quarta-feira, abril 22, 2009

Sabiá

Eu preciso me policiar e fugir da tentação de usar este espaço para escrever sempre sobre bichos. Há alguns dias, a querida amiga Marici Salomão disse que gostava muito quando eu aparecia com minhas historinhas sobre animais por aqui. Respondi a ela que eu tomava muito cuidado para não soar repetitivo, pois minha vontade era, toda semana, falar de cães, gatos e outros bichos. Gentil como sempre, a Marici argumentou que o escritor sul-africano J.M.Coetzee havia se tornado mundialmente famoso, e ainda levado um Prêmio Nobel, por uma estupenda obra em que sempre havia um bichinho passeando aqui e ali. Então, para deixar a Marici feliz, aqui vai mais uma historinha de bicho – desta vez um sabiá, espécie sobre a qual eu acho que nunca falei. Já que volto a falar de bichos, fico tranqüilo em saber que ao menos é um bicho inédito.

O sabiá desta historinha pertencia ao meu pai. Vivia numa gaiola não muito grande, que durante os dias era pendurada em uma viga alta do quintal, sempre à sombra, e à noite guardada na garagem, protegida por um cobertor nas épocas mais frias. Eu nunca achei muita graça em passarinhos de gaiola, mas não havia dúvidas de que aquele sabiá era feliz. Acredito que nenhum pássaro triste fosse capaz de cantar tanto e tão bem quanto ele. Confesso que nos domingos em que visitava meus pais eu chegava a ficar irritado com aquele canto alto e ininterrupto. Me lembro de ter perguntado várias vezes ao meu pai quando o bicho ia ficar quieto. “Imagina, ele está só começando. No mês que vem, vai cantar mais ainda”. E cantava mesmo.

Meu pai compensava toda aquela cantoria com cuidados dedicados somente aos bebês: o sabiá comia mamão, laranja, banana e quiabo (isso mesmo, quiabo!) em pedacinhos colocados diretamente em seu bico, além de bolo, biscoitos, folhas de alface e muito alpiste. Pode parecer exagero, mas eu tenho certeza de que bastava ver o meu pai saindo cedo da cozinha com algum mimo nas mãos para que o bicho já ligasse todas as cordas vocais. Nesta convivência de muitos anos, sinto que meu pai deixou de ser o dono do sabiá para se transformar em seu grande amigo e protetor. E, claro, o oposto também ocorreu.

O bichinho era tão acostumado àquela vida de cativeiro que, todas as manhãs, quando meu pai abria a gaiola para limpá-la, o sabiá pousava em seu braço e só voltava para o poleiro quando a gaiola já estivesse nos trinques. Até que, na sexta-feira, o improvável aconteceu. O sabiá saltou da gaiola para o braço do meu pai, ficou ali por alguns segundos e, aparentemente do nada, abriu as asas e foi embora. Primeiro fez um voo curto – do braço do meu pai até o muro dos fundos da casa. Pousou ali, olhou pela primeira vez para a grandiosidade do mundo, e voou até uma grande árvore já no quintal do vizinho. E da árvore, partiu para sabe deus onde.

Meu pai passou todo aquele dia, com a gaiola de portas abertas e abarrotada de comida, à espera de que o pássaro voltasse. No dia seguinte, a mesma coisa. Até que ele desistiu, melancólico diante da certeza de que, sem tantos carinhos e comida fácil, o bichinho não sobreviveria por dois dias na selva das ruas. Fiquei triste pelo meu pai, de verdade. É bem possível que o sabiá não saiba mesmo viver longe de arames e poleiros. Mas ele realizou o sonho impossível de todo passarinho que nasceu em cativeiro: bateu as asas. E, acredito eu, para um passarinho, olhar o mundo lá de cima e controlar o vento com suas asinhas deve ser bem mais gostoso do que mamão picado e biscoitinhos.

Dedico este post a todos aqueles que um dia também bateram as asas, sem a certeza de que encontrariam comida, carinho e proteção no porto seguinte.

15 comentários:

Anônimo disse...

e eu te aplaudo emocionado e agradeço a querida marici por ter te incentivado a escrever mais uma história sobre bicho. abração, querido! guza

Só no blog disse...

Brigadão, querido. E que pontualidade, hein!!!!

Unknown disse...

As vezes bater asas e voar sem saber o que vai encontrar pela frente é muito bom, mesmo deixando coisas boas e fáceis para trás.

Mais um texto caprichado e emocionante. Pode escrever de bichos, que acredito que todo mundo gosta. Grande abraço!

Só no blog disse...

ôba, isso pra mim é um incentivo. Brigadão mesmo e grande abraço, sérgio

Mário Viana disse...

Sergio, apesar da tristeza que seu pai deve estar sentindo, o sabiá deu uma tremenda lição de vida, né?

Só uma dúvida: Chico Buarque, de quem sou devoto, usa sabiá no feminino...

Será que O sabiá do seu Roveri foi atrás DA sabiá do Chico?

bjs

Só no blog disse...

Mário, querido. Também me lembrei muito da música: vou voltar, sei que ainda vou voltar... E então fui procurar no dicionário e descobri que pode ser tanto o sabiá quanto a sabiá. Acho que o bicho foi embora sem que a gente soubesse o sexo dele. Será que foi este o motivo?!!! beijão

fátima disse...

ah, mas o gostoso de buscar a liberdade é exatamente a insegurança na hora da saída, você não acha?

Anita disse...

Brigaduu !

Só no blog disse...

Uêba, de nada, querida. beijos.

Renata Carvalho disse...

Olá Sergio, eu sempre que posso me dou o prazer de ler o seu blog, descobri ele através do blog do Alberto e gosto muito do seu jeito de escrever. Sou uma aspirante à atriz, e tive a sorte de assistir aqui na cidade onde moro uma peça com texto seu "Noite do Aquario", e gostaria muito de ter visto a "Coleira de Boris", so q moro no interior(Birigui - 7 h de viagem) e não deu pra ir praí assistir(infelizmente)... E tem um outro texto seu "O Encontro das Aguas" que gostaria muito de assistir uma montagem e tbém de ler, mas não sei onde encontrar, quero ver com você a possibilidade de me mandar esse texto,ou pelo menos se você puder me dizer onde posso encontrá-lo, eu agradeço.
Gde abraço!!

Só no blog disse...

Oi, Renata, como vai? Que legal que você viu A Noite do Aquário. Esta peça vai voltar ao cartaz aqui, no mês que vem. Se você enviar seu e-mail, eu te mando o texto do Encontro das Águas, com prazer. Brigadão pelo carinho, sérgio

Unknown disse...

Que lindo, Roveri!

Fernanda disse...

É bem mais do que uma “história sobre um bichinho”. Cheguei aqui por indicação da Cássia, por isso, de antemão sabia que valeria uma boa leitura. Mais que dar os parabéns, quero agradecer. Obrigada pela generosidade deste texto :)

Fernanda disse...

É bem mais do que uma “história sobre um bichinho”. Cheguei aqui por indicação da Cássia, por isso, de antemão sabia que valeria uma boa leitura. Mais que dar os parabéns, quero agradecer. Obrigada pela generosidade deste texto :)

Só no blog disse...

Olá, Fernanda, é uma grande alegria ler um comentário como o seu. Muito obrigado, sérgio