quinta-feira, novembro 19, 2009

Labirinto

Terminei de ler Felicidade Conjugal, novela do escritor russo Lev Tolstói publicada em 1859 e estou me controlando para não reproduzir aqui a última página do livro, na minha modestíssima opinião uma das peças mais belas, simples e sensíveis da literatura universal. Em poucas palavras, Tolstói descreve com a maestria dos gênios uma sensação que todo mundo já deve ter experimentado ao menos uma vez na vida: aquela certeza de que algo mudou sem que as coisas tenham, efetivamente, mudado. A coisa, no caso da novela, é o amor. Um dia, a heroína da história, Mária, jovem da aristocracia rural casada com um proprietário de terras de 36 anos, um velho para os padrões do século 19, constata com dolorida aceitação e inevitável conformismo que o amor que ela sentia pelo marido metamorfoseou-se para sempre – ela continuava a ser a mesma mulher, ele o mesmo homem e nada de estranho havia ocorrido aos dois filhos do casal, ainda assim, o mundo que os dois conheceram estava irremediavelmente morto.

É uma constatação tão sutil, uma alteração tão ínfima no estado da alma da personagem que só mesmo um escritor superlativo poderia dar conta de tornar este relato não apenas verossímil, mas cruel e contagiante. Porque, se nos dermos a chance de pensar um pouco em nossas vidas, encontraremos a Mária que habita a nossa alma: um dia, assim como ela mas talvez com menos elegância, a gente também percebe que nada aconteceu, mas o mundo que conhecíamos até ontem também não existe mais. Alguma coisa se perdeu e se quebrou – nada que nos impeça de continuar a nossa caminhada. Mas só nós sabemos o quanto estamos mancando.

Depois que fechei o livro, fiquei pensando que talvez seja mais difícil ser escritor nos dias de hoje. Não porque tudo já teria sido dito, como atestam os niilistas. Mas porque nos tornamos mais incrédulos e de alguma forma desesperançosos, não só como leitores, mas como pessoas. Em uma das passagens de Felicidade Conjugal, por exemplo, Tolstói consome algumas páginas para relatar os sentimentos de culpa provocados na heroína por um mais que inocente beijo no rosto que lhe fora dado por um pretendente, quando ela já estava casada.

Claro, precisamos recorrer à moral da época para entender a auto-condenação que se instalou na mente da personagem. E a qual moral específica um autor da nossa era teria de recorrer para nos causar uma impressão semelhante? Sei que os escritores de agora contam com um repertório muito mais vasto do que aquele oferecido a Tolstói: podemos falar de coisas que ele nem imaginaria que fossem existir algum dia, como a internet, satélites, viagens espaciais, transplantes de órgãos, telefonia, efeito estufa, camada de ozônio e mais um sem número de novidades tecnológicas que, sejamos justos, não fazem frente à beleza da descrição de um sentimento humano. E é nisso, acredito eu, que devemos continuar apostando, porque é só o que nos resta.

Penso num amigo que, há algumas semanas, aventurou-se a escrever seu primeiro livro. Não o injevo. Em sua narrativa seca e contemporânea, que tem início com uma pomba se estatelando contra o pára-brisas de um táxi em alta velocidade pela marginal do Tietê, somos apresentados a uma garota de 17 anos recém-chegada do Sul com o sonho de se tornar modelo em São Paulo. Em sua primeira manhã na capital, enquanto sobe de elevador até o andar em que vive um modelo também em início de carreira e que irá hospedá-la, a garota se pergunta se deve dar para ele assim que chegar ou se seria mais conveniente tomar um banho e descansar um pouquinho antes. Tolstói precisou de mais de 100 páginas para que sua heroína fosse contemplada com um beijo que lhe queimou as faces e a alma. A heroína do meu amigo estava prestes a ir para debaixo dos lençóis já na terceira página de seu livro inacabado: e eu, primeiro leitor desta obra em processo, inconscientemente torcia para que ela transasse logo de uma vez e só depois pensasse no que faria da vida.

Tolstói soube muito bem o que fazer com sua personagem atormentada pelo beijo proibido e a conduziu por reentrâncias do espírito que ainda nos amedrontam. Meu amigo – e aqui não estou julgando o talento de um e outro escritor – escreveu para me dizer que não sabia mais o que fazer de sua heroína que já abrira as pernas na página três. Não porque ela fosse uma garota amoral ou desavergonhada: ela abrira as pernas porque, acima de tudo, era isso que esperávamos que ela fizesse. E, se não o fizesse, sairíamos por aí dizendo que havia algo de errado com um dos três: a garota que não deu, o carinha que não comeu, ou o autor que não colocou logo um em cima do outro. Nós temos pressa e nenhum tempo a perder com culpas, beijos no rosto ou delicadezas.

Tenho pena dos autores de hoje. Nós nos tornamos muito cruéis.

terça-feira, novembro 17, 2009

2012 - ou um pouquinho depois

Assisti ontem ao filme 2012. Mesmo para quem é fã de cinema-catástrofe, como eu sou, o filme é bem chatinho. E piora muito na meia hora final. Tudo bem que os efeitos especiais são bacanas – é impressionante ver a costa oeste dos Estados Unidos sumir do mapa em meio a terremotos e furacões e um pouco estranho ver o nosso Cristo Redentor despencar do Corcovado, em uma sequência que só consegue provocar risos na plateia. Nós, brasileiros, conseguimos rir até do apocalipse, bendita seja esta dádiva. Poderia ser um filme legal se não houvesse a eterna preocupação do cinema americano de mostrar que, antes de salvar o mundo, o mocinho tem de salvar seu casamento, seus filhos e principalmente sua moral desacreditada por conta de incontáveis erros cometidos nos anos que antecederam a catástrofe.

E então, diante de um mundo que já está recebendo a extrema-unção do Todo-Poderoso, um pacato e fracassado escritor consegue reunir a força de um Sansão à inteligência e astúcia de um Einstein – garantindo a sobrevivência de todos aqueles que lhe são caros. Grande porcaria. O fim de toda a nossa espécie, de toda nossa cultura e civilização serve apenas de pretexto para que o mocinho se reabilite diante da ex-mulher e dos filhos pequenos que já não o respeitavam. Se a intenção era só resgatar a moral do cidadão médio americano, os estúdios podiam fazer algo mais simples e economizar em efeitos especiais. Vai ver que, para a cultura americana, toda reabilitação moral deva ser comemorada com um tsunami.

Se há algo de interessante no filme é sua postura didática de reafirmar a nossa pequenez diante da natureza. O que não é novidade, eu sei. Qualquer ser humano pouco pretensioso sabe que, para o planeta, a nossa espécie deve valer tanto quanto a dos percevejos: basta uma coisinha de nada para que a gente desapareça como um dia os dinossauros e os mamutes também desapareceram. E olha que eles eram bem maiores e mais barulhentos que a gente. No filme, a temperatura no interior da Terra começa a subir assustadoramente, os pólos derretem, a crosta terrestre vira uma gelatina e todos nós, como se fôssemos uns torrõezinhos de açúcar, somos mergulhados nesta gigantesca e fumegante xícara de café em que o planeta se transformou. E pronto: a linhagem de primatas que culminou nas sinfonias de Beethoven, na pintura de Da Vinci e nos versos de Shakespeare recebe, enfim, seu ponto final.

Vejo o filme no dia em que os principais dirigentes do mundo anunciam que o acordo climático de Copenhague já nasceu morto. As emissões de gases de efeito estufa vão prosseguir, os países ricos querem continuar a ser ricos, os emergentes não querem desacelerar seu processo de industrialização e danem-se os ursinhos brancos que não têm mais nem um pedacinho de gelo em que se equilibrar. A destruição do planeta, para todos nós, vai continuar restrita às imagens dos bichinhos morrendo de sede e fome, às tempestades tropiciais que parecem atingir somente os nossos vizinhos, às nevascas que ficam lindas nas fotos dos turistas e ao calor insuportável que nos obriga a correr até as Casas Bahia em busca de ventiladores e aparelhos de ar condicionado. Qualquer decisão sobre o clima foi jogada para 2010 e o homem continua a tratar este mundo como se ele fosse eterno e inesgotável.

Acho válida a pretensão de qualquer país de se desenvolver e garantir uma vida de farturas e recursos para os seus habitantes. Mas, daqui a pouco, penso que teremos algum dinheirinho no banco, às custas deste desenvolvimento descabido, e não haverá em loja alguma ventilador que possa refrescar o nosso corpo e a nossa consciência. Não sou fatalista e nem acredito nestas bobagens de 2012 ou 2030. Tenho certeza de que o mundo não vai acabar antes de alguns bilhões de anos. O que eu acho, de verdade, é que um dia o planeta irá se cansar desta coceirinha irritante que fazemos no nariz dele e ele então soltará um grande e proposital espirro, nos empurrando para muiiiiiiiiiiiiiito longe e para todo o sempre. Espero que a espécie que venha a nos substituir, e ela virá, seguramente, seja um pouquinho mais esperta do que a gente conseguiu ser.

Soneto*

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio

*(Chico Buarque. De quem mais poderia ser, né?)

quarta-feira, novembro 11, 2009

Palavras cruzadas

Nunca tive a chance de perguntar aos amigos Alberto Guzik , Mário Viana e Marta Góes que, como eu, começaram a vida no jornalismo para algum tempo depois se dedicar à dramaturgia, se eles têm um olhar específico para as reportagens que produziram em suas carreiras, e um outro destinado às peças, contos e biografias que também saíram de suas mãos. Na verdade, o que eu gostaria de saber deles é se é possível a existência desses dois olhares e como cada um deles se comporta. Pode parecer uma pergunta trivial, mas acho que ela faz toda diferença do mundo. De sua resposta depende, acredito, o grau de satisfação (ou não) que sentimos diante de cada ponto final.

Como os três queridos amigos que citei acima, eu também fui treinado profissionalmente para dar conta do imediatismo. Por mais interessantes, informativos e saborosos que pudessem ser os nossos textos nos jornais e revistas em que trabalhamos, sabíamos sempre que eles estavam condenados a uma morte prematura. No caso das revistas, talvez tivessem eles uma sobrevida de poucas semanas, mas nos jornais diários nossos textos estariam irremediavelmente mortos na hora do almoço do dia seguinte. E isso porque construímos nossas carreiras antes da chegada avassaladora da Internet. Hoje, um repórter da mídia impressa sabe que, na maioria das vezes, seu texto não passa de uma bela criança natimorta: se ele conclui uma matéria às seis da tarde, ela já estará velha desde as cinco. Em pouco tempo, até os peixes exigirão ser embrulhados por notícias mais quentes e interessantes.

Me lembro de um episódio ocorrido quando eu era redator do Jornal da Tarde. A revista New Yorker havia publicado um artigo imenso sobre o maestro e arranjador Quincy Jones. O jornal adquiriu os direitos de publicação, traduziu o material e um editor pediu para que eu deixasse o texto no tamanho – o que vale dizer que 2/3 de todo aquele palavrório deveria ser cortado. Era um texto tão bem redigido e com as informações tão emaranhadas que, se eu cortasse uma linha aqui, ela iria fazer falta no parágrafo seguinte. Trabalhei dois dias na edição daquele texto. Quando entreguei o material pronto para o editor, estava feliz com o resultado: o que era realmente relevante no artigo sobre o maestro parecia estar ali. A matéria seria publicada no dia seguinte. Quando chego para trabalhar, às 11h da tal manhã seguinte, vejo as duas páginas com toda a história do Quincy Jones encharcadas e jogadas no bueiro. Havia chovido, parte do jornal desceu literalmente pelo ralo e justamente aquelas duas páginas estavam ali, para me alertar sobre a fragilidade do nosso trabalho e a brevidade das nossas aspirações. Aquelas duas páginas sobre o bueiro formam uma imagem que irá me acompanhar para sempre.

Faço todas estas divagações a propósito de um fato concreto: há 15 dias, a Imprensa Oficial do Estado publicou, em um livro chamado O Teatro de Sérgio Roveri, quatro de minhas peças: O Encontro das Águas, Abre as Asas Sobre Nós, Andaime e O Funil do Brasil. Depois de muito tempo, voltei a ler estes textos, agora impressos, e a imagem do jornal com o Quincy Jones voltou a me assombrar: até que ponto resistiremos? Ou melhor: qual será o destino, a validade, a função e o objetivo das coisas que fazemos? Vejam: é uma questão prática e funcional, sem nenhuma conotação pessimista ou mesmo derrotista. E, o mais importante: uma questão que não esconde nenhum desejo de reconhecimento e posteridade. Até porque, sempre que ouço alguém dizer que está produzindo uma obra para ficar, eu rio de tanta pretensão. Eu sempre acreditei que, nesta vida, a gente só fica pra titia.

Reli os quatro textos e tive a tranqüila sensação de que continuaria a assumir a paternidade de cada um deles – o que é raro. No entanto, é preciso admitir que alguma coisa mudou: os textos cumprem, com honestidade, a função de revelar uma história que um dia eu desejei contar. Hoje eu contaria as mesmíssimas histórias, mas talvez de forma diferente – e então eu percebo que o tempo só faz colaborar para que a gente se torne obcecado pela palavra exata, pelo sentido inconfundível, pelo frescor que os dias apagam. Eu sinto que algo poderia ser mudado, mas não sei precisar o quê – até me dar conta que não temos o destino às vezes cômodo das histórias, que as páginas dos livros abrigam e preservam. Em um único dia, levantamos uma pessoa e somos outra na hora de dormir – e nada de tão importante assim aconteceu. Apenas uma camada nossa morreu, como uma casca que a cebola despreza. Parece, então, haver uma ingenuidade naquilo que fizemos num passado recente – e os dias, assustadoramente, estão nos tornando um pouco mais cruéis e talvez um pouco mais cínicos. A gente descobre, ao visitar o nosso passado de palavras, que a ingenuidade agora é algo que nos incomoda, porque parece que ela não diz mais respeito a uma pretensa pureza de espírito. Ou a uma benvinda inocência. Detectar ingenuidade em algo que fizemos parece sinalizar que não fomos espertos o suficiente, só isso.

Um dia, ainda vou pedir para que os amigos acima me digam sinceramente o que eles sentem quando esbarram em sua própria obra pelas lentes do tempo. Talvez a questão seja apenas uma grande encanação da minha cabeça, mas eu continuo acreditando que este tema, de tão poderoso, pode separar o dia da noite naquilo que fazemos.

Uma curiosidade: sempre que estes assuntos impalpáveis cutucam a minha cabeça, eu me lembro de uma entrevista do genial diretor de cinema John Houston. Um dia, pediram para que ele falasse sobre Marilyn Monroe. Ele disse exatamente o seguinte: “Marilyn Monroe era exatamente igual a milhares de loiras que chegam todos os anos a Hollywood para tentar a carreira no cinema. Mas ela era diferente”. Em três linhas ele disse tudo que eu tentei dizer no imenso post acima. Talvez sem conseguir.

domingo, novembro 08, 2009

O caso do vestido

Quando abri os jornais nesta manhã de domingo e li que a garota Geisy, aquela que incendiou de desejo, volúpia e bestialidade o campus da Uniban ao aparecer para as aulas no curso de turismo com um microvestido cor-de-rosa (que cá entre nós é bem sem gracinha), havia sido expulsa da faculdade, precisei de algum tempo para acreditar que o que eu tinha nas mãos, mesmo, era um jornal brasileiro, e não um tablóide do Paquistão, Irã ou Afeganistão. A notícia, por si só indigesta, ia se tornando cada vez mais repulsiva quando se lia o motivo da expulsão. De acordo com a Uniban, a garota precisou ser excluída do quadro de alunos porque havia muito tempo ela já “se insinuava” para os colegas. O obscurantismo é tamanho que a vontade é de rir. Punir um jovem brasileiro (vamos colocar no masculino para a afirmação assumir um caráter mais genérico), às vésperas do verão, porque ele se “insinua” é dar as costas à própria cultura do nosso país: o que temos feito, nos últimos 500 anos, em nossas praias, em nossas festas, em nossa alegria popular provavelmente única no mundo a não ser praticar o jogo da sedução?

Claro que alguém poderá dizer que a sedução tem hora e local propícios para se desenvolver e que os bancos universitários foram feitos para a prática monástica dos estudos, e não dos olhares de cobiça. Será mesmo? O grande erro de Geisy teria sido, então, seduzir em hora e local inadequados? Somente aceitando este ponto de vista é que podemos entender por que ela foi expulsa por usar um vestidinho provocante enquanto que os jovens violentos que torturam e matam calouros nos trotes têm seus nomes e suas matrículas preservados pelas grandes faculdades do País. Porque estes jovens sabem exatamente como agir: eles são violentos, cruéis e assassinos nos campus universitários – onde a violência e o homicídio são tolerados, mas a sedução, não. E isso num país que faz do seu jogo de sedução moeda corrente e que orgulha-se de exibir ao resto do mundo as bundas bronzeadas das jovens nas praias com o mesmo afã que exibe os índices animadores da economia. É um país muito estranho, não há dúvida.

Este post não tem a menor intenção de defender Geisy. As entrevistas e a postura da garota revelam que ela não precisa de defensores. Articulada e direta, ela sabe exatamente em que armadilhas a universidade pisou ao assinar seu termo de expulsão, e agora está pronta para dar uma bela mordida nos cofres da instituição, num processo que, segura e justamente, ela deverá ganhar. Mais que isso: que me perdoem os puristas, mas todos nós sabemos que, também em outras vias, a garota saberá tirar o máximo proveito deste episódio lamentável. É contar os dias até que uma revista a convide para posar nua ou uma emissora de televisão a empregue em um programa humorístico de qualidade duvidosa. São estes os meios que a nossa sociedade encontrou de reparar aquilo que considera injusto.

Geisy deve mesmo aceitar todos os convites e aproveitar esta fama repentina. E, acima de tudo, mostrar para os xiitas da Uniban que existe um país doidinho para apreciar aquelas coxinhas roliças que tanto incomodaram o puritanismo dos seus coleguinhas de faculdade. Se é esta a linguagem que parte do país entende, que seja esta a linguagem usada então.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Palavrinha mágica

Conheço algumas pessoas obcecadas por tecnologia, outras por dieta, algumas poucas por informação e outras tantas por compras. Tento pensar nas minhas obsessões e percebo que não há nada, ao menos nos últimos meses, que me ocupe tanto a atenção quanto a passagem do tempo. Não sei se isso chega a ser exatamente uma obsessão, mas o certo é que tenho buscado por este assunto nos livros, nos filmes e principalmente nas conversas. A passagem do tempo, ao menos na forma como a venho encarando, não tem a ver necessariamente com agum processo de envelhecimento – penso mais sobre o efeito sutil que o acúmulo de anos e sensações exerce sobre nossa maneira de enxergar o mundo e a nós mesmos.

Há algumas semanas – e já escrevi sobre isso aqui – eu tive a oportunidade de entrevistar a Fernanda Montenegro a propósito de seus 80 anos, completados agora em outubro. Na última quinta-feira, conversei com a atriz Christiane Torloni, que está em cartaz na cidade com a peça A Loba de Ray Ban. O texto é a versão feminina do espetáculo O Lobo de Ray Ban, que a própria Torloni fez em 1987, quando tinha 30 anos. Ela usou grande parte da entrevista para falar sobre estes dois momentos de sua vida, aos 30 e agora aos 52 anos.

Os 30, segundo ela, trouxeram, além da consolidação profissional, uma certa calma que até aquele momento ela dizia desconhecer. Como as coisas na vida parecem estar muito interligadas, a calma foi necessária para que ela pudesse investir objetivamente na carreira. “Foi o período em que eu comecei a me sentir realmente uma mulher, liberta de qualquer resquício herdado da adolescência”, ela disse.
E então ela chega aos 52 anos e diz que é preciso ter muita coragem para entrar nesta idade, "pois você se vê obrigada a abandonar uma zona de conforto na qual você viveu até este momento". É como, segundo o raciocínio da atriz, se os 50 anos viessem acompanhados de alguma compensação pelas coisas bacanas que você fez e também pelas cobranças de tudo aquilo que deveria ter feito e deixou para trás. Daí a necessidade de muita coragem para dar os passos necessários e inevitáveis rumo ao meio século.

Fiquei pensando muito nesta palavra: coragem. Por coincidência, encontrei com um amigo mais jovem e muito mais safado que eu dois dias após a entrevista. Enquanto tomávamos um café, comentei com ele sobre estes depoimentos da atriz. Ao nosso lado, como se para ilustrar esta conversa, havia uma revista justamente com a Christiane Torloni na capa e em fotos sensuais nas páginas internas. Perguntei se ele encarava. Ele disse que sim, que ela era linda e ele a encararia sem problemas, “desde que se esquecesse que ela tem 52 anos”. Mais cruel, impossível. Naquela hora entendi o que ela quis dizer com “é preciso ter coragem para passar dos 50”. Senti que é algo que as pessoas não perdoam em você.

Na terça-feira, para alimentar um pouco mais minha obsessão com este assunto, leio na Folha de S. Paulo um colunista dizendo que nossa época só venera dois deuses: o da juventude e o da saúde. Se o colunista estiver certo, o ser humano deve ser muito masoquista mesmo, pois conseguiu encontrar dois deuses mais cruéis que o deus dos católicos. Os deuses da juventude e da saúde estão dispostos a nos abandonar a qualquer hora – e nos abandonarão no momento em que mais precisarmos deles. O da juventude, este então, começou a nos abandonar na hora exata em que nascemos, o que me faz crer que é muito injusto seguir com esta veneração para com qualquer um deles.

Chego ao final deste post sem nenhuma conclusão, a não ser a de que o tempo,
tenhamos ou não coragem, irá passar de qualquer maneira e o melhor que temos a fazer é encarar esta passagem com alguma leveza e também com alguma indulgência em relação aos planos que não conseguimos levar adiante. Até porque só existe uma maneira de a gente interromper a passagem do tempo, pelo menos para nós mesmos. E,sem nenhum julgamento moral, acho melhor a gente nem pensar nesta hipótese. Nossa guerra contra o tempo já nasceu como um jogo perdido, mas pode haver muita diversão durante as batalhas. Talvez coragem seja mesmo a palavra.