quinta-feira, abril 30, 2009

Felicidade: modo de usar

A felicidade tem uma propriedade que se assemelha à blindagem. Quando estamos felizes, acredito eu, os problemas do mundo continuam a chegar até nós, é claro. Mas não nos atingem tanto. Ficamos sabendo das guerras, das inundações, da fome, da crise, das epidemias, de todos os males que preocupam governantes e milhões de pessoas e, ainda assim, nos sentimos leves. Não que a felicidade nos embruteça, nos torne insensíveis ou feche os nossos olhos a tudo aquilo que é triste e injusto. Ela simplesmente nos protege de tudo isso de uma forma quase maternal – e creio que não há egoísmo algum em sentir-se feliz quando um olhar mais atento e preocupado para o mundo talvez nos conduzisse para a melancolia.

A felicidade nos ensina a virar as páginas do jornal na esperança de encontrar, na página seguinte, algo tão jubiloso quanto a nossa própria alma. E, ainda que não encontremos, tudo bem, também: a felicidade é quase auto-suficiente. A gente ri do recado truncado na secretária eletrônica, do e-mail importante que voltou, do trânsito que não anda e do filme que é uma chatice embora a crítica tenha dito que é ótimo. A felicidade nos permite andar pelo mundo em sapatos confortáveis. Mais do que isso, até: a felicidade cria para nós um mundo melhor que o mundo real, uma realidade quase paralela. A gente vê tudo o que se passa ao nosso redor e se sente um eleito, alguém que está sendo momentaneamente poupado de tudo aquilo que faz do mundo às vezes um lugar um pouco triste.

Porém, naqueles dias em que a felicidade por algum motivo nos abandona (talvez por nossa própria culpa, quem sabe) tudo se torna diferente. A gente lê que a montadora Chrysler pediu concordata nos Estados Unidos e chora por duas horas só em pensar nos trabalhadores que a gente nem conhece e serão demitidos; depois vê que a Organização Mundial da Saúde elevou de quatro para cinco o índice de epidemia da gripe suína e se enfia debaixo dos cobertores para chorar por outras duas horas; fica sabendo que um carro atropelou e matou quatro pessoas na Holanda e urra de dor: a flor não abre mais, a secretária eletrônica está muda, o e-mail importante foi entregue mas isso já não tem mais importância nenhuma, o trânsito está uma maravilha mas a gente não tem vontade de ir para lugar algum. O mundo ficou triste e agora é deste mundo que a gente faz parte, é neste mundo que a gente se reconhece. A ausência da felicidade nos devolve ao mundo dos outros. E este abandono da felicidade dói como se nossa pele tivesse sido ralada: a gente olha para o mundo com os olhos úmidos de uma saudade tão antiga, mas tão antiga, que a gente acredita estar carregando de uma outra existência.

E então, nesta hora, e somente nesta hora, a gente descobre que a felicidade também nos aquecia. O sol brilha forte e amarelo do lado de lá da janela. Mas em algum canto da nossa alma começou a nevar. E tudo parece tão branco. E tudo parece tão triste. E tudo parece tão frio. E a gente não vê a hora de que alguma coisa aconteça. Algo de bom. Quem sabe ser feliz de novo.

quarta-feira, abril 29, 2009

A noite de Lygia

Devo confessar aqui que conheço muito pouco da obra da escritora Lygia Fagundes Telles, que está sendo reeditada pela Cia. Das Letras. Vi alguns dos seus contos adaptados para o teatro, como As Confissões de Leontina e O Saxofone, e devo ter lido no máximo dois dos seus romances. Sei que tenho algumas coisas dela aqui em casa, mas a primeira passada de olho pela estante não localizou o quê. Assim, assumo que me dirigi mais curioso do que entusiasmado à homenagem prestada a ela na noite de terça-feira diante de um auditório lotado no Sesc Vila Mariana.

A cerimônia começou um pouco fria, e cheguei a pensar que aquele seria o tom da noite. Adorável engano. Depois de alguns discursos e depoimentos sobre a obra de Lygia, a cerimônia disse a que veio ao abrir o palco para aquilo que Lygia tinha a dizer – e não para o que havia a ser dito sobre ela. As memórias da escritora foram enchendo o auditório nas interpretações sutis de Eva Wilma, Regina Braga e Luciano Chirolli. As duas primeiras se revezavam nos papéis da própria Lygia e sua mãe – uma pianista amadora que abandonou os estudos para se transformar numa competente dona de casa, autora de uma imbatível receita de goiabada caseira. Chirolli deu vida ao pai da escritora, um homem que perdeu todo o dinheiro da família nos baralhos e nas roletas. “Perdemos hoje, mas amanhã ganharemos”, era seu lema para confortar uma família cada vez mais empobrecida pelo seu vício. Nestas memórias da escritora, costuradas com sensibilidade pela dramaturga Maria Adelaide Amaral, Chirolli interpretou ainda o histórico Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática e primeiro diretor a oferecer a Lygia um papel de atriz, e Mário de Andrade, que um dia teria perguntado à jovem escritora se ela preferia ser bonita ou inteligente. Ao ouvir que ela preferia ser inteligente, ele a chamou de tola, dizendo que a beleza valia muito mais. “Eu posso dizer isso com autoridade, pois sou um canhão”. Se tivesse terminado por aí, a cerimônia dirigida por Sérgio Ferrara já teria valido a pena. Mas o melhor estava por vir.

Aplaudida de pé ao subir ao palco para um discurso que deveria ter no máximo 15 minutos, Lygia, que aos 86 anos já aprendeu a fazer pouco caso do tempo, falou sem pressa sobre sua infância, sobre os anos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde havia apenas seis meninas numa turma de 120 alunos, sobre sua amizade com Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, sobre a Academia Brasileira de Letras e, principalmente, sobre a vida. Sobre a vida que passa muito mais rápido do que a gente espera ou gostaria. Engraçada algumas vezes, confusa e redundante em outras, e absolutamente adorável o tempo todo, Lygia pediu para que a plateia jamais se esquecesse da lição deixada pelo seu pai – perdemos hoje, mas amanhã ganharemos – e clamou para que continuássemos insistindo no amor, no amor individual, no amor coletivo, no amor pelo outro – mesmo que este outro seja o nosso inimigo.

Saí da cerimônia com vontade de ler muito mais coisas de Lygia Fagundes Telles. Mas não necessariamente hoje, não tão logo talvez. Ainda que a vida passe rápido, como ela mesma ensinou, quero continuar por um bom tempo comovido com sua voz, antes de voltar a me comover com suas palavras no papel.

sexta-feira, abril 24, 2009

Era um vez uma cantora escocesa...

Se chegasse às lojas hoje o já tão aguardado primeiro CD da cantora escocesa Susan Boyle, não tenho certeza se eu o compraria. Não me lembro de ter visto, nos últimos tempos, a mídia mundial cair com tanta voracidade em cima de uma única pessoa – com exceção de Barack Obama, mas neste caso os motivos são compreensíveis. Os sites de fofocas, os jornais e revistas mais sérios, alguns dos colunistas mais lidos e respeitados do país – todos estão declarando seu amor incondicional à cantora de 48 anos, que diz nunca ter sido beijada por um homem e que viu a vida escorrer enquanto cuidava da mãe doente e fazia afagos no gato Peebles. Em questão de dias, parece que todos os nossos sonhos passaram a ter um rosto e um nome: o rosto e o nome de Susan Boyle. É como se ela tivesse sido eleita para nos confortar com a idéia de que nunca é tarde: ainda que de modo enviesado, os nossos sonhos podem se tornar realidade. De minha parte, acredito que é muita responsabilidade em cima de uma única alma. O que as pessoas se esqueceram de dizer – e isto é muito grave – é que para continuar a ser Susan Boyle ela precisa imediatamente deixar de ser Susan Boyle.

Vejamos: ontem ela já apareceu nos jornais com os cabelos tingidos e bem cortados, jaqueta de couro, cachecol e um vestido que, seguramente, favorece suas medidas. Acho isso louvável: mais do que um direito, cuidar da aparência é um dever de cada um de nós. No caso de Susan Boyle, no entanto, acredito que esta é a primeira e a mais ínfima das metamorfoses a que ela será obrigada a se submeter. Penso que todos nós nos deixamos seduzir por Susan Boyle porque ela é, em carne e osso – talvez mais carne do que osso – um personagem de conto de fadas. E eu temo que alguém recém-saído das fábulas talvez não consiga sobreviver no mundo de lobos maus e madrastas crueis que habitam a floresta do show biz. É possível que alguém passe a decidir por ela, a fazer as contas por ela, a falar e a pensar por ela, a indicar o que ela deve ou não vestir, o que ela deve ou não gravar e quais homens entre as centenas que surgirão em seu caminho ela deverá ou não beijar.

Aquela imagem que conquistou o mundo, a da gordinha bem-humorada e requebrando os quadris minutos antes de soltar uma voz abençoada, deverá ser paulatinamente limada de sua trajetória, será reduzida a um evento prosaico e descartável, como um cartão de visitas que decidimos jogar fora. Tenho a impressão de que tudo aquilo que contribuiu para que Susan Boyle se transformasse em Susan Boyle aos poucos deixará de interessar à indústria do entretenimento. Talvez os executivos queiram uma mulher mais magra, talvez queiram que a simpatia interiorana impressa em seu rosto dê lugar a feições mais condizentes com aqueles que venceram sozinhos, talvez decidam que ela nem deva ser uma cantora de musicais, pois Barbra Streisand e Elaine Page já fazem isso muitíssimo bem. Pode haver algo de muito fatalista nestas previsões e eu gostaria sinceramente de estar errado. É que eu olho para o mundo e sinto que não há espaço para uma heroína gordinha, mal-vestida e de lábios virgens. Se Susan Boyle quer ser a imagem dos nossos sonhos, sinto que este sonho pode ser retocado até se tornar irreconhecível. E acredito que, neste instante mesmo, exista uma equipe de plantão pronta para assumir esta função. Que Susan Boyle tenha, então, a aparente força de uma Amy Winehouse, sempre disposta a dar um safanão naqueles que querem mexer com sua vida e sua imagem.

No mundo da música, existe uma lenda cruel conhecida como a maldição do segundo disco. Todo jovem talento, se quiser continuar na profissão, tem de enfrentá-la. É um ritual de passagem que carimba no rosto do artista se ele pode continuar ou era apenas uma doce promessa. No caso de Susan Boyle, a maldição foi antecipada para seu trabalho de estreia. Ela não poderá falhar. Jamais. Terá de dar à luz um álbum absolutamente impecável para honrar todas as apostas feitas em seu nome. Repito: é muito peso para quem, até ontem, sabia segurar apenas o microfone do caraokê da sua cidadezinha. Mas eu torço por ela, sinceramente. Torço para que seu primeiro disco seja lindo e a gente não se canse de ouvir, torço para que bons compositores depositem letras maravilhosas em suas mãos, torço para que ela continue a cantar com a alma e torço, acima de tudo, para que no dia em que ela for assediada nas ruas, ter o rosto em todas as capas de revistas e a conta bancária recheada com milhões de libras, ela não chegue à conclusão um tanto clichê de que era bem mais feliz quando tudo o que tinha na vida era uma mãe de saúde frágil e um gatinho chamado Peebles. Mas torço por ela, principalmente, porque se Susan Boyle foi eleita a porta-voz dos nossos sonhos, de todos eles, eu quero que nossos sonhos terminem bem.

quarta-feira, abril 22, 2009

Sabiá

Eu preciso me policiar e fugir da tentação de usar este espaço para escrever sempre sobre bichos. Há alguns dias, a querida amiga Marici Salomão disse que gostava muito quando eu aparecia com minhas historinhas sobre animais por aqui. Respondi a ela que eu tomava muito cuidado para não soar repetitivo, pois minha vontade era, toda semana, falar de cães, gatos e outros bichos. Gentil como sempre, a Marici argumentou que o escritor sul-africano J.M.Coetzee havia se tornado mundialmente famoso, e ainda levado um Prêmio Nobel, por uma estupenda obra em que sempre havia um bichinho passeando aqui e ali. Então, para deixar a Marici feliz, aqui vai mais uma historinha de bicho – desta vez um sabiá, espécie sobre a qual eu acho que nunca falei. Já que volto a falar de bichos, fico tranqüilo em saber que ao menos é um bicho inédito.

O sabiá desta historinha pertencia ao meu pai. Vivia numa gaiola não muito grande, que durante os dias era pendurada em uma viga alta do quintal, sempre à sombra, e à noite guardada na garagem, protegida por um cobertor nas épocas mais frias. Eu nunca achei muita graça em passarinhos de gaiola, mas não havia dúvidas de que aquele sabiá era feliz. Acredito que nenhum pássaro triste fosse capaz de cantar tanto e tão bem quanto ele. Confesso que nos domingos em que visitava meus pais eu chegava a ficar irritado com aquele canto alto e ininterrupto. Me lembro de ter perguntado várias vezes ao meu pai quando o bicho ia ficar quieto. “Imagina, ele está só começando. No mês que vem, vai cantar mais ainda”. E cantava mesmo.

Meu pai compensava toda aquela cantoria com cuidados dedicados somente aos bebês: o sabiá comia mamão, laranja, banana e quiabo (isso mesmo, quiabo!) em pedacinhos colocados diretamente em seu bico, além de bolo, biscoitos, folhas de alface e muito alpiste. Pode parecer exagero, mas eu tenho certeza de que bastava ver o meu pai saindo cedo da cozinha com algum mimo nas mãos para que o bicho já ligasse todas as cordas vocais. Nesta convivência de muitos anos, sinto que meu pai deixou de ser o dono do sabiá para se transformar em seu grande amigo e protetor. E, claro, o oposto também ocorreu.

O bichinho era tão acostumado àquela vida de cativeiro que, todas as manhãs, quando meu pai abria a gaiola para limpá-la, o sabiá pousava em seu braço e só voltava para o poleiro quando a gaiola já estivesse nos trinques. Até que, na sexta-feira, o improvável aconteceu. O sabiá saltou da gaiola para o braço do meu pai, ficou ali por alguns segundos e, aparentemente do nada, abriu as asas e foi embora. Primeiro fez um voo curto – do braço do meu pai até o muro dos fundos da casa. Pousou ali, olhou pela primeira vez para a grandiosidade do mundo, e voou até uma grande árvore já no quintal do vizinho. E da árvore, partiu para sabe deus onde.

Meu pai passou todo aquele dia, com a gaiola de portas abertas e abarrotada de comida, à espera de que o pássaro voltasse. No dia seguinte, a mesma coisa. Até que ele desistiu, melancólico diante da certeza de que, sem tantos carinhos e comida fácil, o bichinho não sobreviveria por dois dias na selva das ruas. Fiquei triste pelo meu pai, de verdade. É bem possível que o sabiá não saiba mesmo viver longe de arames e poleiros. Mas ele realizou o sonho impossível de todo passarinho que nasceu em cativeiro: bateu as asas. E, acredito eu, para um passarinho, olhar o mundo lá de cima e controlar o vento com suas asinhas deve ser bem mais gostoso do que mamão picado e biscoitinhos.

Dedico este post a todos aqueles que um dia também bateram as asas, sem a certeza de que encontrariam comida, carinho e proteção no porto seguinte.

quinta-feira, abril 16, 2009

A dama do telhado

Tarde dessas eu estava tomando um café a algumas quadras de casa quando passaram pela rua, em disparada e com as sirenes ligadas, três viaturas da polícia. Assalto ou acidente, eu pensei. Terminei o café e voltei a pé para casa. Quando estou chegando, vejo as viaturas na frente do meu prédio e a rua tomada por vários policiais. Eles estavam tentando impedir que uma mulher se jogasse do telhado de um sobradinho de dois andares, que fica bem em frente ao meu prédio. Pode parecer pouca coisa, se atirar de um sobradinho de dois andares, uma queda de sete metros, talvez. No máximo, ela conseguiria quebrar uma perna ou deslocar a clavícula, deviam pensar as pessoas que se aglomeraram na calçada para acompanhar a ação dos soldados. Dois deles subiram no sobradinho e, a poucos metros de distância da mulher, tentavam convencê-la a acompanhá-los.

A ação toda não deve ter levado mais do que cinco minutos. E parece ter causado pouco impacto nos curiosos da calçada, cujos rostos denunciavam mais um sorriso incrédulo do que preocupação. Rapidamente os soldados no telhado imobilizaram a mulher e obrigaram-na a descer. Em poucos segundos, a rua já estava voltando ao normal. Fiquei na calçada mais um tempinho, ao lado de uma mulher que, dali a pouco, vim a saber que era médica. Quando estávamos nos preparando para ir embora também, o porteiro do prédio ao lado nos tranquilizou: “Não liguem para ela, não”, ele nos disse. “Ela não deve bater bem. É a terceira vez que ela faz isso este ano. Eu acho que quando ninguém dá bola pra ela, ela sobe ali e diz que vai se jogar só para aparecer a polícia. Mas nunca se joga”. Disse isso e voltou para a sua guarita.

Quando eu estava entrando no meu prédio, a médica falou algo mais ou menos assim. “Não sei, eu não gosto disso. Esta mulher está tentando dizer alguma coisa. Eu tenho muito medo de que algum dia ela consiga”.

Até onde eu sei, desde aquele dia ela não subiu mais no telhado do sobradinho. Torço para que ela tenha conseguido dizer, sem precisar sair do chão, tudo aquilo que a afligia.

sábado, abril 11, 2009

Sonata de outono

O jornalista Carlos Heitor Cony disse esta semana que ele se dá conta de que o outono chegou porque a praia que observa da janela do seu apartamento no Rio está mais deserta, as ondas têm um quê de dourado e o preço da água de coco, em função da queda na procura, baixou. Eu também sou avisado de que é outono por um retrato mais prosaico, mas nem por isso menos poético. Quando eu acordo, meus dois gatos, o Pirulito e a Ritinha, estão juntos na sala, disputando uma nesga de sol que também tinge de dourado não as ondas, que estas eu não tenho, mas o meu tapete que um dia já foi mais branco. Ao longo do dia, com o silêncio e a resignação dos ponteiros de um relógio, os gatinhos vão acompanhar esta migalha de sol que lhes cabe: por volta do meio-dia se encontrarão no quarto, no sol ao pé da cama, no início da tarde se alongarão pelo assoalho frio da cozinha e se despedirão do sol, no fim do dia, acomodados em uma caixa de papelão colocada sobre a máquina de lavar, na área de serviço. Carrego a estúpida impressão de que eles dedicam os seus dias entupidos de monotonia a perseguir um pouco de calor e conforto. No fundo, nada assim tão diferente do que nós fazemos com os nossos dias também.

Decidi falar do outono porque em maio, provavelmente no dia 12, deve entrar em cartaz um texto inédito meu, chamado Ensaio Para um Adeus Inesperado. Ao contrário do que ocorreu nos últimos anos da minha trajetória, trata-se de uma peça que não foi encomendada por nenhum diretor ou projeto. Era algo que eu queria escrever, ou ao menos precisava. Uma história que eu presenciei há muitos anos e com a qual eu só consegui fazer as pazes agora, que ela saltou da minha garganta para a tela do computador. É um texto aparentemente difícil para os atores; em vez da agilidade que os diálogos costumam proporcionar, eles têm de dar conta de pequenos blocos de monólogos, oito ao total – quatro para o personagem da mãe e outros quatro para o seu jovem filho. Foi a solução narrativa que encontrei para tentar explicar um evento no qual nunca coube qualquer explicação.

Em um momento da peça, já perto do final, o personagem da mãe revela sua opinião sobre o outono. “Eu não gosto do outono”, ela diz. “O outono, para mim, sempre foi uma não-estação, um período de entressafra, um momento em que a natureza tenta nos dizer que ela não sabe se administrar com muita eficiência também. Não é muito quente e nem muito frio, não é muito claro e nem muito escuro. Eu sinto como se a natureza nos dissesse, a nós, os seres humanos: tenham calma, eu estou tentando me ajustar. Mas isso leva algum tempo, alguns meses talvez. Enquanto isso, os dias terão de ser um pouco mais curtos. O que está por vir, eu temo, talvez seja um pouco pior”.

E então eu vejo estas manhãs tão radiantes, estas tardes tão luminosas, e quase chego a discordar desta mãe. Mas percebo que ela não está de todo errada. Como ela, eu também penso que o outono não é uma estação pronta. O verão se revela completo, assim como o inverno. Talvez até mesmo a primavera. Mas o outono, não. É a estação do sobressalto, de uma calma enganosa, de uma luz tão extasiante porque sabemos, antes de mais nada, que ela é efêmera. Sinto que é a estação da nossa grande cartada , aquele momento em que a cigarra, se prudente fosse, talvez percebesse que havia chegado a hora de recolher o seu canto. Os dias são tão magníficos, às vezes tão sorrateiramente magníficos, que é como se eles quisessem nos alertar que depende só de nós decidir se o inverno que se avizinha irá se instalar apenas nos termômetros ou também nos nossos corações.

quarta-feira, abril 08, 2009

Roleta

Renan e Raul são gêmeos. Têm pouco mais de quatro anos e estudam em uma escolinha na Zona Leste. A professora tem de estar sempre alerta, pois as brigas entre os dois são muito constantes. Sempre que os aluninhos precisam formar fila, Raul tem de ser o primeiro e Renan, o último, para evitar previsíveis empurrões ou puxões de cabelo. Renan não tolera nenhum tipo de disciplina. Se ele está gostando da aula de pintura, não entende por que tem de abandonar o lápis de cor para ir ao playground. E, uma vez no playground, recusa-se a tirar a sonequinha da tarde, coisa que todos os coleguinhas fazem com indisfarçável prazer. A professora já disse várias vezes ao Renan, diante de toda classe, que precisa ter uma conversinha séria com seu pai sobre sua falta de modos, mas ele não se importa. Semana passada, revoltado com os horários rígidos da escolinha, amassou um caderno e jogou no chão. Raul, ao contrário, nunca tirou a professora do sério.

Renan e Raul jamais foram repreendidos pela mãe, que parece viver apenas com o intuito de realizar os desejos dos gêmeos. Não faz muito tempo Renan, depois de fazer alguma malcriação, mostrou a língua para a mãe. Ela sorriu diante desta pequena ousadia. À noite, Renan repetiu a dose, desta vez na frente do pai, que lhe deu, ainda que de leve, um inesperado tapa na boca. Desde aquele dia, ninguém mais viu a língua de Renan em casa. Não que Raul seja exatamente bonzinho. Ele também gosta, nos dizeres do pai, de fazer muita arte. Subir no braço do sofá e dar cambalhotas é a sua arte preferida. Um dia, o pai avisou: Para com isso que você vai acabar caindo. Na terceira cambalhota, Raul caiu de cabeça no assoalho e viu nascer, em segundos, um gigantesco galo na sua nuca. O pai, assustado, na mesma hora levou o garoto ao pronto-socorro. O médico examinou e disse: não é nada. O pai exigiu um raio-X. Não era nada. Só de pensar no que estes meninos aprontam, eu já fico suado, o pai disse o médico.

Renan e Raul são frutos do segundo casamento do pai. Do casamento anterior, ele saiu com três filhos: uma moça de 22 anos, muito bem-casada graças a Deus, um garotão de 17 e um menino de 11. São filhos que nunca lhe deram muita preocupação. “Não estava mais dando certo viver com a mãe deles, mas pelo menos ela criou bem as crianças”, revelou sem deixar claro se isto deveria ser recebido como um insulto ou um elogio à antiga esposa.

Ouvi todo este relato, calado, no ônibus que me levou da estação Vila Madalena do metrô à rua da Consolação, na ensolarada manhã desta quarta-feira. A conversa toda durou o tempo de um Halls de menta. Desci do ônibus certo de que, por R$ 2,30, tinha ouvido uma história com final feliz, ao menos até agora.

Renan e Raul podem continuar tranquilamente com suas traquinagens. Seus nomes foram trocados.

segunda-feira, abril 06, 2009

Duas historinhas para uma segunda-feira

Passei a semana toda me lembrando de dois artigos da Danuza Leão publicados há muitos anos na Folha de S. Paulo. Talvez fosse mais chique dizer aqui que passei a semana inteira pensando em Proust, Tchekhov ou Sarte, mas o mal é que nem sempre a gente é chique, então me ocupei mesmo com a irregularidade por vezes frívola da Danuza Leão. Mas estes dois artigos, como eu disse muito antigos, por algum motivo se alojaram na minha cabeça e talvez não saiam de lá tão cedo.

O primeiro deles dizia respeito a algumas pessoas solitárias que ela via perambulando pelos botecos do Rio de Janeiro tarde da noite. Eram pessoas, segundo ela, com o olhar perdido e vazio, uma garrafa de cerveja pela metade e um desejo quase cirúrgico de companhia. Quando li este artigo, eu morava na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, a duas quadras de um boteco muito parecido com o descrito pela Danuza, na ambientação e na frequência. Sempre que eu voltava para casa a pé, de madrugada, eu olhava para aquele balcão sujo, aquelas mesas simples com um paliteiro e um vidro engordurado de ketchup sobre uma toalhinha que um dia devia ter sido branca. E, ocupando aquelas mesas, os poucos personagens que um dia a Danuza soube descrever tão bem. Não com a acuidade de um romancista, coisa que positivamente ela não é. Mas com o olhar amedrontado de alguém que um dia, se não cuidasse bem da vida, talvez terminasse tendo apenas palitos, moscas e uma cerveja pela metade como companhia. O artigo de Danuza me tocou tão sinceramente que mandei um e-mail para ela, dizendo que compartilhava de cada vírgula que ela havia escrito. Foi a primeira vez na vida que escrevi para um colunista– e ela nunca me respondeu. Não faz mal.

O segundo artigo era uma pequena pérola sobre a dor e a saudade. Ela falava do teor dos telefonemas que recebia semanalmente da mãe enquanto esta era viva. As ligações nunca traziam grandes novidades: versavam sempre sobre alguém distante que tinha caído doente, um outro desconhecido que havia morrido, um terceiro que estava terminando o casamento, e tantas outras miudezas que talvez só interessassem mesmo às partes envolvidas. Ela ouvia os telefonemas como um misto de delicadeza e desinteresse e logo depois desligava. Dali a alguns dias a mãe voltava a procurá-la, com novas historinhas sobre os mesmos e batidos temas. Às vezes, ela ligava para a mãe também, mas isto era mais raro. O normal era que a mãe a procurasse.

Um dia, a mãe morreu e com o passar do tempo ela percebeu o quanto aqueles telefonemas lhe faziam falta. O quanto ela gostava de saber, no fundo, de todos aqueles relatos que não chegavam a lugar algum. Os anos se passaram, a vida foi seguindo seu rumo até que um dia ela acordou com uma vontade incontrolável de ligar para a mãe. E desejou, apesar de toda impossibilidade, que a mãe estivesse viva para atendê-la do outro lado. E então, e aí a faca entra no peito e dá duas voltas, ela se deu conta de que já não se lembra mais do número do telefone da mãe.

Tão bonito. E com toda a dor do mundo.

quarta-feira, abril 01, 2009

A jovem e a foca

Duas notícias publicadas esta semana nos jornais e revistas atraíram especialmente minha atenção. Talvez os visitantes deste espaço estranhem, sintam-se ofendidos até, pelo fato de eu ter procurado por semelhanças entre estes dois casos, geograficamente tão distantes mas análogos em sua essência. Ocorre que, quando penso em um, o outro me vem automaticamente à cabeça, já que ambos parecem ser frutos de um tipo específico da maldade humana. Acho perigoso discorrer sobre a maldade, pois centenas de estudiosos já se debruçaram sobre este assunto com uma competência infinitamente superior ao que eu estou prestes a dizer. Em todo caso, peço licença aqui para minha pequena, inútil, provavelmente sem fundamento e descabida dissertação sobre a maldade. Espero, apenas, que ela não resulte pretensiosa e, acima de tudo, que conserve a digital de um leigo, que é o que sou. Neste e em tantos outros assuntos.

Mas vamos às duas notícias, afinal. A primeira delas é sobre a jovem carioca que foi baleada na nuca porque pediu ao assaltante que estava levando sua bolsa que ele lhe devolvesse a bíblia e o crachá de estagiária da Caixa Econômica. A segunda não era exatamente uma notícia, e sim a fotografia de um caçador, munido com uma espécie de porrete, prestes a abater um filhote de foca nas imensidões geladas do Canadá. O assaltante baleou a jovem na cabeça – e ela teve morte instantânea. O caçador golpearia o filhote de foca também na cabeça, segundos após o click do fotógrafo, tingindo de vermelho aquela aparente beleza branca do Canadá.

As notícias eram estas e, além dos dois golpes fatais terem sido desferidos na cabeça das vítimas, parece não haver mais nenhuma ponte unindo a jovem carioca ao filhote de foca canadense. A princípio, pode parecer até revoltante continuar com as comparações, mas é que eu acredito, de verdade, que existe alguma coisa muito mais sutil (e assustadora) ligando estes dois casos. A jovem e a foca foram, a meu ver, vítimas daquele instante em que a maldade se torna absolutamente desnecessária. Não pretendo dizer com isto que exista alguma maldade necessária, mas acredito que parece haver um tipo de maldade que seja ao menos justificada. Que exista, em algum momento e em alguma instância, algo que possa validar um ato extremo de resultado tão desastroso. Matei para me defender. Roubei porque meu filho tinha fome. Mas a jovem e a foca foram vítimas de algo que não precisaria efetivamente ocorrer – pois para os dois casos existem alternativas mais humanas. Ou no mínimo mais inteligentes.

O ladrão já havia se apoderado da bolsa da jovem – e não me parece sensato que ele fosse fazer algum uso tanto da bíblia quanto do crachá. O ato do roubo, enfim, estava consumado com êxito – e este ato eu sou, sinceramente, capaz de compreender. Poderíamos apontar aqui dezenas de razões que induziram aquele jovem ao roubo. Mas ao se apoderar da bolsa da garota, a sua função de ladrão já estava concluída de forma eficaz. O que viria depois, o tiro na nuca da jovem, é o que eu entendo como aquela fração da maldade para a qual não parece haver mais justificativa possível.

Vejamos o caso da foca, então. Leio que elas são abatidas para renovar o guarda-roupa das mulheres ricas (e completamente idiotas) da Noruega, Rússia e China. Leio também que o governo do Canadá, numa declaração que só pode ser interpretada como ironia, proibiu os caçadores de retirar a pele dos bebês focas enquanto eles ainda estão vivos. É mais humano, recomenda a nobre legislação canadense, que se espere pela morte dos filhotes, algo que não deve demorar assim tanto tempo dada a violência do golpe com que são atingidos. Não sei se as consumidoras dos casacos de pele de foca estariam interessadas em ver o tamanho da devastação e da bestialidade promovidas por seu guarda-roupa. Mas, como no caso da jovem, o que eu imagino é o seguinte: elas não precisam mesmo dos tais casacos, como de resto ninguém precisa. Não estamos abatendo outras espécies para nos alimentar, para incrementar nossas pesquisas médicas ou mesmo para nos agasalhar em caso de alguma necessidade extrema: estamos abatendo apenas para ornamentar a nossa vaidade e mostrar o nosso domínio e intolerância absoluta sobre todas as outras espécies vivas deste planeta, sejam elas um filhote de foca ou uma jovem religiosa da zona norte do Rio.

O ladrão que atirou na garota deve ter pensado o seguinte: eu não preciso fazer isso, mas eu posso. Da mesma maneira que o caçador canadense, ao avançar sobre uma indefesa e assustada foca, deve saber, no seu íntimo, que o único ser para quem aquela pele macia e quentinha é absolutamente essencial é a própria foca, e ela vai perdê-la, junto com a vida, em questão de segundos. Mas ele abate o filhote e pensa: eu não preciso fazer isso, mas eu posso. É neste segundo exato, neste instante dolorido em que a bala fere a nuca da jovem carioca e o porrete avança sobre a cabecinha da foca, que a maldade revela uma faceta que foge a qualquer compreensão ou perdão possíveis.

Nas últimas semanas, tenho ouvido com especial atenção duas pessoas sensatas que estão me ensinando sobre o valor da calma e a importância de enxergar o mundo não por aquilo que ele tem de absurdamente dolorido – o mundo, eles me ensinam e eu tento aprender, comporta também milhares, talvez milhões de experiências muito mais gratificantes do que estes dois casos isolados aqui citados. Mas é que estes dois casos, e não sei por que eles, são tão incompreensíveis e tão representativos destes episódios que eu resolvi batizar de “a maldade desnecessária”, que não pude evitar de falar sobre eles. Fica aqui a promessa de, já no próximo post, eu tentar voltar os olhos para as outras coisas que nos mostram o quanto pode ser gostoso estar vivo, neste mundo e nesta época.