quarta-feira, dezembro 24, 2008

Pianinho

Amigos, para não ser diferente dos jornais, das revistas, da televisão e da própria época do ano, este blog não trará nada de novo pelos próximos 15 dias. No início de janeiro a gente promete voltar. Não sei se trazendo alguma coisa nova, mas que a gente volta, isso volta.
Beijão a todos e até o início de janeiro!!

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Desejos

Nunca gostei muito de usar esta época do ano para fazer planos e balanços, embora tudo pareça nos conduzir a isso. Sou um pouco avesso aos planos porque, por mais que eles se mostrem sólidos, a vida é insubordinada demais para respeitar nossos acertos prévios – um ventinho de nada já basta para desestabilizar a bússola do nosso destino. Quanto aos balanços, ainda que esta idéia se revele uma ode ao conformismo, eu prefiro pensar que fiz o que foi possível fazer dentro das condições que eu encontrei. Tento não imaginar como seriam as coisas se eu tivesse tomado algumas decisões diferentes daquelas que tomei – de todos os sofrimentos inúteis, este parece ser, de longe, também o mais desprezível. As coisas foram como foram e ponto final - e o fato indiscutível de que sobrevivemos a todas elas talvez indique algumas vitórias pelo caminho. Muitos arranhões também, mas acredito que ninguém conheça a vida a não ser desta maneira.

Se eu tivesse, como numa espécie de jogo, de abrir uma exceção e revelar um projeto para 2009 e todos os anos que se seguirão a ele, na esperança de que estaremos aqui para acompanhá-los, eu diria que gostaria de fugir da sedução fácil – daquilo que se mostra prazeroso embora saibamos, desde o princípio, que é ali que mora o perigo. Se eu fosse fumante, poderia dizer, por exemplo, que este vilão travestido de mocinho era o cigarro. Seria até mais fácil. Como não fumo e não me drogo, meu veneno é outro. E acredito que todos saibam do que estou falando, porque cada um de nós cultiva com carinho e apego o seu próprio veneno, sabe onde guardá-lo e como consumi-lo de forma a se embriagar sem necessariamente morrer – ao menos a morte literal. E sabe, também, que nome dar a ele, ao seu veneno particular.

Talvez este fosse o meu desejo para 2009: na impossibilidade de evitar o veneno, que eu aprendesse ao menos a conviver ou controlar a ressaca que ele produz. Ou, num plano um pouco mais modesto – e conseqüentemente mais humano – que eu jamais me esquecesse de que viver é sempre brincar com fogo. Em outras palavras ainda: de que a cada manhã, antes de qualquer outra coisa, nós acordamos para dar bom dia à ilusão.

Então, para mim mesmo e para todos aqueles que acompanharam meus devaneios ao longo deste ano, encontrei um verdadeiro e real desejo para 2009: que a ilusão nos dê um bom dia como resposta.

Feliz 2009 para todo mundo!

quarta-feira, dezembro 17, 2008

A estrela que bate ponto

Apesar da generosa oferta de ingressos – somente nesta última semana recebi três e-mails de amigos interessados em vender seus bilhetes – é muito provável que eu não vá assistir ao show da Madonna. Continuo gostando muito dela, bem menos do que nos anos 90, é verdade, mas já não é uma admiração que me estimule a enfrentar a espera e o provável caos em frente aos portões do Morumbi. Tenho um amigo que vem do Recife apenas para ver o show, outros me avisam que estão vindo do interior do Estado com a mesma e única finalidade. Penso neles e me pergunto em que momento minha preguiça se tornou maior que meu entusiasmo. Só de imaginar o trânsito a caminho do estádio e as horas que terei de ficar em pé no gramado até que a cantora surja majestosa em seu trono, já me dá uma vontade louca de me jogar no sofá e ver quem a Flora vai matar no capítulo de hoje de A Favorita. Eu sei que talvez eu tenha ficado um pouco velho e careta. Mas, ao ler tudo que está saindo na mídia sobre Madonna, me conformo em saber que ela, a tal rainha do pop, também anda careta e muito mais metódica do que eu.

Creio que ninguém simbolize melhor a nossa época, uma época de riscos calculados e transgressões com hora marcada, do que Madonna. Ninguém como ela sabe se expor tanto e, ao mesmo tempo, se manter tão segura e protegida. Madonna é aquela criança que só aceita descer pelo escorregador se os pais estiverem ali embaixo para ampará-la na queda. Ela jamais vai se esfolar à toa. Leio nos jornais que ela não gosta de surpresas, que nada foge ao seu controle, que ninguém pode se aproximar dela sem sua autorização mais do que prévia, que ninguém pode cumprimentá-la antes que ela o faça, que ninguém a toca, que ninguém a vê, que ninguém a saúda com um tipicamente brasileiro tapinha nas costas. Vocês se lembram de um filme em que John Travolta interpretava um menino que vivia dentro de uma bolha? Pois então: o menino cresceu, aprendeu a cantar (nem tão bem quanto Amy Winehouse, esta sim uma louca das boas), pintou o cabelo, virou mulher e deu à luz Madonna. Mais que uma cantora e uma performer genial, Madonna é a executiva bem-sucedida que todos nós invejamos.

O palco, para ela, deve ser o terreno da catarse de uma vida extremamente regrada. Ali, naquelas duas horas e debaixo de todos os holofotes, ela faz tudo o que não se permite fazer à luz do dia. O controle rígido e absoluto sobre sua carreira e seus passos foi a fórmula que ela encontrou para sobreviver ao mito que ela própria criou: Billie Holiday, Janis Joplin, Maria Callas, Elis Regina, Marilyn Monroe e Piaf, só para ficar nos nomes que me vêm de pronto à mente, sucumbiram por muito menos que ela. Sábia e astuta, Madonna se fortalece justamente com aquilo que as outras pareciam ter de mais frágil – a imagem da mulher solitária e de infância pobre que, graças a uma combinação extraordinária de talento e carisma, de repente se viu no centro do mundo. E não teve força de peitar a imagem que o espelho lhe devolveu. Madonna, ao contrário, coloriu de vermelho-vivo os lábios desta imagem e, orgulhosa, exibiu o espelho para todo o planeta, dizendo em cada uma de suas músicas: vejam como eu sou bonita, gostosa e desejada. E, por ser tão convincente neste papel, há vinte anos estamos acreditando nela. Um gênio da raça!

Ficamos sabendo que a atual turnê de Madonna emprega três aviões – um para a equipe e os outros dois para cenários, figurinos e toda parafernália à disposição da diva. São mais de 200 pessoas envolvidas na produção – mas ela só fala com dez, desde sempre as mesmas dez. E, no palco, tem repetido os mesmíssimos movimentos e as mesmíssimas canções desde o primeiro show de Sticky & Sweet. Se está dando certo, é proibido mudar ou tocar. Madonna é a nossa Mona Lisa que vive protegida por um vidro à prova de balas. Este deve ser o preço de ser Madonna. Um preço que ela paga com a disciplina dos economistas e dos auxiliares de contabilidade. Apesar de toda fama, de toda fortuna e de todo sucesso, Madonna leva uma vida muito mais regrada e rotineira que a minha e a sua. O resto é pose.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

É Natal. Paciência!

Uma cena impressionante deve ter chamado a atenção de quem passou (ou tentou passar) pela região da Avenida Paulista à meia-noite do último sábado: um congestionamento gigante, desses que a cidade registra somente em dias de tempestades ou acidentes sérios, se estendia da região do Shopping Paulista até o fim da Avenida Doutor Arnaldo. Eram quilômetros e quilômetros de carros parados num dia e num horário em que o trânsito naquela região deveria estar fluindo bem. Se fosse a chuva a causar tamanho transtorno, até que não seria assim tão ruim. Assim que as águas baixassem, a gente voltaria a circular normalmente pelas ruas. Mas a causa desta chatice toda deve durar muito mais que os dilúvios bíblicos – tudo estava parado em função daquela decoração natalina de gosto sempre duvidoso que atrai milhares de pessoas embevecidas diante de um repetitivo festival de acende-e-apaga e de imagens de papai Noel com a pança eternamente sacolejante.

Uma amiga me contou que, no mesmo sábado à noite, levou 45 minutos para cruzar a Paulista de ônibus, do prédio do Sesc até o Conjunto Nacional – um trajeto que não levaria mais de cinco minutos em uma noite normal. Segundo ela, depois de um tempão parado na esquina da Paulista com a Brigadeiro, o motorista do ônibus levou as duas mãos à cabeça e desabafou talvez para si próprio: “A gente não merece isso. Durante o dia, a gente até agüenta, mas à meia-noite não é justo”, disse ele. Hoje de manhã, na academia, ouço uma pediatra dizer que gastou uma hora e meia de Perdizes, bairro em que mora, até o Paraíso, onde um bebê estourando de febre esperava por uma consulta de emergência.

E então eu me pergunto: será que o tal espírito de Natal merece este sacrifício por parte de milhares de pessoas que pretendem simplesmente se locomover na cidade e não estão, naquele exato momento, preocupadas em ver fachadas de banco iluminadas? Tenho a impressão de que, quando se vive em uma cidade de mais de dez milhões de habitantes, qualquer iniciativa que venha a representar, por um longo período de tempo, um obstáculo à livre circulação dos moradores, deve ser examinada com muita cautela. Não estou defendendo que a cidade permaneça às escuras nesta época em que, acredito eu, todo mundo anda atrás de alguma luz –na impossibilidade de ser interna, que nos seja dada pelo Banco Santander pelo menos. O problema é que esta decoração, criada talvez para encher os olhos dos paulistanos de um deleite cafona, está enchendo muito mais, mas muito mais, o nosso saco. Vivemos em uma cidade em que já não se anda durante o dia – e agora somos impedidos de andar por um mês durante as noites também. Não há paciência natalina que resista a isso.

Eu ainda consigo evitar esta pentelhação: vou à Paulista de metrô ou simplesmente deixo de ir. Mas imagino a situação de quem tem na avenida o seu caminho de volta para casa, quem mora ali ou precisa ir, por exemplo, aos hospitais da região. Estas pessoas devem estar odiando esta época muito mais do que eu. Quando eu vejo este caos na Paulista e depois me recordo que os flanelinhas estão agindo impunemente na região central da cidade, cobrando quatro reais por hora dos motoristas que deixam o carro na rua, sob as barbas da Polícia, tenho de admitir que, infelizmente, para nós paulistanos, o Natal está se transformando numa festa de bárbaros.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Teste de paternidade

Eu tenho acompanhado com muita curiosidade, nos últimos dias, o animado debate entre criacionismo e teoria da evolução alimentado pelos leitores do jornal Folha de S. Paulo. Acredito que não exista em qualquer veículo de mídia impressa um espaço, como a seção de cartas, em que a gente possa ter uma noção precisa sobre como anda a cabeça das pessoas. Os editoriais representam a opinião dos patrões, os articulistas falam por si próprios; sobram, então, as cartas enviadas por leitores pacientes que nos ajudam a traduzir um pouco o mundo. E, há dez dias, leitores enfurecidos e irônicos estão subsidiando uma guerra santa entre aqueles que acreditam que o homem surgiu a partir do sopro divino em um molde de barro e os que acham que o topo da nossa árvore genealógica deve estar reservado para um sorridente macacão africano.

No sábado, um leitor provavelmente pouco apaixonado pelos estudos de Darwin disse que enquanto não nascer um pato a partir de um ovo de galinha ou uma macaquinha não parir um ser humano, ele vai continuar acreditando que foi feito por Deus, à sua imagem e semelhança. Da minha parte, se este for o preço para que ele se converta ao darwinismo, eu torço para que ele continue com sua fé divina – o mundo já está caduco demais sem que patinhos comecem a piar atrás de uma galinha confusa e de um galo com a pulga atrás da orelha. Até porque, pelo pouquíssimo que li a respeito de Darwin, ele diz que as espécies se aprimoram e a natureza se encarrega de fazer uma seleção natural, dando prioridade aos mais fortes e aptos, o que não quer dizer que galinhas se transmutem em patos e muito menos que crianças comecem a nascer nas selvas africanas paridas por macacas desorientadas. Isso soaria como uma hierarquia absurda.

Hoje um outro leitor, ao que me parece farto desta discussão, colocou no mesmo saco de suas queixas a quiromancia, anjos e homeopatia. Aposto que, a partir de amanhã e com razão, médicos e associações de homeopatas vão escrever protestando contra a carta deste leitor. É engraçado ver que uma discussão que começou lá atrás, com Adão e Eva de um lado e alguns macacos mais espertinhos do outro, tenha respingado na cabeça dos homeopatas, coitadinhos: eles fazem seis anos de medicina, mais dois de especialização para depois ver sua prática chamada nos jornais de “besteiras”. Ou seja: embora ninguém saiba de onde realmente tenha vindo, é bom não mexer com este lugar imaginário, que todo mundo fica puto. Parece um pouco brincadeira de criança: a minha mãe é santa, já a dos outros...

De minha parte, sem querer ofender ninguém, eu acho muito mais bacana acreditar que meu tatataravô tenha sido mesmo um macacão forte, exímio caçador e chefe de família exemplar, que cuidou bem da minha tatataravó grávida, protegeu-a do frio e da fome e tirou cuidadosamente os piolhinhos de todos aqueles macaquinhos que, milhares de anos e centenas de cruzamentos depois, deram origem a mim, que não sei caçar, mal consigo proteger a mim mesmo e, na hora da fome, visto um moletom e corro até a padaria da esquina para comer uma fatia de pizza de mussarela. Vendo a coisa por este lado, não sei se a espécie evoluiu muito, não.

Mas há algo que me agrada muito na teoria da evolução – é acreditar que nós estamos aqui por mérito. Que somos descendentes de uma linhagem de vitoriosos, antepassados hominídeos que seguramente enfrentaram desafios inimagináveis para perpetuar sua espécie no planeta. E, caso queiramos insistir na presença de Deus neste processo, melhor ainda: não parece haver nada mais divino do que amparar a nossa evolução, ser o grande arquiteto que aprimorou cada uma de suas pequenas criaturas, que permitiu que aquele primata que vivia em árvores e se equilibrava em cipós hoje domine a ciência, as artes e, ainda que se atrapalhe nas emoções, é a prova mais bem-acabada de que o tempo é um artesão insuperável. Deus, na minha modestíssima opinião, é isto. E não é pouco. E eu me orgulho muito mais de pertencer a esta família, numerosa, peluda e barulhenta, do que àquela outra, nascida de uma porção de barro e condenada a sofrer por toda eternidade porque um dia cedeu ao desejo e quis experimentar o proibido e o desconhecido.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Um vovô para toda a vida

As últimas frases do meu post anterior, sobre as dosagens de verdade e ilusão com as quais devemos administrar nossas vidas, me trouxeram à lembrança um fato ocorrido no ano de 2000, no município de Alcântara, que fica a uma hora de barco de São Luís, capital do Maranhão. Fui para lá em companhia do amigo Alberto Guzik, na época em que tínhamos tudo que hoje já nos parece pré-histórico: emprego fixo, carteira assinada, férias remuneradas, décimo-terceiro, seguro-saúde e dinheiro para viajar. Hoje eu troquei tudo isso (ou me vi obrigado a trocar) por realização profissional e saúde mental. Tento acreditar que estou no lucro. Mas às vezes é tão difícil...

Mas vamos ao que interessa. Os guias de turismo devem afirmar o contrário, mas Alcântara me pareceu uma cidade-fantasma – e, por isso mesmo, absolutamente fascinante. No que seria seu centro histórico, ergue-se o esqueleto de uma catedral que foi destruída pelas chamas. Alguns moradores dizem que um raio caiu ali e queimou tudo. Outros preferem contar uma história ainda mais interessante: segundo eles, nas noites de vento e chuva, é possível ouvir ali o lamento das almas dos escravos martirizados nos pelourinhos. Tudo em Alcântara, com exceção de uma base militar utilizada para pesquisas espaciais, parece remeter ao passado. Como um certo prédio azul e branco, exibido com um orgulho funesto, onde os escravos recém-trazidos da África eram obrigados a ficar enquanto não surgisse algum comprador interessado em seus dentes brancos e canelas finas. Com paredes impressionantemente grossas e janelas que mais se assemelham a frestas, o prédio deveria funcionar, aos olhos dos escravos, como uma ante-sala do inferno que estava à espera de cada um deles.

Embora a paisagem de Alcântara, marcada por seu casario colonial e suas cores fortes, seja deslumbrante, o sol nos obrigou a procurar abrigo no Museu Histórico de Alcântara – e só aqui este meu diário de bordo realmente começa. O guia do museu, um senhor magro de mais de 70 anos, ligeiramente curvado, nos recebeu com uma simpatia e um conhecimento histórico impressionantes. Além de trazer na mente toda a origem da cidade, ele era capaz de revelar os detalhes mais saborosos de cada um dos objetos expostos no museu – e eles mostravam-se às centenas, grandiosos ou desprezíveis. No entanto, era visível que, a todo momento, ele estivesse em busca de uma brecha para nos ditar sua própria história. O que só foi possível já no fim da visita.

Contou-nos, então, que ele era filho de uma próspera família maranhense, senhores de terra e de escravos. Talvez, se a memória não me trai, com algumas gotas de nobreza correndo em seu sangue. Estudara fora, dominava vários idiomas e havia escolhido Alcântara para viver em função de sua paixão pela história e sua extrema dedicação ao museu. Era um lorde bem-vestido e esquecido em meio a tanto calor e tantas lembranças. Sua única filha havia se casado com um astronauta americano, que durante algum tempo trabalhara no Centro Espacial de Alcântara, um dos melhores locais para lançamento de foguetes em todo hemisfério sul do planeta. Depois de algum tempo, o casal se mudou para Cabo Canaveral, na Flórida, onde funciona o Centro Espacial Kennedy, base de lançamento da maioria das espaçonaves americanas. E era ali que os netos do nosso simpático guia haviam nascido. Na época de baixa-estação, quando o movimento de turistas caía um pouco, ele se permitia deixar o museu nas mãos de algum assistente para passar algumas semanas em companhia da filha e dos netos. Se eu exigisse um pouco mais da memória, talvez desenterrasse um ou outro detalhe, mas por ora acredito que o que temos aqui já é suficiente.

Saímos do museu encantados com a história de vida daquele velho guia. Ele parecia ser a mais improvável das criaturas a habitar aquele lugar. E então um morador local, que ganhava alguns trocados exibindo as atrações da cidade, seguramente atraído por aquela expressão de êxtase em nossas caras, nos interpelou: “E aí, vocês também caíram na história do velho?” Antes que pudéssemos pensar em responder qualquer coisa, ele continuou com o disparo: “Tudo isso que ele conta é mentira. Ele nunca saiu de Alcântara, é um sujeito pobre. Ele e seu irmão gêmeo sempre viveram aqui. Nenhum dos dois nunca se casou e nem teve filhos”. Começamos a andar em direção ao barco que nos conduziria de volta a São Luís com a sensação de que a melhor, a mais bonita a mais invejável e bem-acabada de todas as histórias que tínhamos ouvido durante aqueles dez dias de férias no Maranhão não se sustentava mais nas pernas. Impiedoso, o morador ainda nos revelou, sordidamente, o mais desnecessário dos itens. “E olha, se vocês querem saber, nem de mulher ele gosta, viu?”

Hoje, quando eu me lembro do simpático velhinho do museu, eu prefiro imaginá-lo em Cabo Canaveral, conversando em um inglês fluente com seus netinhos no colo. E contando-lhes, aos netinhos de olhos e ouvidos curiosos como foram os nossos naquela tarde, de que nobre linhagem eles descendiam. Se foi este o personagem que ele decidiu criar para si, se foi esta a história de vida na qual ele se fez confortável, não me sinto, em momento algum, autorizado a duvidar de cada um dos pequenos sonhos e ilusões que tornaram suportável a existência daquele homem. Eram todos relatos lindos, perfeitos e absolutamente verossímeis. Não havia nada que pudesse desmontar sua vida imaginária, nenhuma peça que não se encaixasse naquele maravilhoso quebra-cabeça que ele deve ter levado 70 anos para montar. A não ser, é claro, o morador de Alcântara, a nos esperar do lado de fora do museu para nos dizer que tínhamos sido espectadores de uma mentira descomunal.

Mas aí, meu caro e bronzeado morador de Alcântara, já era tarde demais. O castelinho de areia no qual aquele homem havia hospedado as nossas mentes não seria mais destruído por você, nem por sua verdade antipática e nem mesmo pelas águas revoltosas e as ondas assustadoras que separam São Luís de Alcântara. Naquele momento, a ilusão já se mostrara imperiosamente vitoriosa. E dane-se se ele nunca saiu de Alcântara, se nunca foi rico ou nobre e se nunca se deitou com mulher nesta vida: os netinhos que ele criou para si não encontrariam, neste ou em outro hemisfério, um avô mais amoroso e sedutor que ele.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Jura dizer a verdade, nada mais que a verdade?

Na semana passada assisti a um episódio inédito da série House. Fazia vários meses que eu não via o programa e confesso que não sei nem em que temporada estamos. Percebi que algum tempo havia transcorrido a partir de duas observações: há novos personagens na trama e o doutor House está, se é que isto é possível, ainda mais irônico e incorreto. Sei que todo charme de House se deve justamente a isto, a esta sua aparente falta de compaixão pela dor alheia, embora faça tudo que esteja ao seu alcance para salvar seus pacientes ou, no mínimo, garantir-lhes alguma dignidade perto do fim. Penso que o personagem circula numa fronteira muito perigosa entre a coragem e o escárnio, entre a autenticidade e o deboche. Ao ver o programa, na última quinta-feira, senti que o doutor House perdeu um pouco de sua própria noção do perigo e corre o risco de se tornar – e me perdoem os admiradores da série, entre os quais me incluo – uma caricatura de si mesmo.

Porém, o que mais me atraiu naquele episódio específico não foi a faceta nebulosa da personalidade do médico, e sim a trama secundária que conduziu todo o programa. House parece ter contratado um detetive particular que descobriu vários detalhes sigilosos da vida dos outros médicos do hospital – e, de posse destes dados, ele poderia fazer algum tipo de chantagem mas, em vez disso, optou por um caminho ainda mais cruel: obrigou cada um dos colegas a se confrontar com aquela parcela da verdade que permanecia oculta a todos. E é sobre isso que eu não paro de pensar, desde o fim do programa. House passou o episódio todo acendendo luzes sobre aposentos que seus amigos insistiam em conservar no escuro.

Eu sinto que, caso a gente se debruçasse sobre este tema, talvez conseguisse escrever páginas e páginas a respeito desta zona nebulosa delimitada pela verdade de um lado e a hipocrisia do outro, e na qual circulamos durante muito tempo em nossas vidas. Talvez o resultado de tanta escrita não tivesse valor algum e não interessasse a ninguém, nem a mim mesmo. E é bem possível que eu não tenha um repertório filosófico avantajado para dar conta deste dilema, por isso me limito, aqui, a reproduzir a pergunta que não sai da minha cabeça: até que ponto conseguimos realmente lidar com a verdade? Ou melhor: a partir de que dosagem a verdade se configura numa droga com potencial para destruir ou ao menos dar um novo contorno àquilo que chamamos de cotidiano? Até que ponto, ou por quanto tempo, preferimos continuar com os olhos e ouvidos fechados para algumas coisas que parecem gritar à nossa frente? E, por fim, numa hipotética batalha final entre a verdade e a ilusão, de qual lado da arquibancada nós iremos nos sentar? Sempre ouvi dizer que a verdade liberta. Acredito nisso, talvez liberte mesmo. Mas então, finalmente libertos e donos do nosso próprio destino, o que faremos das nossas vidas e de todo tempo que nos resta? Eu confesso: tenho muito medo desta resposta. Será que precisamos, realmente, abandonar aquela ilusão que nos cega mas, ao mesmo tempo, nos alimenta com a nossa felicidade possível?

Este é, ao menos hoje, o ser ou não ser da minha vida. Há outros melhores, mas no momento este é o que eu tenho.