segunda-feira, março 30, 2009

Ela é tão boazinha...

Depois de assistir, na noite de domingo, ao mais recente filme do diretor inglês Mike Leigh, a comédia Simplesmente Feliz, cheguei à triste conclusão que deve ser mais fácil ter como companhia amigos preocupados ou mesmo levemente deprimidos do que ser obrigado a passar algumas horas ao lado de alguém como a professora primária Poppy, interpretada no filme com muita eficiência pela premiada atriz Sally Hawkins. Nada parece estar ruim para Poppy, mesmo quando as coisas não vão bem. Ela desfila pelas ruas de Londres coberta por um figurino tropicalista e distribuindo sorrisos aos cachorros, aos mendigos, aos vendedores mal humorados e a quem mais cruzar o seu caminho de cara amarrada.

Todo mundo já deve ter visto algumas pessoas ostentando no peito um button onde se lê: quer emagrecer, me pergunte como. Pois Poppy é como um gigantesco e animado button em forma de gente a perguntar: quer ser feliz, me pergunte como. O grande problema de Poppy é sua insistência em animar o dia daqueles que parecem viver muito bem debaixo de nuvens escuras. Acredito que até a rabugice alheia merece respeito quando ela não é gratuita. A felicidade de Poppy é, antes de mais nada, invasiva. Em resumo, trata-se de um personagem chato, muito chato, um manual de auto-ajuda que insiste em se revelar mesmo à nossa revelia.

Saí do filme com a convicção de que tudo que chega até nós em demasia enjoa depressa. Ainda que seja a alegria. Sei que ninguém gosta de ter por perto um amigo eternamente baixo astral e reclamão. Mas a incurável felicidade de Poppy, que ela se esforça por transformar em algo contagioso, também não é fácil de tolerar. Diretor tarimbadíssimo, Mike Leigh não escorrega no clichê de fazer com que os outros personagens do filme perguntem a Poppy como ela pode ser tão feliz em um mundo aparentemente tão hostil. O problema não está em contrapor a felicidade de Poppy às crianças que passam fome ou aos inocentes que morrem nas guerras. O personagem tem algo a seu favor: ela é feliz independente do mundo em que vive. Ou apesar do mundo em que vive. Em compensação, há algo de muito previsível em sua personalidade também: ela sempre vai estar bem, ainda que o dinheiro acabe, a solidão avance e a idade comece a apresentar suas inevitáveis faturas.

Em resumo: deve ser chato conviver com Poppy não por causa de sua previsibilidade, sua insistência em fazer trocadilhos e piadas infantis, seu sorriso cimentado no rosto e sua beatitude perigosa. Deve ser chato conviver com Poppy porque, antes de qualquer coisa, ela não é humana. Uma das coisas legais dos amigos, imagino eu, é a gente não ter a certeza de como eles vão estar na manhã seguinte, o que sempre exige de nós criatividade, atenção redobrada e muito, muito carinho com eles. Caso contrário, a gente combinaria de encontrar com eles na igreja, e não nos botecos.

sexta-feira, março 27, 2009

Bom só na memória

Há muitos anos, a namorada do meu irmão, com quem ele viria a se casar algum tempo depois, deu de presente para minha mãe uma caixa de figos cobertos com chocolate da Kopenhagen. Na época não havia loja da Kopenhagen em Jundiaí, onde eu morava, e então aquela caixa de figos foi saudada como uma iguaria de um outro mundo. Não sei se aquela embalagem luxuosa, com papel celofane e fitas de veludo, trazia dez ou doze figos, mas me lembro muito bem que eles foram consumidos com uma parcimônia religiosa – saboreados talvez com a mesma delicadeza que Proust dedicou às suas madeleines.

Durante muito tempo aqueles figos alimentaram minhas memórias degustativa e emocional – mais do que um doce, eles serviam como referência de alguma coisa muito boa em uma época que, provavelmente, tivesse sido muito boa também. Por um destes mistérios da lembrança, depois daquele dia eu viria a entrar centenas de vezes nas lojas da Kopenhagen, atrás de chocolates, cafés, capucinos, sorvetes, bombons e aquelas garrafinhas de chocolate recheadas de licor. Nem me lembro de quantas vezes presenteei meu pai com os chocolates desta marca. Mas nunca, nunca mesmo, meus olhos procuraram pelos figos cobertos de chocolate. Na minha cabeça, era certo que eles não existissem mais.

Semanas atrás, eu estava tomando café na loja da Kopenhagen da rua Purpurina, na Vila Madalena, com o amigo Márlio Vilela, psicanalista que, um pouco por dever do ofício, um pouco pela curiosidade natural pela alma humana, parece se deliciar com estes fiapos de memória que às vezes a gente deixa vir à tona. Contei a história dos figos para ele e levantei-me para pedir um outro café. Então desviei o olhar para uma vitrine à minha esquerda e constatei, na última prateleira inferior, a inacreditável presença de uma bandeja forrada com aqueles figos. “Mas eles não tinham saído de linha?”, perguntei à vendedora. Ela me respondeu que não, apenas não eram mais vendidos em embalagens. Agora podiam ser comprados assim, soltos. Durante todos estes anos devo ter esbarrado incontáveis vezes nos figos de chocolate e nunca notara a presença deles.

Pedi um, no mesmo instante. Eles agora são vendidos por peso. O meu pesou pouco mais de 50 gramas e custou absurdos R$ 9,60. Em outra situação, eu teria recusado, mas havia tanta coisa em jogo que resolvi desembolsar quase dez reais por um único figo. Ao levá-lo à boca, toda aquela lembrança foi imediatamente implodida: o figo era completamente ressecado e o chocolate que o recobria esfarelou-se no primeiro contato com os meus dentes, partiu-se em minúsculas faíscas que escorregaram pela minha camisa até chegar ao chão.

Então eu pensei se era por causa daquela coisa mais sem graça que eu tinha me enganado durante tantos anos. Prefiro acreditar que não. Voltei à mesa e comentei com o Márlio que talvez fosse melhor não cutucar tanto o passado assim. O bom de algumas lembranças se dá exatamente por isso: são só lembranças. E não precisam ser ressuscitadas. Não mesmo.

quarta-feira, março 25, 2009

Sobre o Pekin e outros miados

Esta semana morreu o Pekin, o gatinho de olhos azuis do amigo Alberto Guzik. Pekin estava com 20 anos, o que fazia dele uma espécie de Oscar Niemeyer entre os felinos. Não sei qual critério os veterinários adotam para estabelecer a equivalência entre a idade de cães e gatos e a idade dos humanos. Mas, se tais critérios forem realmente válidos, Pekin já era um respeitado senhor de 98 anos, um velhinho serelepe que até semana passada conseguia dar alguns saltos ainda graciosos. Guzik comunicou a morte do Pekin por meio de um post emocionado, uma declaração de amor que nem todo mundo é capaz de entender. Ele terminava o post agradecendo ao gato pelos 20 anos de amor e companhia. Se Pekin pudesse ler o post, talvez tivesse, com a cauda em riste, respondido algo do tipo: “Que é isso, Alberto! Eu sim é que tenho de agradecer por um século de carinho e bons tratos. O débito é meu”.

Resolvi falar do Guzik e de sua relação com o já saudoso Pekin (que eu conheci durante mais da metade da sua vida) porque foi por meio deles que eu finalmente criei coragem para trazer um gato para dentro da minha casa, o Chiquinho, um persa de pelos amarelados e extremamente ciumento. Sei que eu não deveria atribuir aos animais sentimentos típicos dos seres humanos, como o ciúme, mas quem tem bicho em casa vive se esquecendo de que talvez a cabecinha deles funcione a partir de outros valores. Eu sempre gostei de animais, desde que me dei por gente. O primeiro presente que pedi ao meu pai, presente mesmo, foi um cachorro. Eu tinha três anos. Como meu pai demorasse a atender o pedido, meu avô intercedeu por mim e um dia apareceu em casa com um filhotinho vira-lata, magro e pulguento, a quem eu batizei com o óbvio nome de Bob – e Bob conviveria com a gente pelos próximos 17 anos. Durante este longo reinado de Bob em nossa família, tivemos muitos gatos também – mas os gatos sempre foram amores passageiros. Um belo dia, eles saíam para caçar ou namorar e nunca mais voltavam. Eles não se viam exatamente como bichos de estimação – cheios de si e orgulhosos de sua autonomia, eles eram no máximo visitantes de luxo que um dia arrumariam as malas para sempre.

Por isso, quando me mudei para São Paulo o que eu queria mesmo era a fidelidade de um cachorro. Por sorte, abandonei esta idéia ao perceber o quanto o bicho ficaria sozinho em minhas longas ausências para trabalhar. Eu ficaria feliz por ter um cachorro, mas nenhum cachorro seria feliz por ter a mim como dono. Então foi observando Pekin que eu descobri que os gatos podiam ser bichos bacanas também. E num sábado de carnaval eu decidi comprar o Chiquinho em um pet shop de Moema. Ele mais parecia um bibelô – eram dois olhinhos amarelos espremidos numa cara sem focinho. E pelos, muitos e longos pelos. Chiquinho precisou de menos de uma semana para mostrar que tudo que eu pensava sobre os gatos era mentira. Gatos não são carinhosos? Mentira. Não se apegam ao dono? Faz-me rir. São interesseiros e calculistas? Bobagem pura. Chiquinho se adaptou totalmente aos meus horários: se eu passava a noite em claro, lá estava ele ronronando ao meu lado; se eu levantava cedo, ele também pulava cedo do sofá; se eu demorasse meia hora no banho, ele ficava meia hora com o focinho colado ao boxe do banheiro. Um grude total.

Um dia eu falei sobre isso com o Guzik. Reclamei, vejam só que idiotice, que o Chiquinho gostava demais de mim e não largava do meu pé. Logo eu, que achava que tinha comprado um bicho independente. Guzik então me respondeu (e talvez nem se lembre mais da resposta) o seguinte: você é a única referência de vida que ele tem. Se ele não gostar de você, vai gostar de quem? Daquele dia em diante, passei a me sentir muito mais responsável pelo Chiquinho. E, na medida do possível, tentei retribuir tanto carinho e atenção, mas até hoje desconfio de que não fui capaz.

O tempo passou, Chiquinho virou um lindo macho adulto e gordo e eu precisei passar umas semanas fora. Levei o gato para Jundiaí, na casa dos meus pais, onde ele descobriu uma série de prazeres que iam muito além da minha pessoa: o quintal, a grama, o sol no fim da tarde, a terra sob as patinhas, o capim preso no pelo, as borboletas, os pardais, a companhia de uma gata safada e a amizade improvável de Naná, uma fêmea de pastor alemão em cujo colo ele aprendeu a dormir – e ela gentilmente permitia. Se ele pudesse dizer alguma coisa naqueles dias, seguramente diria que era o gato mais feliz do mundo.

Até que numa manhã de terça-feira Chiquinho foi encontrado em um terreno baldio, no fundo da casa dos meus pais, ferido de morte: ninguém sabe se foi uma pedrada, uma paulada ou mesmo o ataque de um cachorro que tinha partido ao meio sua coluna. Ele morreu na hora do almoço, no colo da minha mãe, sem dar um único miado de dor. Um lorde até o fim. Tinha seis anos de gato e uns 40 anos de gente, se os veterinários estiverem mesmo certos. Só uma coisa, um detalhe talvez bobo, me deixa um pouco triste quando eu me recordo desta história: é desconfiar que apesar de toda a independência e egoísmo que costumam erroneamente atribuir aos gatos, Chiquinho dedicou mais amor a mim do que eu a ele. Mas eu aprendi a lição.

terça-feira, março 24, 2009

O novo outro

Durante minha vida toda, entendi o pronome outro apenas como o contrário de este. Sempre foi fácil compreendê-lo e empregá-lo no dia a dia nas suas mais variadas formas. Por exemplo: você está com um amigo no estacionamento do shopping e pergunta: hei, não é este o seu carro? E ele responde: não, é outro. Simples assim. Os tempos atuais, no entanto, encontraram um novo valor para o pronome outro. Hoje, o outro compreende tudo aquilo que não somos nós, que se afasta das nossas crenças e convicções. O outro agigantou-se e ganhou novos formatos e usos. Por consequência, tornou-se mais difícil agora compreender tudo aquilo que o outro nos tenta dizer.

O bom é que não precisamos estar necessariamente sozinhos neste novo aprendizado. Em nosso socorro, surgem três belos filmes em cartaz na cidade que resolveram abordar justamente o outro. Sobre o primeiro deles, Entre os Muros da Escola, eu já falei aqui semana passada. E fico feliz de saber que o filme tem provocado uma série de debates entre educadores e alunos. Não tive a chance de assistir a nenhum destes debates (alguns estão sendo até noticiados pela grande imprensa), mas torço para que estas discussões sejam capazes de apontar um caminho eficiente para a escola pública. Um caminho que preserve a dignidade de quem ensina e o prazer de quem aprende. Não me parece que seja uma equação tão difícil de ser solucionada.

Se Entre os Muros mostra a rotina cruel de uma escola multirracial na periferia de Paris, o segundo filme, O Visitante ,fala de um jovem imigrante sírio que tenta levar uma vida honesta e dedicada à música em um Estados Unidos ainda traumatizados pelo 11 de setembro. Completa a lista o último longa de Clint Eastwood, Gran Torino, sobre um americano idealista , ranzinza e reacionário que, após lutar na Guerra da Coréia e trabalhar durante 30 anos na linha de montagem da Ford, vê seus filhos comprando carros japoneses e seu outrora pacato bairro ser ocupado por imigrantes asiáticos – com os quais não pretende levar adiante nenhuma tentativa de diálogo.

Não são filmes felizes, longe disso. De uma maneira particular – e bastante eficaz nos três casos – os filmes falam, acima de tudo, daquele instante em que um elemento estranho passa a fazer parte da nossa realidade – com sua pronúncia cheia de sotaques, seus hábitos exóticos, sua culinária incompreensível e seus valores que pouco parecem ter a ver com os nossos. O choque é inevitável e de proporções muito severas às vezes. Se se limitassem apenas à descrição precisa deste momento inicial em que o mocinho branco e loiro estranha a presença do mocinho de olhos rasgados ou pele morena, os filmes não cumpririam uma função que eu acredito até terapêutica. Felizmente, eles vão além. E mostram de que maneira o outro, recebido a princípio com tanta hostilidade, pode preencher a nossa experiência de vida com algo que nem supúnhamos existir. Este lampejo de otimismo não fica tão claro no filme francês sobre a escola – talvez por ser quase um documentário mais preocupado em retratar uma instituição do que a sutileza das relações humanas.

Mas em O Visitante e Gran Torino chega a ser quase prazeroso deixar o cinema mesmo sem ter encontrado um final tipicamente feliz – ou ao menos aquele ideal de felicidade que o cinema está acostumado a nos oferecer. Percebo agora que não são filmes que nos acenam com a possibilidade de um mundo idílico. Ao contrário: eles escancaram o tanto de dor e injustiça que está logo ali do lado de fora. Mas nos asseguram, e isso vale o ingresso e o estacionamento, que, como um cão farejador, o ser humano ainda consegue encontrar uma brecha de amor, esperança e redenção antes que o “the end” desponte na tela.

domingo, março 22, 2009

Além do horizonte

Penso na minha vida e na dos meus amigos mais próximos e chego à conclusão otimista de que as coisas vão bem. Não que elas aparentemente estejam bem, mas vão bem de verdade. A crise não tirou o emprego de nenhum de nós, ao contrário, vejo que todos temos projetos em demasia até; a saúde, se não formos tão rigorosos e concordemos em deixar de fora a insônia comum a quase todos nós, também não oferece grandes preocupações; alguns estão amando, outros estão sendo amados e nem se dão conta disso; nenhum de nós, por fim, parece carregar grandes cicatrizes. Dito isso, era de se esperar que a vida fosse uma grande e diária celebração, mas eu sinto que não é. Nossa contabilidade emocional parece estar no azul, mas ainda assim nos queixamos. E nos queixamos muito até. Nos queixamos todos os dias, sozinhos e acompanhados. E isso me faz pensar muito sobre o que estaria na raiz da nossa insatisfação. É como se a queixa nos credenciasse a participar de uma sociedade imperfeita. Ora, talvez pensemos, se o mundo anda tão complicado e se nós fazemos parte dele, então é normal que nos sintamos complicados também. Mas é possível que não haja muita lógica neste pensamento.

Os anos de vida e as centenas de horas gastas na terapia já me ensinaram que nunca conseguiremos mesmo encontrar a tampa para este poço. O menor dos nossos desejos irrealizados parece se tornar mais urgente do que o grande número das nossas conquistas. É como se estivéssemos condenados a sofrer sempre pela ausência de alguma coisa que nos parece essencial, ainda que não saibamos, na maior parte do tempo, que coisa realmente seja esta. Então eu penso se, num absurdo exercício de egoísmo (como se isso fosse possível) nós deveríamos virar as costas para tudo aquilo que acontece de chato no mundo, ainda que por enquanto não nos afete diretamente. O planeta está se aquecendo? Eu compro um ar condicionado. A pedofilia cresce de maneira assustadora? Eu não tenho filhos. O tráfico faz cada vez mais vítimas nos morros cariocas? Eu moro bem longe. Um terço da população da Terra passa fome? Minha geladeira está bem suprida. Existe cada vez mais corrupção na política? Eu deixo de ler os noticiários políticos.

Toda esta improvável alienação nos faria diferentes do que somos hoje? Nos deixaria mais blindados, mais seguros, mais estranhamente felizes? Eliminaria os sobressaltos dos nossos sonhos? Espantaria os ataques de melancolia que nos visitam até no meio de uma balada? Não sei a resposta. Da mesma forma que meus amigos, a quem a vida ainda está mostrando seu perfil mais sorridente, também não devem saber.

Às vezes eu penso que viver, no fundo de tudo, seja mesmo esta busca interminável por alguma coisa que nunca vamos saber o que é. O nosso Santo Graal particular. Eu torço para que, ao longo deste caminho obsessivo que começamos a percorrer no momento em que nascemos, a gente não feche os olhos para as pequenas pérolas e os inúmeros brindes que vão surgir aqui e ali. Já que a arca com o tesouro completo, que acreditamos haver lá no final, é bem provável que ela nem sequer exista. Mas seguir determinados em sua busca, me parece, é o que nos mantém vivos. Ainda bem.

quarta-feira, março 18, 2009

Cartão de ponto

Quem mora sozinho e trabalha em casa precisa tomar muito cuidado para não dar bom dia à samambaia de vez em quando. Eu poderia enumerar vários prazeres que estão ao alcance de quem tem o escritório a cinco passos da cama – a gente se esquece de que vive numa cidade com trânsito muito ruim, o horário de almoço é a gente que faz, a hora de encerrar o expediente é a gente que determina e, para onde quer que a gente olhe, jamais avista a figura do chefe. Mas eu confesso que, em alguns dias, tudo isso faz um pouco de falta. Não é sempre, mas às vezes faz. Depois de cinco anos trabalhando em casa, talvez eu sentisse uma dificuldade grande em me habituar novamente à rotina das redações de jornais – ainda que, repito, aquela adrenalina toda, aquela cobrança por resultados e cumprimento de horário e até os plantões de fim de semana fazem qualquer um se sentir mais pulsante e integrado do que quem trabalha sozinho em casa. O que me incomoda um pouco nesta minha atual fase profissional é justamente a falta de bate-bola com um colega, alguém a quem você possa perguntar o que ele acha do seu texto e da sua apuração, do seu título e da abordagem que você deu a determinada matéria. Sinto falta deste tipo de retorno e, para compensar, procuro trabalhar com atenção redobrada para que eu seja meu próprio crítico e jamais deixe de acreditar que sempre é possível melhorar o resultado de um produto.

Semana passada ocorreu o seguinte: eram quase quatro horas da tarde e eu não tinha conversado com ninguém ainda. Estava escrevendo uma matéria grande cuja apuração eu havia feito nos dias anteriores – era o típico dia do trabalho essencialmente solitário. Então toca o telefone e eu, animado por botar as cordas vocais para funcionar, atendo com muita disposição. Era uma moça muito educada, funcionária de um instituto de pesquisa que estava fazendo um levantamento sobre a satisfação dos clientes com o serviço bancário. Logo de início ela me garantiu que não iria me vender nada e que ocuparia apenas cinco minutos do meu tempo com perguntas absolutamente profissionais.

Bom, não era exatamente o tipo de papo que eu estava esperando ter, mas na falta de um telefonema mais excitante, fiquei antecipadamente feliz com os cinco minutos de conversa que me aguardavam.

Primeira pergunta da moça: sua faixa etária está entre 30 e 50 anos? Respondi que sim

Segunda pergunta: sua renda mensal é de no mínimo 12 mil reais? Respondi que não.

“Então muito obrigado pela atenção, senhor”, ela me disse. “Infelizmente o senhor não se encaixa no nosso perfil de entrevistado”. E despediu-se de mim com a mesma polidez com que se apresentou.

Senti vontade de correr para os classificados e procurar um emprego na mesma hora, de preferência num lugar com muita gente. Mas daí a pouco passou.

segunda-feira, março 16, 2009

Quadro negro

Eu havia prometido a mim mesmo que não iria assistir aos documentários Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore, A Última Hora, produzido e narrado por Leonardo DiCaprio, e O Planeta Branco, sobre a vida (ou o término dela) no pólo norte. Acabei vendo os três. Estes filmes que anunciam o fim do mundo me deixam seriamente deprimido, porque eu acredito neles. Não que eu pense que o mundo vá terminar como um todo, mas sinto que este mundo, tal como a gente o conhece, parece estar mesmo com os dias contados. Sinto que esta é a nossa verdadeira ameaça, e não a crise, os conflitos políticos e as guerras religiosas. A batalha para recuperar o planeta – que muitos já anunciam perdida – promete ser mais traumática do que todas as guerras que já enfrentamos.

Mas eis que ontem entro no cinema para ver Entre os Muros da Escola – sem saber que estava diante de um verdadeiro filme-catástrofe. Nem Al Gore e suas previsões fatalistas foram capazes de me provocar tamanho mal-estar quanto este filme francês. A realidade daquele professor de francês em uma escola pública de Paris, às voltas com uma turma de adolescentes em que o mais bonzinho não pensaria duas vezes caso tivesse de matar a própria mãe, quase me fez sair do cinema. E eu ficava me perguntando, a todo momento, o que é que estava me incomodando tanto. Percebi que mais do que geleiras derretendo ou ursos brancos sem território para caçar e viver, Entre os Muros já nos revela um mundo que acabou bem antes do pólo norte. E este mundo que acabou era o mundo em que, bem ou mal, fomos criados com alguma noção de respeito, civilidade e convivência. Entre os Muros nos assegura que a guerra já começou e só não se dá conta disso quem não quiser.

O filme, no meu entendimento que ainda está se processando, parece ser uma miniatura cruel da época de intolerâncias que estamos atravessando e que não se limita às salas de aulas. Não fiquei assustado por tudo aquilo estar ocorrendo na França, país notório por sua diplomacia e seu apego ao diálogo e à razão. Fiquei assustado porque aquilo deve estar ocorrendo no mundo inteiro. Fiquei me lembrando dos meus tempos de ginásio, também em escola pública, e vi que o que mantinha a nossa disciplina e o nosso interesse nas salas de aula não era o medo dos castigos e da reprovação no fim do ano. Éramos disciplinados, ordeiros e até certo ponto submissos porque acreditávamos não exatamente na autoridade do professor, mas na sua capacidade de transmitir conhecimento. Nós os respeitávamos, acredito eu, porque tínhamos a certeza de que não estávamos perdendo tempo ali, e que ele, o professor, era alguém acima de tudo útil em nossas vidas, alguém que tinha algo de muito valioso a nos ofertar. Em troca do conhecimento dele, entrávamos com nossa dedicação, nosso silêncio e nosso respeito. Era uma troca que, de novo sob o meu ponto de vista muito particular, era vantajosa para os dois lados. A nossa colaboração em troca de conhecimento.

Entre os Muros mostra a derrocada deste sistema – sem que tenha surgido algo melhor para entrar em seu lugar. É ruína e só. O mais assustador do filme é a certeza expressa por todos aqueles alunos de que a escola não tem absolutamente mais nada a lhes ensinar – e talvez não tenha mesmo. E então a gente se lembra de todos aqueles professores que tiraram nota zero e vão continuar lecionando aqui em São Paulo e é nesta hora que o filme se torna visionário. Se acabou a escola – aquela extensão da nossa casa onde vamos aprender realmente o que interessa naquela idade – o que é que restou?

Hoje, ao conversar com um amigo que também viu o filme, ele me recomendou pensar melhor em tudo isso. “Calma”, ele me disse. “Não é a França que vai salvar aqueles alunos aparentemente desordeiros. São aqueles alunos que vão salvar a França e o resto do mundo. Temos de prestar atenção no que eles têm a dizer. Eles são a nossa única salvação possível”. Sinceramente não sei. Meu primeiro impulso foi sentir uma raiva tão danada daquela pirralhada toda que não sei se quero ser salvo por eles....

quinta-feira, março 12, 2009

Vala comum

Um tablóide americano publicou hoje uma foto estarrecedora do ator Patrick Swayze. Devastado pela quimioterapia empregada no combate a um câncer de pâncreas, o ator em nada lembra o galã do filme Ghost: está completamente careca, macérrimo e envelhecido. Obviamente, é o tipo de foto tirada sem o consentimento do ator. Por maior que seja o desapego de qualquer pessoa pela imagem, é difícil acreditar que alguém aceite posar em circunstâncias tão frágeis para a capa de um jornal sensacionalista. No entanto, muito mais triste que a imagem, é a manchete que o jornal estampou, em letras maiúsculas: THE END (É o fim). Talvez o zeloso jornaleco conte com oncologistas em seu conselho editorial que, após examinar a foto em questão, tenham dado a sentença de que o ator estaria em seus últimos dias. É o tipo de manchete que me faz perguntar: para quê? Aumentaram as vendas do tablóide nas bancas? Com certeza! Mas a que preço, não é mesmo? A imprensa tem o direito de fotografar uma pessoa doente e decretar em manchete que ela está praticamente morta?

Então eu respondo: não tem, mas deve pensar que tem. Por um motivo simples: do outro lado do mar, uma jovem participante de um Big Brother inglês, também encontra-se em estado terminal, vítima de um câncer tão invasivo quanto o de Swayze. Só que a moçoila, contaminada muito mais pelo ambiente de reality show em que ela se criou do que pela doença em si, aceitou morrer diante das câmeras. E está recebendo uma grana alta por isso. A cada dia somos obrigados a ver nas páginas de rosto dos sites que ela já perdeu a visão e os cabelos, que não consegue mais se alimentar e que também ruma a uma velocidade assustadora para a morte. E a cada nova foto ou boletim médico, acredito eu, alguns milhares de libras são depositados em sua conta bancária. Representante máxima desta horrorosa sociedade de espetáculos em que vivemos, ela só vai largar o osso na hora em que fecharem o caixão. É triste demais, é deprimente demais.

A moça do Big Brother e Patrick Swayze: duas pessoas ainda jovens que estão morrendo do mesmo mal. Ela, de forma mórbida e espalhafatosa. Ele, ao que tudo indica, com muito mais nobreza e serenidade. No entanto, a mesma imprensa que paga fortunas pelas fotos assustadoras da ex-big brother moribunda, covardemente corre atrás de imagens do mesmo quilate do ator. Na hora da morte, a imprensa resolveu jogar os dois na mesma vala comum. E, com isso, este nosso mundo vai ficando cada dia mais nojento.

terça-feira, março 10, 2009

Parabéns pra você!

Eu sempre achei uma bobagem dizer que os ricos não deveriam fazer festonas em épocas de crise. Eu penso que quem tem dinheiro, havendo ou não crise, tem mais é que comemorar. Porque não vai ser uma festa que vai resolver o problema da distribuição de renda no Brasil e no mundo. Se eu fosse rico, talvez fizesse grandes festas também, porque é sempre muito bom ter os amigos por perto. Claro que a ostentação é algo que nos incomoda. Mas a gente vai exigir o que dos muito ricos? Que eles peçam para que seus convidados levem três latinhas de cerveja na festa? Ou que eles comemorem numa pizzaria em que a noite sempre termina em briga porque cada um tem de pagar pelo que consumiu? Sendo que quem vai embora antes sempre deixa menos dinheiro na caixinha! E quem não bebe odeia ter de pagar R$ 2,80 do chope que não tomou. Ou que os ricos convidem só metade dos amigos porque a casa é pequena e não cabe todo mundo? E ainda peçam assim para os convidados: olha, não comenta com ninguém, porque não deu para eu chamar todo mundo, sabe... Entre inúmeras outras coisas, o bom de ser rico é que eles não estão sujeitos a estas picuinhas. Eles chamam quem eles querem, gastam o quanto querem, bebem até não mais poder e, quer saber, os incomodados que se mudem. Porque dinheiro foi feito para isso mesmo, e quem acha que eles não devem comemorar, no fundo não passa de um pobre invejento.

Isto posto, revelo aqui minha total indignação com a festa que a empresária Lucília Duniz, uma das donas do grupo Pão de Açúcar, promoveu em sua mansão do Jardim Europa para comemorar os 80 anos da Hebe Camargo. Leio nos jornais que havia garrafas e garrafas de Chateau Petrus 1997 (estou copiando tudo da Folha de S. Paulo, porque nunca ouvi falar nestes vinhos), Chateau Haut Bergey 1994, Veuve Clicquot e vinho tinto português Quinta do Vale Meão – seja lá o que isso queira dizer.

Então eu pergunto: nesta época de crise, em que os bancos estão quebrando, as pessoas estão sendo demitidas, formam-se filas de sopa em Nova York e ninguém compra nada nas lojas, a Lucília Diniz esbanja esta fortuna numa festa e convida a Preta Gil, o Roberto Justus, o Luciano Huck, o Tom Cavalcante e o Julio Iglesias? Deus me livre! Como diria meu pai: já que é para gastar, vamos gastar com coisa boa! Ah, que desperdício de bebida, credo. Se eu tivesse uma garrafinha de cada bebida dessas aqui em casa, eu juro pra vocês que ia chamar gente bem mais bacana pra beber.

No meu aniversário, em setembro, eu convido todos vocês. Claro, se vocês puderem trazer três latinhas de cerveja cada um, eu agradeço muito. E não vai ter som, porque a síndica reclama. E seria ótimo se, antes de irem embora, vocês me ajudassem a dar uma ajeitadinha na bagunça, porque a faxineira não vem no dia seguinte. Ah, claro, não espalhem este lance da festa, porque minha casa é pequena e só posso chamar pouca gente. Pobre é uma merda!

domingo, março 08, 2009

Minha estreia como garoto-propaganda

Não me lembro de já ter dado uma de garoto-propaganda aqui, mas abro uma exceção porque o assunto é realmente de utilidade pública para solteiros e descasados. Creio que como toda pessoa que mora sozinha, eu adoro fuçar as prateleiras dos supermercados em busca de novidades culinárias. Principalmente as que dizem respeito a pratos prontos e embalagens individuais. Esta seção dos supermercados me atrai muito mais que as vitrines da Tiffany’s, é sério. Pois esta semana o Grupo Pão de Açúcar começou a vender uma linha de pratos prontos chamada Fugini – há feijoadas, risoto com champignon e lasanha. Preste bem atenção para não errar: são umas bandejinhas com embalagem cor de laranja e verde, fáceis de manusear e que trazem duas importantes advertências: não necessita de refrigeração e não contém conservante. Vi aquela imensa prateleira e pensei: minhas noites estão salvas para o resto da vida.

Além de tudo, é muito fácil de fazer: você chega em casa, retira parcialmente a embalagem plástica e coloca no microondas por dois minutos, tempo suficiente para que você apanhe os talheres, o guardanapo, o prato e um copo de refrigerante. E então o microondas apita – indicando também que sua fome chegou ao auge. Agora, tudo que você tem a fazer é abrir o cesto de lixo e jogar tudo fora. Minha querida amiga, que hoje comemora o Dia Internacional da Mulher: a linha Fugini é a coisa mais horrorosa que eu já coloquei na boca – e olha que eu servi o Exército e, durante um ano, comi comida de soldado. Mas não há nada no mundo que se assemelhe ao gosto de plástico estragado do risoto de champignon da Fugini. E sem falar que, além de ruim de doer, não há um único grão de arroz mais rebelde que aceite se separar daquele bolo disforme em que se transformou o meu risoto.

Graças a Deus eu tinha dois ovos na geladeira, um pedaço de queijo, duas laranjas e uma caixa inteirinha de Bis. Reconheço que não é um menu dos deuses, mas salvou o meu jantar. E é muito mais honesto que aquele risoto homicida.

quinta-feira, março 05, 2009

Frente a frente

Pelo visto, a atriz Suzana Vieira não estava brincando quando disse, há poucas semanas, que já sentia-se pronta para namorar novamente, após a morte do seu ex-companheiro. Nos últimos dias, jornais, revistas e sites publicaram fotos da atriz com seu novo namoradinho, um ator de 26 anos, se não me engano.

Eu acho, na verdade, que o grande sonho de Suzana Vieira é ser como a personagem de Cate Blanchet no filme O Curioso Caso de Benjamin Button: quanto mais ela vai ficando velhinha, mais o namorado vai ficando criança.

Não vai causar espanto se, daqui a algum tempo, a gente ler uma legenda deste tipo numa foto da revista Caras: “Suzana Vieira aproveita o sábado de sol para levar seu novo namoradinho tomar a segunda dose da vacina Sabin”.

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Apesar de tantos anos de jornalismo, ainda fico intimidado diante de algumas entrevistas. E olhem que minha especialidade nunca me obrigou a enfrentar presidentes ou ministros de Estados. E nem me colocou no centro de algum grande furacão político ou econômico. Mas isso não me deixa menos assustado: alguns diretores e atores têm, sem exagero, status de presidente ou ministros dentro de suas respectivas carreiras. E eles, talvez pelo excesso de respeito profissional que eu lhes dedico, ainda me botam medo.

Há uns dois anos, a Revista Bravo me encomendou uma entrevista de seis páginas com Antunes Filho. Passei dias me preparando. Na noite anterior, sonhei que ele tinha ficado irritado com minha primeira pergunta e me colocado para correr na frente de todos os atores do CPT. Obviamente, cheguei muito nervoso à salinha que o Antunes ocupa no sétimo andar do prédio do Sesc Anchieta. Educadíssimo, ele me conduziu ao teatro, dizendo que preferia conversar lá. O papo foi tão maravilhoso que, lá pelas tantas, Antunes Filho pediu para que as luzes do palco fossem acesas e, durante meia hora, atuou como ator para que eu visse como era o seu famoso método de trabalhar com a voz. Era um teatro vazio: eu na platéia e Antunes no palco, indo da tragédia ao drama para o meu deleite egoísta. Foi uma dessas experiências que valem por anos de profissão.

Quando fui entrevistar Zé Celso, desta vez para a Revista Key, também uma matéria grande, fiquei nervoso do mesmo jeito. E novamente Zé Celso, com sua adorável verborragia e seu malabarismo corporal, transformou aquela entrevista num happening.

Esta semana, uma outra revista me encomendou um perfil de um outro grande (e com fama de inacessível) artista. A negociação para chegar até ele foi complicada – não posso dizer de quem se trata, pois a matéria ainda não foi publicada. A única coisa que posso adiantar é que me apresentei para a entrevista ainda mais nervoso que das vezes anteriores. E agora havia o agravante de que o local da conversa seria a casa do artista – o território onde a gente costuma reinar como um leão na savana. Assim que a empregada abriu a porta, ele veio me receber e disse assim: “Sérgio, como marcamos a entrevista para a hora do almoço, imaginei que você fosse chegar com fome. Mandei preparar suco de uva e uns salgadinhos. Espero que você goste. Estou à sua disposição”. Pronto, desarmei total.

E, durante duas horas, tive uma das conversas mais deliciosas da minha vida. O teatro me dá grandes alegrias, isso é inegável. Mas quando o jornalismo resolve ser generoso também, sai da frente.