

Selma Egrei, o menino negro e as fatias de cebola

Noite de quinta-feira. Depois de assistir à pré-estréia da peça O Relato Íntimo de Madame Shakespeare, duas horas de um espetáculo intimista ao longo das quais Selma Egrei dá mais uma prova de que é uma das grandes atrizes brasileiras sem jamais trair seu estilo low-profile, caminho a pé, em companhia do amigo e jornalista Gustavo Fioratti, da sede do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro, até a avenida Paulista. Caminhada vagarosa e despreocupada, um raro prazer de observar o quanto o velho centro pode ser belo se o olharmos com o espírito desarmado - uma atitude cada vez mais rara e arriscada hoje em dia.

Paramos, depois de uma hora de caminhada, em um desses lugares que vendem pizza aos pedaços, na Alameda Santos. Alguém tinha acabado de comprar uma garrafa de Coca Cola e uma fatia de pizza calabresa, revestida de uma infinidade de fatias finas de cebola, para um garoto de rua, um menino franzino, negro, de dedos impressionantemente finos. Ele acomodou-se ao nosso lado e levantou-se na seqüência. Foi pedir para que o atendente lhe conseguisse um copo descartável. Voltou com o copo e o encheu de coca cola. Era coca light. Então, com a paciência de um ourives, começou a tirar, com seus dedos que pareciam pinça, cada uma das fatias de cebola, que ia amontoando sobre um guardanapo branco. Foi um dos gestos mais lindos e elegantes que já vi na vida. Seus dedos colhiam as fatias de cebola com a nobreza de uma rainha que revirava sua caixa de jóias, a nossa pequena my fair lady das ruas. Aquele era o momento dele, provavelmente a única hora do dia em que se permitia tamanho luxo e deleite. Depois, comeu a pizza em quatro ou cinco grandes mordidas, tomou a coca cola que estava no copo e jogou o restante da garrafa fora, junto com o guardanapo das cebolas. Agradeceu o balconista e voltou a mergulhar nas ruas, talvez para passar a noite em um farol, talvez para dormir debaixo de alguma marquise. Mas naqueles segundos em que retirava as cebolas da pizza ele tinha sido o que na verdade ele era: uma criança. E me deu de presente a lembrança, já perdida lá atrás, de quando eu, também menino, tirava as cebolas de cima da minha pizza. Mas eu acho que nunca fui tão elegante quanto ele.

O velho Abu em seis questões


Antonio Abujamra está de volta a São Paulo. À frente dos 23 atores do grupo Os Fodidos Privilegiados ele mostra, a partir desta sexta-feira, dia 23, no Teatro João Caetano, o espetáculo Tchecov e a Humanidade (foto) - um recorte das quatro grandes peças do dramaturgo russo (As Três Irmãs, A Gaviota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras) e dois contos, A Humanidade e A Dama do Cachorrinho. Enviei seis perguntas para o velho Abu. Eis as resposrtas:

Por que os Fodidos Privilegiados ficaram tanto tempo sem se apresentar em São Paulo?
Fiquei uma temporada grande no Rio, estabelecemos uma franquia para nós mesmos e Os Fodidos Privilegiados foram um sucesso extraordinário lá, e continuam sendo. Viemos mostrar aqui as montagens de O Casamento e Tudo no Timing, mas duas ou três representações somente. Esta volta a São Paulo me fez recriar o grupo aqui. Vamos ver o que acontece.

Qual a expectativa em relação à temporada paulistana?
A temporada será de dois meses no João Caetano, um teatro periférico, na Vila Mariana, e tratei de fazer um elenco de 23 artistas. Mas trinta e cinco pessoas entraram na construção de um sonho, em que o dinheiro é raro e o nome do grupo existe pela razão de todos quererem arrancar o coração e colocá-lo debaixo do sapato. Por isso entram descalços em cena.

Quais os motivos da escolha de Tchecov para este novo trabalho?
Tchecov mostra para nós o nosso momento brasileiro. Esses autores clássicos, eles não escreveram suas peças há 100 anos. Escreveram ontem. Por isso são clássicos e populares. Tchecov mostra que o tempo é uma ferida – mostra que, impossibilitados de viver o presente, esse presente absurdo e carregado de arrependimentos, os homens são obrigados a viver no passado ou no futuro do pretérito. A única vida possível é a vida sonhada, a vida de lembranças, nostalgias ou ainda a vida de um futuro longínquo e utópico. Essa é uma das razões entre as centenas de outras.

Qual foi a principal dificuldade para selecionar apenas alguns trechos de obras tão essenciais do autor?
Meyerhold (o russo Vsevolod Meyerhold, 1874-1940, diretor e teórico de teatro) dizia que quando se pusesse uma peça assim clássica em cena, se deveria pôr quase tudo o que o autor tinha escrito na vida... Um dos maiores do mundo disse isso. Então, como só se consegue fazer o que se pensa na juventude, quando estamos com 75 anos o essencial de Tchevov é atirado para a volúpia dos espectadores que terão a liberdade de gostar ou não desta experiência rara no teatro brasileiro. Foi difícil.

Você consegue enxergar algumas semelhanças entre a Rússia decadente descrita por Tchecov e a atual sociedade brasileira?
O Brasil está presente sempre, mostrando a atmosfera de educação e cultura como futilidades, não pensando em profundidade sobre o que é preciso fazer. E a tristeza emocionada tem que aparecer.

De todos estes textos de Tchecov selecionados para a montagem, qual deles permanece mais atual na sua opinião?
Tchecov, antes de ser um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, era médico e, por isso, não podia nunca dizer para um doente terminal que ele iria morrer. Então, dá sempre uma esperança. Em todas as suas peças, a esperança é indispensável. E isso é o Brasil. Mesmo sabendo que a esperança já ferrou toda a América Latina, se continua com essa palavra sempre na boca dos brasileiros.

quarta-feira, março 21, 2007

Minha apimentada noite com o Ronnie Von


Muita gente de teatro que eu conheço já tinha ido ao programa do Ronnie Von (aqui ele está bem mais novinho, hein). Na segunda-feira eu finalmente fui. O Ronnie é uma graça de pessoa, um lorde. Educadíssimo. Deixa a gente falar à vontade, dar recados, mandar beijos e, o que é melhor, fazer um monte de propaganda sobre o que a gente anda tramando. No meu caso, fui para falar da peça Andaime, em cartaz no Teatro Vivo, com o Cláudio Fontana e o Cássio Scapin no elenco. O Ronnie já tinha lido as críticas que o Estadão e a Folha publicaram sobre o espetáculo. Ele é cúmplice, parece torcer sinceramente pelo sucesso de cada um dos seus entrevistados, ainda que o esteja vendo pela primeira vez.

Tevê é uma coisa complicada. Ela não dá uma segunda chance. Se você falou alguma bobeira, pronto, já era. Tão diferente do jornal, em que ainda é possível se arrepender da palavra infeliz. E voltar atrás. Mas na televisão é um tiro só. Se ele sair pela culatra, azar o seu. Cheguei nervoso ao estúdio, sempre me achando gordo demais, bochechudo demais, barbudo demais e interessante de menos....Quando vi que meu companheiro de bancada era o amigo Marcelo Mansfield, respirei aliviado. Eu já falei tantas besteiras ao lado do Mansfield que, em último caso, o programa do Ronnie Von seria só mais uma delas. Mas eu acho até que a gente se saiu muito bem. O tema da entrevista era engraçado: como se desapaixonar e dar a volta por cima... Seria bem legal se a gente soubesse fazer isso. Durante o programa, eu me senti um pouco como o Lula: falando, falando, falando com muita propriedade sobre coisas que eu não entendo. E percebi como este jogo é sedutor. Enquanto conversávamos, o brilhante chef Fabio Boschero , do Hotel Hilton do Morumbi, preparou um filé migon ao molho de pimenta. Foi o mesmo prato que ele serviu ao presidente Bush há 15 dias, quando o doidão visitou São Paulo. Além do filé, que Bush pediu bem passado, para horror do chef, o presidente dos americanos ainda se lambuzou com um monte de asinha de frango assado. O filé do Fabio estava uma delícia. No ponto, macio, suculento. O problema era o molho de pimenta branca... Uau, na primeira garfada, pensei que minha garganta fosse pegar fogo. E eu já tinha bebido toda a água durante a entrevista, para afogar meu nervosismo. O jeito foi me socorrer com vinho... Se o Bush come sempre toda aquela pimenta, não é de admirar que ele saia bombardeando o país dos outros... Tem coisas que exigem mesmo retaliação. Ah, o Ronnie é mais baixinho do que eu pensava. Mas a mulherada o ama de qualquer maneira.

segunda-feira, março 19, 2007

Vai para o trono ou não vai?

Passei o último fim de semana enfurnado no Espaço dos Parlapatões, como jurado do festival de cenas cômicas que atraiu um público considerável nas duas primeiras eliminatórias. Ser jurado é uma missão ingrata, mesmo podendo dividir esta função com Angela Dip e Alexandre Matte - ela incansável em seu bom-humor e sua generosidade diante de novos talentos; ele com sua habitual competência para analisar a mais ínfima das particularidades de cada trabalho, sem soar pedante em nenhum momento. Ainda assim é penoso, entre as nove cenas apresentadas por dia, escolher somente três para integrar a final, que será realizada no próximo domingo. Não posso, aqui, por uma questão profissional, fazer um balanço deste primeiro fim de semana e nem emitir minha opinião sobre os novos caminhos para onde grupos e artistas jovens estão conduzindo a comédia brasileira. Farei isso quando o festival acabar, mas fica aqui o convite para que os amigos prestigiem mais esta iniciativa pra lá de bacana do Hugo Possolo e seus parceiros palhacinhos.

Voltei para ver os amigos que um dia....

Ao ler trechos do discurso do ex-presidente e agora senador Fernando Collor na tribuna, um ritual que se estendeu por mais de três horas e voltou a comprovar a habilidade do homem em combinar teatro de péssima qualidade à uma visão distorcida da realidade, passei um tempo pensando na assustadora vocação que o brasileiro tem para o perdão e o esquecimento. Collor foi uma das figuras mais nefastas da história recente deste país. Há meros 17 anos, e isso para a história é menos que ontem, ele conseguiu mergulhar o Brasil em uma espiral ensandecedora: inflação anual acima de mil por cento, depósitos bloqueados, doentes morrendo antes que conseguissem resgatar suas economias para pagar por cirurgias de emergência, caras-pintadas, passeatas, corrupção, uma economia em frangalhos... E agora o homem volta, eleito democraticamente pelo mesmo estado de onde um dia ele infelizmente saiu para chegar ao Palácio do Planalto. O povo o perdoou e se esqueceu de tudo que ele fez. Na tribuna, os políticos choraram diante de seu discurso e, de carrasco, Collor praticamente passou à vítima de um grande erro de avaliação cometido por uma nação inteira. Ao arrancar lágrimas da classe política que ele sabe tão bem representar, Collor provou que, no Brasil, o crime de ontem é motivo do orgulho de hoje. E que nossa noção de ética é tão frágil que ela se quebra e se curva não diante de novos fatos e julgamentos, mas diante apenas da suave passagem dos dias.

sexta-feira, março 16, 2007

Claudia Raia e Denise Fraga com medo do gongo

A pedido do grupo de teatro Os Satyros escrevi minha primeira peça infantil, O Dia das Crianças. O título, que a princípio pode sugerir uma certa obviedade, tem lá sua explicação. Vamos à história: O Dia das Crianças fala de um reino que atravessou uma época tão difícil, marcada por guerras, conflitos sociais, falta de segurança e medo, que as crianças pararam de nascer. Era tão difícil sobreviver naqueles tempos cruéis (ou seriam os nossos tempos?), que todos já nasciam adultos e a infância chegou ao fim. Ao perceber o que estava ocorrendo em seus domínios, o rei, desesperado, procurou o soberano de um país distante e pediu para que ele, em algum momento do futuro, quando um determinado cometa cruzasse o céu, enviasse suas crianças para passar um dia naquele reino onde elas já não existiam mais. Ou seja, o dia das crianças. E é neste momento que a peça começa: um envelope falante chega ao reino dos adultos com a notícia de que o cometa irá aparecer em três dias - e junto com ele chegarão as crianças.

A notícia deixa o reino desconcertado. Afinal, o que são crianças, com o que elas se parecem, do que elas gostam, o que fazer para agradá-las? Todos os conceitos sobre a infância se perderam naquele reino, pois há séculos ninguém vê mais uma criança. O rei, em companhia de sua aloprada rainha, decide então fazer um concurso de talentos entre os moradores de seu reino. Os melhores cantores, dançarinos, atores, mágicos e malabaristas serão selecionados para entreter a criançada no dia em que elas chegarem. Ivam Cabral, o diretor do espetáculo, teve uma idéia genial, uma entre tantas que parecem brotar diariamente em sua cabeça: convidou gente famosa para os testes. E os famosos toparam!!! Denise Fraga, Claudia Raia, Adriane Galisteu, Renato Borghi, Paulo Autran, Marcelo Médici, os Parlapatões e Cássio Scapin, em um gesto de simpatia absoluta e de um incontrolável amor pelo teatro, gravaram hilariantes participações em vídeo, como se fossem anônimos em busca de uma chance no show biz. Eu assisti hoje à parte das gravações e elas estão irresistíveis. Embora eu esteja doente de vontade de contar o que os famosos fazem nos testes, vou ficar quieto. Não posso estragar a surpresa de ninguém. O Dia das Crianças vai ser apresentado em todas as unidades dos CEUs da prefeitura. Já foram agendadas 64 apresentações - o que deve representar um público de aproximadamente 50 mil crianças só no primeiro semestre. O espetáculo, embora eu seja suspeitíssimo para falar, está maravilhoso. Anotem: é uma das peças infantis mais originais que já se viu por aqui. Queria aqui, em público, agradecer a estes artistas bacanérrimos e solidários que abriram um tempo em suas agendas concorridíssimas para ajudar o Satyros a levar diversão de primeira para toda a criançada da periferia. A peça estréia no dia 28, no CEU Campo Limpo. Ivam Cabral promete colocar o espetáculo em cartaz nos Satyros, ali na Praça Roosevelt, assim que a excursão pelos CÉUs terminar. É esperar para ver. Garanto que vocês vão adorar aquele reino muito louco que um dia virou de ponta cabeça para alegrar a garota.

quarta-feira, março 14, 2007

O papa não é nada pop

O papa Bento 16 acaba de divulgar um documento chamado Sacramentum Caritatis no qual afirma que o segundo casamento é uma praga. E sobre o primeiro, ele não vai falar nada? O documento recomenda que os católicos fiquem contra o aborto, a eutanásia e a união homossexual. Quando a igreja vai se dar conta de que cada ser humano é único e deve ter autonomia para decidir sobre estas questões de acordo com suas convicções e as peculiaridades de cada momento de sua vida? Quando a igreja vai perceber que não parece mais lógico que as pessoas ao redor do mundo ainda se guiem pela doutrina do atraso, da proibição, do pecado?Como a igreja espera que se sinta uma criança fruto de um segundo casamento? Além do fardo de carregar o pecado original (alguém ainda se lembra disso?) ela vai ter de conviver com o peso de ter sido gerada por uma praga. É isso que o santo padre espera? Como se o mundo não tivesse problemas suficientes com os quais se preocupar, vem o papa, do alto de seu vestidinho branco e do piso de marfim por onde ele desliza cercado de cardeais submissos, dizer que nem uma segunda chance no amor nós, mortais pecadores, merecemos...

Nasci e cresci numa família católica. Fui batizado, fiz primeira-comunhão (adorava aquele livrinho chamado de catecismo antes de descobrir que um outro tipo de publicação, bem menos religiosa, também levava o mesmo nome) e ainda fui crismado. Ia à missa todos os domingos de manhã e ficava fascinado diante do altar, das imagens e, principalmente da vida dos santos, cheia de provações e milagres. Seu Antenor era o nosso coordenador do catecismo. Bastava que ele surgisse, com seu olhar severo vindo da sacristia, para que começássemos a recitar, cheios de tropeços, a lista dos dez mandamentos e os primeiros versos da salve-rainha. Até que chegou o dia da primeira comunhão e, com ela, a principal e mais severa de todas as advertências que podiam assombrar um menino católico: ninguém poderia comungar se tivesse um pecado do qual não tivesse sido perdoado. Comungávamos aos domingos de manhã. Assim, no sábado à tarde fazíamos filas diante do confessionário. Cada menino com seu arsenal de pecados acumulados desde o domingo anterior. Em uma daquelas semanas dos meus onze anos eu devo ter sido tão comportado, mas tão comportado, que prestes a me ajoelhar diante do padre minha cabeça ainda estava vazia de contravenções. Não era possível! Será que eu não tinha xingado ninguém durante a semana? Não havia blasfemado contra Deus, não havia matado, traído, roubado ou estuprado. Como eu podia ter sobrevivido uma semana inteira isento das tentações da carne e da alma? Apavorado diante da minha inocência indesejada, me ajoelhei diante do padre e disse: Senhor, esta semana eu derramei café com leite na mesa e deixei resto de comida no prato duas vezes. Muito bem, disse o padre. Reze três pai nosso e não faça mais isto. Eu te absolvo. Depois de cumprir minha suave penitência, fiquei pensando que não devia ser muito legal uma igreja que obrigava uma criança a conviver com a idéia do pecado, a vasculhar sua mente em busca de delitos e a acreditar que derramar uma xícara de café com leite era um problema digno de incomodar a paciência do todo-poderoso. Nunca mais confessei, nunca mais vi a igreja do mesmo jeito e nunca mais acreditei que um padre pudesse me absolver antes que minha consciência o fizesse. E hoje, só para irritar o papa, confesso que adoraria me casar por uma segunda vez.

terça-feira, março 13, 2007

Bárbara e o Prêmio Shell


Havia uma garota chamada Bárbara. Talvez ela não fosse exatamente uma garota, mas isso para ela não passava de um detalhe. Um dia, Bárbara foi expulsa da casa dos pais, em Belo Horizonte. Tentou a vida em Palmas, onde aprendeu a se prostituir. De lá, veio de caminhão para São Paulo. Aqui cometeu pequenos roubos e um homicídio: com uma faca, tirou a vida de um homem de terno cinza que se recusou a pagar por seus serviços de travesti. Bárbara foi condenada a cumprir 18 anos de cadeia na penitenciária do Carandiru. Lá ela conheceu e se casou com Xalé, o chefe da faxina do Pavilhão Cinco. Até que um dia surgiu Galega, que se acreditava mais garota que Bárbara desde a operação na Itália, que fez brotar uma vagina onde antes havia um pênis. Foi com esta história em mãos, escrita pelo médico Dráuzio Varella, que o ator e produtor André Fusko me procurou um dia, pedindo para que eu transformasse em teatro a vida de Bárbara.

Assim nasceu a peça Abre as Asas Sobre Nós (foto), uma leitura muito pessoal da vida da Bárbara. Na peça, alterei seu endereço, mudei seus amigos e a presentei com o estranho amor de Paulo Preto. Dirigido por Luiz Valcazaras, o espetáculo Abre as Asas Sobre Nós foi lido como o grito de alguns desesperados em busca de um pouco de liberdade. O ator Emerson Rossini construiu uma Bárbara retraída, uma mulher irônica e escaldada. Rodrigo Gaion fez de sua Galega uma personagem odiosa, movida tanto pela inveja quanto pela falta de um amor. Xalé transformou-se em cafetão no corpo de Valmir Pinto e André Fusko recheou de um lirismo neurótico o seu Paulo Preto. Hoje ganhei o Prêmio Shell de melhor autor de 2006 pelo texto de Abre as Asas Sobre Nós. Não sei se Bárbara, Galega e Xalé sobreviveram aos desafios do Carandiru, não sei se estão soltos ou se ainda pagam por seus delitos. Mas ao lado do diretor Luiz Valcazaras, dos atores André Fusko, Emerson Rossini, Rodrigo Gaion e Valmir Pinto e dos jurados do Prêmio Shell, que na escolha desta noite mostraram o quanto estão atentos à nova cena teatral paulistana, eu gostaria de fazer um agradecimento especial a Barbara, Galega e Xalé, por terem me emprestado os detalhes de suas vidas que me permitiram escrever Abre as Asas. Um dia, eu gostaria que eles vissem o espetáculo e, quem sabe, pudessem me perdoar por possíveis ousadias e liberdades que tomei diante de sua história real. Afinal, a mesma história que os levou para trás das grades deu origem a um espetáculo premiado. Somente na arte tamanha ironia poderia ter um final feliz para um dos lados. Torço, de coração, para que a história real também termine bem para eles algum dia.

domingo, março 11, 2007

Uma lambida de despedida

Eu tinha três anos quando pedi meu primeiro cachorro. Alguém, acho que foi meu pai, tentou me ludibriar me dando um coelho. O bicho não conseguiu atrair minha atenção por mais de meia hora e só fez aumentar minha vontade de ter um cachorro. Meu avô, seu Silvério, um descendente de espanhol que tinha sido rígido com os filhos para mais tarde se tornar um velho amoroso, foi quem apareceu com o cãozinho em casa. Bob chegou fedido e sujo de cinzas. Ele tinha nascido, e vivido seu primeiro mês, ao lado de um fogão a lenha de uma família pobre de Jundiaí. Depois do banho Bob se revelou um vira-latinha branco e preto, magrinho e de rabo comprido. Eu não tenho certeza, mas, em troca de Bob, meu avô presenteou à família na qual ele nasceu com um quilo de linguiça. Durante os 17 anos que viveu conosco, Bob sempre foi magro e inacreditavelmente fiel. Ele vivia no fundo do quintal e odiava os vizinhos que tinham voz alta e estridente. Latia alto para todos eles. Nós morávamos em uma casa com um quintal imenso e Bob cresceu no meio de galinhas e dos coelhos que meu pai criava em viveiros de madeira. Às vezes, alguma lebre dava à luz filhotinhos tão miudinhos que eles escorregavam pelas táboas do viveiro e caíam no chão. Bob tomava conta deles, protegendo-os do ataque das galinhas até que alguém da família chegasse para devolvê-los à lebre desesperada. Bob morreu de diabetes, precisou ser sacrificado quando já estava praticamente cego e esquelético. No dia em que ele foi levado embora, minha mãe chorou e eu não tive coragem de aparecer para lhe dar um abraço de adeus.

Hoje, ao ler a matéria de capa da Revista da Folha, sobre cães e gatos que salvaram seus donos de algumas tragédias, ou que os acompanharam quando a tragédia já havia se instalado, me bateu uma saudade gigante do Bob. E passei o dia tentando me lembrar se ele já tinha me salvado de alguma coisa. Agora, no fim da noite, me dei conta de que Bob me salvou de ser uma pessoa que não sabe amar cães, gatos e outros bichos. Eu devia ter dado um grande abraço de despedida no Bob. O danado merecia.

sábado, março 10, 2007

Das janelas para o jornal


ROVERI TIRA O PÓ DA SEPARAÇÃO ENTRE AS CLASSES


Sérgio Roveri declara que "Andaime" surgiu antes como uma imagem do que como uma história. Pudera: a "situação dramática", no sentido original do termo, de dois lavadores de vidraça suspensos no meio do nada é atraentemente simbólica nos tempos ambíguos que correm. Mário e Claudionor, por um lado, têm por deformação profissional um distanciamento irônico em relação ao que observam pelas janelas dos arranha-céus que limpam; por outro lado, fazem parte do batalhão invisível da manutenção do cotidiano. Olímpicos e servis, jogam conversa fora, lá das alturas.

Curiosamente, as condições nas quais a montagem estréia reproduzem de certa forma essa ambivalência. Roveri é um criador da Praça Roosevelt, como já se diz com orgulho na classe teatral: vê o mundo da periferia para o centro. Mas fosse a estréia na Praça, a partida talvez já estivesse ganha de início, com uma platéia cúmplice do sarcasmo dos excluídos.
No Teatro Vivo, com ingressos mais caros, o texto tem possibilidade de atingir uma platéia mais elevada socialmente, os do outro lado da vidraça fechada, que mais raramente têm a ocasião de ficarem atentos para o que dizem os humildes. O dramaturgo assim retoma a função que já foi de Ruzzante, na origem da Commedia dell’Arte: reaproximar os extremos sociais pelo riso, trocando uma desconfiança rancorosa por uma simpatia desarmante.

Há algo de fato da comédia de máscaras no trabalho dos atores. Bem amparados pela cenografia de Gabriel Villela, eficiente e discreta, que dá a instabilidade do andaime na medida certa, com desconforto mas sem risco real, e dirigidos com precisão pelo ator diretor Elias Andreato, Claudio Fontana e Cassio Scapin levam o espetáculo nas costas, com desenvoltura mas sem exibicionismo. Adotam sotaques que às vezes perdem, mas não importa: é muito bom vê-los se divertirem na triangulação com a platéia, com um timing eficaz, alternando tons e ritmos ao longo do dia de trabalho.

Nenhum grande tema será abordado, nenhuma ferida social mais funda será tocada: no máximo, por trás da verve popular, transparecerá uma melancolia doída por serem tão descartáveis. A revolta será pontual, contra símbolos da falsa ordem urbana, como no trecho de empatia imediata no qual Fontana se revolta contra a solicitação de só se usar duas folhas de papel toalha, no luxo antipático dos Shoppings, onde se pode ir, mas não comprar.
Com um tom menos agressivo que o das stand-up comedies, mas sem descambar para um humor ridicularizante dos programas de televisão, Roveri se filia à técnica do velho humor de rádio, com a ingenuidade espertamente calculada de Nöel Rosa e de Alvarenga e Ranchinho. Será esse tom eficaz para despertar a platéia contra o menosprezo, criando uma solidariedade entre as classes? Quando finalmente Mário e Claudionor descem do andaime a caminho do Shopping, como na velha canção dos Mamonas Assassinas, se observam perplexos. A voz dos alternativos, a partir da praça Roosevelt e adjacências, já se faz ouvir nas vitrines dos andares mais altos?

Sérgio Salvia Coelho, Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 10 de março de 2007

sexta-feira, março 09, 2007

Eu quero andar pela 23 de Maio sem ver o Bush

Um amigo me disse, há poucos dias, uma frase assustadoramente profética. "A cada vez que Bush se mexe, algo de ruim acontece em alguma parte do mundo. Ele é o epicentro do mal". Pensei no Iraque, em Guantánamo e até nos conterrâneos dele de Nova Orleans, que neste caso experimentaram o mal apenas por serem pobres e negros. Esta semana, quando o mal esteve entre nós, dei ainda mais razão para o meu amigo. Os pobres que viviam há mais de 15 anos ao lado do hotel onde ele se hospedou, no Morumbi, foram desalojados - um eufemismo para sinalizar a truculência municipal que demoliu seus barracos, varreu seus carrinhos de cachorro-quente e escondeu seus tapumes. No momento em que tudo isso ocorria, Bush devia estar embarcando. O que comprova a tese: ele estava se mexendo lá, e alguma coisa de ruim já acontecia aqui. Como se fosse pouco esta atitude arbitrária de esconder de Bush a face da pobreza brasileira (como se fosse possível a este Brasil continuar escondendo e maquiando sua miséria), nós, paulistanos, evitamos sair às ruas com medo de encontrar bloqueadas as marginais ou avenidas como a 23 de Maio, reservadas apenas à passagem de Bush e sua comitiva. Caramba, mesmo quando ele não bombardeia, ele consegue tirar um país do eixo. Eu quero andar pela 23 de Maio e pela Marginal Pinheiros sem ver o Bush. É o mínimo a que temos direito.

Cabe no bolso e eu gosto

Nunca tive qualquer preconceito em relação aos livros de bolso. Ao contrário: eu os adoro. Acho o máximo parar em uma banquinha da Avenida Paulista e, por dez ou onze reais, trazer para casa obras de Shakespeare, Maquiavel, Ibsen, Truman Capote, Millôr Fernandes, Fernando Pessoa entre tantos outros autores sensacionais. Os livros de bolso sempre me transmitem a sensação reconfortante de que irei lê-los até o fim e em pouco tempo. E não vejo nenhum mal em encarar uma obra literária a partir deste ponto de vista. O que não quer dizer, de forma alguma, que eu não reúna fôlego para encarar as 561 páginas de Crime e Castigo, de Dostoiévski, por exemplo, ou as mais de 700 de Submundo, de Don Delillo. Com o primeiro deles estou em paz, terminei de ler a saga de Raskólnikov há pouco tempo, mas Delillo ainda continua acumulando poeira na estante. O que não me deixa preocupado, pois ele está na invejável companhia de Thomas Mann, cuja Montanha Mágica ainda não terminei de escalar.

O último livro de bolso que comprei e que está me deliciando é A Arte de Escrever, de Schopenhauer. Fui atrás deste título por indicação do amigo Duilio Ferronato, que tem um dos blogs mais bacanas do pedaço. Não sou filósofo e nem teria condições aqui de levantar uma discussão profunda acerca da obra de Schopenhauer, mas acho que ele deve ter sido um sujeito difícil. Sinto que o fato de sua obra ter levado pelo menos trinta anos para ser reconhecida depositou na alma de Schopenhauer um rancor que transparece em cada uma de suas idéias - embora todas sejam dignas de muita reflexão. A leitura de Schopenhauer se torna prazerosa, a meu ver, porque ao lado deste rancor sobrevive uma ironia rara entre os grandes filósofos. Existe um amargor que parece conduzir o leitor até a próxima página, como se fosse um thriller. A Arte de Escrever é dividido em cinco capítulos, dos quais o meu predileto é o segundo, sobre a escrita e o estilo. Vejam o que ele diz: "Também se pode dizer que há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências ou diretamente a partir de livros alheios. Esta classe é a mais numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. São raros". Confessem: não dá uma vontade absurda de saber o que mais ele tem a dizer?

quinta-feira, março 08, 2007

Uma ponte perto do mar e perto da tevê


O Encontro das Águas foi uma peça que escrevi em 2003, como trabalho de conclusão de um curso de dramaturgia que eu havia feito no ano anterior. É uma peça curta, simples eu diria. O relato do encontro de dois jovens em cima de uma ponte perto do mar. Há o barulho das ondas, há o ruído das gaivotas, há a maré, que não pára de subir, ameaçadora e ao mesmo tempo conivente com o desejo de um dos jovens, que espera pelo momento exato de se atirar nas águas. A peça estreou em maio de 2004 no Espaço dos Satyros Um, com interpretações arrepiantes dos atores José Roberto Jardim, que fazia o personagem Apolônio, um artesão-filósofo misterioso que vivia na ponte, e Pedro Henrique Moutinho, como o perturbado Marcelo. Na direção, a mão precisa e extremamente delicada de Alberto Guzik, que respeitou cada vírgula do texto, que levou ao palco cada pequena respiração que o texto sugeria. A peça ficou em cartaz por sete meses, viajou pelo Interior do Estado, foi apresentada nos festivais de teatro de Curitiba e Porto Alegre e recebeu elogios até de um jornal do Uruguai. Foi o texto, e hoje eu vejo isso claramente, que apontou um novo caminho na minha carreira de dramaturgo iniciante.

Três anos depois, O Encontro das Águas continua a me dar alegria. A peça, agora, será transformada em teleteatro da Tevê Cultura, pelas mãos de Sérgio Ferrara, com quem estou trabalhando em outra montagem, A Noite do Aquário, um drama que se passa no início dos anos 60 e tem como mote a noite em que uma jovem e desconhecida Elis Regina cantou na Praça Roosevelt. Ferrara irá dirigir o Encontro no fim de abril. Sei que, no momento, ele está definindo o elenco e escolhendo as locações - esta última tarefa, reconheço, extremamente fundamental para a compreensão da trama.
Os amigos que viram a montagem de Guzik me perguntavam: mas, afinal, o que aconteceu com os dois? Marcelo vai voltar à ponte no dia seguinte para encontrar Apolônio? Apolônio vai continuar sozinho em sua missão angelical de velar pelos desesperados? Eu não tenho estas respostas. Às vezes, eu fico triste de imaginar que Apolônio continua sozinho naquela ponte...talvez não devêssemos ser tão cruéis com os personagens tão queridos. Acredito que a versão de Ferrara não irá responder estas perguntas. Mas me conforta saber que, agora, vai haver muito mais gente torcendo por Apolônio.

De Monalisa ao motoqueiro

Passei a tarde desta quarta-feira na OCA, acompanhando a visita do professor italiano de história da arte Luciano Migliaccio à exposição Leonardo Da Vinci: A Exibição de um Gênio. Há dez anos no Brasil - veio para dar um curso de história da arte na Unicamp e acabou ficando por aqui - e ainda com um forte sotaque napolitano, Migliaccio saiu decepcionado da exposição. Alega que a curadoria deu preferência ao perfil do Da Vinci engenheiro e arquiteto, deixando de lado a genialidade de sua pintura. Um olhar mais atento às reproduções dos famosos quadros de Da Vinci expostas na Oca só serve para endossar a opinião do professor. À noite, e é duro confessar isso aqui, resolvi ver O Motoqueiro Fantasma. É pior do que eu temia. Triste ver um ator do calibre de Nicolas Cage derretendo no meio de tantas labaredas. Tomara que ao menos ele tenha se divertido. Não parece.

Bate-estaca da fé

A notícia mais saborosa do dia saiu na Folha. Em Goiás, uma igreja criada há dois anos chega a reunir até três mil pessoas em cultos realizados ao som de música trance. Isso mesmo, música trance. Chamada de Igreja do Trance Divino, a seita não cobra dízimo e seus pastores não querem associar a imagem de Jesus ao sofrimento. Como estou um pouco afastado das batidas eletrônicas, o que eu mais gostei nesta história toda foi saber que não se cobra dízimo. Será que a notícia chegou a Miami, onde a bispa Sônia e seu marido aguardam decisão judicial para ver qual será o destino dos dois, depois que foram pegos tentando entrar com dólares a mais, muitos dólares a mais, nos Estados Unidos? Se leram a notícia, na certa devem ter pensado: "Amadores...onde já se viu, não cobrar dízimo? Queremos ver quanto tempo vai durar esta festança..."

quarta-feira, março 07, 2007

Santo estresse

Resolvi enfrentar o forte calor da tarde de domingo para ver O Retrato Íntimo de Madame Shakespeare. À toa. Faltando dez minutos para o início da sessão, a produção informou que o espetáculo havia sido cancelado. A atriz Norma Bengell estava passando mal. Compreensível. Um amigo tinha ido ver a peça na estréia, na quinta-feira anterior. Um outro foi no sábado. Os dois saíram chocados do teatro. Norma Bengell não sabia o texto, não acertou praticamente nenhuma de suas falas. Ao ler o jornal de hoje, descubro que ela abandonou o espetáculo, alegando estresse emocional. No entanto, segundo a nota, ela já recebeu pela temporada inteira. Fiquei pensando na centena de amigos atores que trabalham por bilheteria, gente talentosíssima que, embora viva num país em que as crianças são arrastadas por sete quilômetros em carros conduzidos por marginais, ou derrubadas por balas perdidas no meio da tarde, não podem se dar ao luxo de render-se diante de um estresse emocional, porque tem contas a pagar. Porque precisam aparecer no teatro todas as noites. Porque respeitam suas platéias. Porque são profissionais. E porque não costumam receber por um trabalho que ainda não apresentaram. Que orgulho eu senti deles, destes meus amigos.

Saudades de mim mesmo

Quando alguém começar a acompanhar este blog, e espero que isto um dia venha a ocorrer, conhecerá de cara um dos meus defeitos: a preguiça. Devo ter escrito pela última vez ainda no ano passado. Se eu tivesse sido mais disciplinado, talvez este blog trouxesse, agora, uma quantidade imensa de textos, notícias, surpresas, belos acontecimentos, algumas decepções - enfim, toda a química que parece compor a nossa vida.
De minha última entrada neste blog até hoje, dia sete de março, muitas coisas boas ocorreram na minha vida profissional. Fui indicado ao Prêmio Shell de melhor autor pela peça Abre as Asas Sobre Nós, que voltou ao cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, onde fez uma carreira satisfatória, embora muito tumultuada no início. Concluí uma nova peça, chamada A Noite do Aquário, que me permitiu trabalhar ao lado de amigos queridos e talentosíssimos, como o diretor Sérgio Ferrara e os atores Chico Carvalho, Germano Pereira e a maravilhosa Clara Carvalho, do Grupo Tapa. Sei que eles não ficarão bravos por eu ter destinado à Clara um adjetivo a mais: mas o fato é que ela é maravilhosa mesmo e é também a única mocinha no meio desta história que está sendo contada por homens. Por isso, um pouco de delicadeza para com ela nunca é demais. Vi uma peça escrita há um ano e meio, Com Vista Para Dentro, estrear no Teatro Vivo com o nome de Andaime. Sobre este espetáculo, eu poderia passar um dia inteiro escrevendo. A peça está uma delícia, os atores Claudio Fontana e Cássio Scapin estão dando um show em cena, a direção do Elias Andreato é uma aula de delicadeza e o cenário e figurino do Gabriel Villela são de uma contemporaneidade emocionante e ao mesmo tempo dolorida. Andaime, além de ser meu primeiro espetáculo a ocupar um grande teatro comercial, me aproximou muito destes quatro profissionais (Cassio, Claudinho, Elias e Gabriel) que eu já admirava muito, mas com quem nunca tivera a oportunidade de conviver. Hoje, não sei se eles são mais sensacionais no palco ou nas coxias - mas devo confessar minha felicidade de poder contar com eles em ambos os lugares. Como as notícias boas nunca são demais, meu primeiro texto infantil, O Dia Das Crianças, está quase pronto para estrear. Trata-se de uma produção dos Satyros - a primeira experiência do grupo com um texto infantil. Dirigida por Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vazquez, o Dia das Crianças traz no elenco um time de primeira: Gaion, Penna, Frampton, Cléo, Zeza e Thiago. O Ivam, o nosso atual maluco beleza, resolveu convidar algumas celebridades para participar da peça por meio de gravações em vídeo. Até o momento, Claudia Raia, Marcelo Médici, Dan Stulbach, Denise Fraga, Adriane Galisteu, Renato Borghi e os Parlapatões já toparam. Com isso, O Dia das Crianças promete nascer como o espetáculo infantil com o elenco mais famoso do mundo!
Ao lado de tudo isso, continuei com minhas reportagens na Revista Bravo e no Diário do Comércio e com minha participação na equipe que está criando o Curso Superior de Artes Cênicas do Senac.
Depois de tudo isso, talvez as pessoas não concordem comigo quando eu digo que sou um pouco preguiçoso. Mas no fundo, sou mesmo.
E também vou prometer uma coisa: a partir de agora, eu gostaria de usar este espaço para falar menos de mim e mais do mundo. Ou, talvez, para falar mais do mundo a partir do meu ponto de vista - o que, de alguma forma, não deixa de ser falar de mim mesmo. Mas não queria que estes apontamentos, anotações, impressões ou sejá lá o nome que isso venha a ter, sirvam apenas para orbitar em torno do meu próprio umbigo.