quinta-feira, maio 10, 2012

O tempo entre duas vozes




No último sábado, dia cinco, algumas horas antes do início da Virada Cultural, a cantora Maria Rita levou 60 mil pessoas ao Parque da Juventude, onde, pela primeira vez em dez anos de carreira, decidiu se arriscar pelo consagrado repertório da mãe, Elis Regina. Não fui, mas acredito que pelos ingredientes envolvidos no evento deve ter sido emocionante. Um amigo que esteve lá disse que a cantora chorou várias vezes durante a apresentação – no que foi acompanhada por milhares de fãs. É compreensível.

Assisti a três shows de Maria Rita, todos antes de ela gravar o primeiro CD e imediatamente se tornar uma das cantoras mais famosas do País. Assim, pelas minhas contas, há pelo menos uns oito anos que não a vejo ao vivo. Tive, também, a oportunidade de entrevistá-la numa época em que a curiosidade sobre a sua figura era assustadora (se é que em algum dia deixou de ser). A entrevista foi agendada pelo grande músico e amigo querido Chico Pinheiro. Estávamos em 2002 ou 2003, não sei ao certo, e Maria Rita, sem discos gravados e sem o rosto na tevê e nas revistas, fazia uma participação especial nos shows do Chico – aparecia lá pela metade, cantava duas ou três músicas, deixava a plateia em estado de choque e saía do palco balançando o corpo de uma maneira que todos, por mais materialistas e descrentes que fossem, passassem a acreditar em reencarnação.

A entrevista, de no máximo vinte minutos num fim de tarde, foi feita nas mesinhas do saudoso bar Supremo, na esquina da Consolação com Oscar Freire, onde ela, Chico e a também cantora Luciana Alves se apresentariam logo mais à noite. Cavalheiro até não mais poder, Chico Pinheiro chegou antes de Maria Rita, me chamou no canto e, cheio de dedos, perguntou se a entrevista poderia se concentrar no trabalho de Maria Rita – e não nas recordações da mãe famosa. Maria Rita chegou logo depois, sentou-se na minha frente e me deixou visivelmente encabulado. Evitei falar da mãe, claro, mas não consegui deixar de encarar aqueles olhinhos ligeiramente estrábicos – um olhar que o Brasil inteiro se recordava de ver no rosto de outra pessoa.

Fui ao show daquela noite na companhia dos jornalistas e amigos Alberto Guzik, Regina Ricca, Bárbara Oliveira e da atriz Tuna Dwek. O Supremo estava abarrotado – o que significa dizer que havia ali no máximo cem pessoas. Chico começou o show com sua habitual competência e o bom gosto de repertório que tem sido sua marca desde sempre. Só que havia uma certa tensão no ar, uma eletricidade que perpassava todos os presentes, aquela sensação que temos na iminência de receber uma notícia que ainda não sabemos se será boa ou má. E então entrou Maria Rita.
O que se passou ali durante as três breves músicas que ela interpretou talvez mereça, algum dia, um post à parte. Antes de começar a segunda canção, ela olhou para a plateia e pediu: por favor, vocês não vão me fazer chorar, hein? Ao que Tuna Dwek emendou: mas É você que está fazendo a gente chorar. A recordação que guardo é de que não foi exatamente um show – por alguns momentos, cada um de nós parece ter sido conduzido para uma outra época, um outro local e provavelmente na companhia de outras pessoas. Não sei se fomos para algum lugar melhor, só sinto que para algum lugar nós fomos.

Quando o show terminou, aceitei o convite do Alberto Guzik para tomar um café. Coisa rápida, ele me garantiu. Sentado em uma das mesas do Frans Café, ali na Haddock Lobo, Guzik confessou que ao ouvir Maria Rita ele não tinha parado de pensar na Elis Regina (até aí, ele e a estação da Sé do metrô às seis da tarde). Mas não exatamente na cantora e em seu repertório – e sim no que havia sido a vida dele naquele hiato de 20 anos, do desaparecimento da mãe ao surgimento da filha. Entre estas duas vozes, ele me disse, muita gente foi embora da minha vida. Eu sabia ao que ele se referia. E finalmente derramou todas as lágrimas que represara durante o show.

Agora já se passaram mais dez anos desde aquela noite. E o próprio Guzik entrou para o time dos que foram embora. Mas pensar naquela noite, naquele show e naquela conversa não me deixa triste. Saudosista um pouco, mas triste, não. Otimista que era, tenho certeza de que, se o café tivesse durado mais um pouco, Guzik também teria falado das pessoas que entraram na vida dele e que, até onde eu sei, eram pelo menos em número maior do que as que haviam partido. Já que a vida é isso mesmo, esta eterna despedida de pessoas queridas e esta eterna chegada de outras pessoas igualmente queridas, no fundo é uma benção que todo este entra-e-sai possa ter, de vez em quando, a voz da Elis (tá bom, e da Maria Rita também, vai...) como trilha sonora.