terça-feira, julho 29, 2008

Uma cerveja com A e B

Eu já escrevi sobre os dois aqui neste espaço e, se mais não disse, é porque nem mesmo eu os conheço o suficiente. Sei que um deles é mais velho e mais desesperançoso - não que a idade nos traga a desesperança, mas talvez nos traga a sensatez e o espírito crítico, coisas que, no fundo, talvez não combinem mesmo com a esperança. O outro é mais jovem e cheio de vida e de ilusões, mas nem por isso consegue escapar de um destino trágico que, desde sempre, parece ter sido reservado para ele. Os dois se encontram por apenas um dia e provam, de maneira dolorida, que um dia pode fazer toda a diferença do mundo. Não sabemos muito sobre eles, não temos certeza de quem são, de onde vieram e para onde vão. Se é que vão. O primeiro é chamado de prisioneiro A e o segundo, obviamente, de prisioneiro B. São belos, másculos e aparentemente indestrutíveis, mas o tempo se encarrega de mutilá-los nas ambições e nos movimentos. Quando, por fim, chega a hora de nos despedirmos deles, não encontramos mais do que dois cotocos rastejando à nossa frente, dois seres dignos de piedade ou repulsa, dependendo do humor de quem os enxerga. Eles são os personagens da peça A Coleira de Bóris, que nesta segunda-feira recebeu três indicações ao Prêmio Shell. O que só reafirma a minha convicção de que, na maioria das vezes, a felicidade nos chega dos lugares mais improváveis e pelas vias mais tortuosas. Se eu pudesse, eu chamaria os dois para tomar uma cervejinha hoje comigo e comemorar estas indicações. Mas, como eu disse ali em cima, eu não os conheço direito e, por esta hora, nem imagino para onde eles foram depois que escaparam de mim. De qualquer forma, gostaria de dizer meu muito obrigado aos dois e convidá-los a viver comigo um dia mais feliz do que aquele que eu lhes ofereci. Acho que todos nós merecemos isso. Um beijão para os dois e para todos aqueles que também os viram nos últimos dois meses.

sábado, julho 26, 2008

Lei seca da boca pra fora

É a terceira vez, em menos de duas semanas, que eu falo sobre a lei seca aqui neste espaço. Talvez as pessoas desconfiem que eu seja contra a lei - principalmente neste fim de semana, em que as manchetes dos jornais e a reportagem de capa da Vejinha comemoram um mês da implantação da lei com índices e números pra lá de otimistas. A rigor, não sou contra o princípio da lei, mas gostaria de entender algumas coisas.

Por exemplo: vi hoje, nos jornais, que um motorista de caminhão comprovadamente alcoolizado dirigiu na contramão por uma rodovia movimentada na região de Campinas e chocou-se de frente com dois veículos, provocando a morte do motorista do primeiro carro e uma fratura no fêmur no do segundo. E o que aconteceu com ele? Simples: pagou uma fiança de R$ 1,2 mil e foi solto, como se não tivesse acontecido nada.

Depois de ler esta notícia, saí para almoçar e, ao passar pela Avenida Pedroso de Morais, em Pinheiros, vi uma imensa blitz, com policiais armados de fuzis e muitas, muitas emissoras de televisão doidas para flagrar a imagem de um motorista soprando o bafômetro às três da tarde de um dia ensolarado. Então, eu pergunto: se o camarada que saiu de casa para comer uma feijoadinha com os amigos e tomou um ou dois chopinhos tivesse sido parado pela blitz, que encheu a rua de barricadas, seria levado à delegacia, multado em quase mil reais e, dependendo da boa-vontade do delegado e da quantidade de álcool ingerida, talvez tivesse de pagar uma fiança em torno de R$ 1,2 mil para ser liberado também. Ainda que não tivesse sequer encostado o pneu da frente na faixa de pedestres.

Enquanto que o outro motorista, aquele que estava com uma quantidade de álcool no sangue equivalente a 12 chopes, que dirigiu na contramão, matou um e feriu seriamente um outro, também pagou os R$ 1,2 mil e foi pra casa. Ou seja: qualquer pessoa minimamente mal-intencionada vai pensar o seguinte - se é pra beber e pagar multa, então é melhor tomar 15 chopes logo de uma vez, sair barbarizando e acabar famoso por um dia nos jornais. Afinal, esta tão elogiada lei parece só funcionar mesmo na rua: quando os casos chegam às delegacias, todo mundo dá uma graninha e volta pra casa feliz da vida e trançando as pernas. Tenha tomado dois ou 30 chopes, esteja íntegro ou tenha matado um inocente pelo caminho. É impressão minha ou tem algo de muito errado nisso tudo?

quinta-feira, julho 24, 2008

O telefone preto da dona Rosália

Dona Rosália foi a primeira vizinha em todo o bairro a ter telefone em casa – um aparelho preto e pesadão daquele tipo que nós só costumávamos ver nos filmes e nas novelas. Havia também um telefone no açougue da esquina e um outro na malharia que ficava na frente da minha casa – mas aí era comércio e não valia. A novidade era que dona Rosália tinha um telefone em casa, que repousava sobre uma toalhinha bordada em cima de um aparador num canto de sua grande sala, que vivia com as cortinas sempre fechadas. Por que só ela tinha telefone na sala era um mistério que nós, crianças que brincávamos descalças pelas ruas de terra do bairro, não conseguíamos compreender.

Uma ou duas vezes por mês eu sentia vontade de telefonar para alguém e pedia para que minha mãe me levasse até a casa de dona Rosália. “Mas você não conhece ninguém que tem telefone. Pra quem você vai ligar?”, minha mãe perguntava. Ao perceber que minha falta de resposta não era mesmo sinônimo de desistência, ela parava o que estava fazendo e me levava para telefonar na casa da dona Rosália. “Dona Rosália, o menino está com vontade de telefonar de novo. A senhora deixa?”. Paciente, dona Rosália me conduzia até sua sala, onde eu adentrava com um encantamento respeitoso, e ficava à espera de que ela discasse somente quatro números – os números da casa de uma amiga, que vivia em outro bairro e, que luxo, também tinha telefone em casa. Quando a amiga atendia, dona Rosália dizia: “Não é nada, não. Fala só oi pro menino que está com vontade de telefonar”. Eu segurava o fone com as duas mãos sujas de moleque e ouvia uma voz fina que me perguntava, do outro lado, se estava tudo bem. Eu nunca consegui responder, tinha medo. Devolvia depressa o telefone à dona Rosália, minha mãe dizia um obrigado meio sem jeito, e eu voltava correndo para brincar com os outros meninos da rua. Dali a três ou quatro semanas eu sei que pediria de novo para telefonar para alguém e a amiga da dona Rosália teria apenas de dizer um olá para que eu me desse por feliz.

Um dia eu perguntei ao meu pai por que nós também não podíamos ter um telefone. Ele me explicou que era problema de linha, que ele já havia ido até a telefônica mas não havia mais disponibilidade de linha no bairro, só dali a muitos anos. Mas eu não queria uma linha, eu repetia para o meu pai, eu queria só um telefone preto e pesado como o da dona Rosália. “Mas é a mesma coisa”, meu pai dizia, “sem linha o telefone não serve para nada”. De todas as respostas que eu tive na infância, esta sempre foi a mais difícil de engolir. Que raio de linha era aquela que nos impedia de ter um telefone na sala, em cima de uma toalhinha branca e rendada?

Dona Rosália fazia balas de noiva, que agora nós chamamos de bala de coco. Ela e as duas filhas. Casamento sem as balas da dona Rosália não tinham futuro. No início, ela só fazia balas de coco, depois vieram as de amendoim e de castanha. Quando eu chegava na casa de dona Rosália para meu telefonema mensal para sua amiga, estavam as três, dona Rosália e as duas filhas, com as mãos ocupadas nas massas de bala, uma espécie de gororoba branquinha e elástica que não podia passar do ponto de jeito nenhum. Um pouco mais, açucarava; um pouco menos, virava puxa-puxa. E as noivas do bairro, assim como nós, queríamos suas balas sempre no ponto. Quando me levava até a sala para telefonar, dona Rosália ficava de olho nas mãos das filhas e, de longe, sabia o momento exato em que aquela grande massa podia ser enrolada em pequenas tiras e finalmente cortadas no tamanho das balas.

Dona Rosália também tinha cinco filhos homens, com no máximo dois anos de diferença entre um e outro. Para dar conta das encomendas, ela tinha pouco tempo para vigiar aquela meninada toda. Assim, nas semanas de muito serviço, dona Rosália vestia todos os filhos homens com batinhas marrons que iam até os pés. Não eram vestidos, porque os vestidos tinham golas e um ou outro adereço. O que os meninos usavam era uma espécie de camisolão sem ajustes, um exatamente igual ao outro. Com vergonha de sair nas ruas naqueles trajes, os cinco filhos de dona Rosália ficavam com a cara espremida no portão vendo do que nós, os outros meninos, brincavam nas calçadas. E assim, dona Rosália tinha a tranqüilidade necessária para encontrar o ponto certo de suas balas.

O tempo passou, o filho mais velho de dona Rosália abriu uma farmácia e ganhou de cara a confiança de todo o bairro. Nenhum enfermo jamais ia ao médico sem antes ouvir os conselhos do Zé da Farmácia. Era assim que ele passou a ser chamado – se ele não conseguisse resolver o problema ali mesmo, na sua salinha de azulejos brancos, daí sim iríamos para o hospital, mas isto era raro, muito raro. E ainda assim, quando voltávamos do médico, passávamos antes pela farmácia para ver se o filho mais velho de dona Rosália concordava com o diagnóstico. E só então comprávamos os remédios, com a certeza de que estávamos em boas mãos.
Um dia, muitos anos depois, um caminhão da telefônica parou em nossa rua e os homens começaram a puxar fios que iam do poste até o telhado de nossas casas. O problema da falta de linhas finalmente havia sido resolvido e as casas do bairro começaram a receber seus aparelhos de telefone também – menores, mais leves e mais claros do que aquele de dona Rosália. A partir daquele dia, sempre que queríamos telefonar, podíamos fazer tranqüilamente da nossa sala, sem termos de pedir nada para a dona Rosália. Mas então, ligar para os outros não tinha mais graça nenhuma.

Um presente do grande Marcelino Freire

Marcelino Freire é um destes escritores que, na vida, se misturam muito com aquilo que escrevem. E nós, com o tempo, vamos gostando cada vez mais das duas coisas: deles e daquilo que eles escrevem. Seria desnecessário aqui falar da qualidade dos seus livros Era o Dito e Angu de Sangue, apenas para ficar nos dois que estão aqui, à minha frente na estante. Hoje Marcelino me mandou um presentão: sua opinião sobre a peça A Coleira de Bóris, de minha autoria, que termina domingo no Satyros Um. Pedi licença ao Marcelino para compartilhar o presente com vocês. Está aí embaixo:

É um texto difícil este do Roveri. Reexplico: A Coleira de Bóris. Os diálogos dão saltos no escuro. Cambalhotas no abismo. Vejamos: dois detentos se encontram enjaulados, lado a lado. E não sabem por que vieram parar ali. Há tanto tempo. Onde estamos? Em que país infeliz? Soube eu que, quando escrita, a peça previa uma parede separando os personagens. Cada um na sua solitária. Nada de cara a cara. Apenas alma com alma, conversando. Vociferando, enfim. A solução, dada pelo diretor Marco Antonio Rodrigues, soltou os presos no mesmo chão. De gravitação. Eles se olham mas não se vêem. Triscam-se mais do que se tocam. Formam um mesmo espectro. Um, digamos, mais otimista. Seria? O outro, descrente. No entanto, acorrentados ambos. A caminho do mesmo futuro. Aliás, quão talentosos e vigorosos são os dois atores. Juro. Num embate cheio de arte. E fôlego. Algo que me fez lembrar o clássico Dois Perdidos Numa Noite Suja - este, mais circense. A Coleira, digamos, mais nonsense. E não menos visceral. Roveri, mais uma vez, captura com precisão o mundo-cão em que sobremorremos. Recomendo. E mais não digO. Paurabéns a todos do espetáculo. Aquelabraço forte e beijos no umbigO. Fui.

terça-feira, julho 22, 2008

De Coringa e outros artistas


Poucos dias antes de morrer de uma overdose acidental de medicamentos, em janeiro deste ano, o ator australiano Heath Ledger revelou em uma entrevista que não conseguia mais dormir e nem se alimentar direito após ter feito o Coringa no filme Batman, O Cavaleiro das Trevas. A gente lê este tipo de declaração, que hoje em dia já se tornou um lugar-comum, e não costuma dar muito crédito a ela. E depois é obrigado a morder a língua repetidas vezes. Assisti ao Batman na noite de segunda-feira e quase que eu não consigo mais dormir depois de ver a estupenda criação de Ledger para o vilão dos quadrinhos. Ensandecido, apaixonado, desmedido, temerário, antológico... poderíamos usar todo o estoque de adjetivos disponíveis no Aurélio para definir o trabalho do ator sem medo de incorrer em grandes exageros. Mas acho que apenas um adjetivo dá conta desta tarefa: perigoso.

Eu sempre acreditei que os artistas soubessem o caminho de volta em qualquer situação, que eles poderiam mergulhar nos abismos mais indevassáveis no encalço de seus personagens e depois voltar de lá com as mãos nas costas. Hoje eu acho que não é bem assim. Paga-se um preço alto para adentrar neste terreno perigoso em que a arte parece fazer fronteira com a insanidade. Ou com a obsessão.

Lembro-me de uma vez em que uma jovem e bela repórter do Jornal da Tarde, Paola Gentile, foi entrevistar a Bibi Ferreira a respeito do musical Piaf, então um grande sucesso na cidade. Era uma manhã de segunda-feira e a própria Bibi abriu a porta para a repórter. Estava vestida de preto, com chinelos baixos que reforçavam seu caminhar arrastado, tinha um aspecto alquebrado como o da cantora francesa em seus últimos dias. “Desculpe-me”, disse Bibi à repórter. “Ela costuma ir embora mais cedo, mas desta vez resolveu ficar no meu pé”. O “ela” a quem Bibi se referia era ninguém menos que a própria Piaf.

Desde aquele dia passei a cultivar um certo fascínio, às vezes quase mórbido, por este momento na vida do artista em que ele parece não delimitar com precisão em que momento a vida real precisa se desvencilhar do personagem para que os dois, vida e personagem, saiam ilesos desta confusão. Clarice Lispector escreveu, certa vez, que costumava associar seus defeitos às estruturas de um grande edifício. Por isso mesmo tinha receio de mexer com eles. “De repente, eu removo justamente o defeito que é a estrutura que sustenta o edifício inteiro e tudo virá abaixo”. Vindo de Clarice, é óbvio que isso foi dito de maneira muito mais elegante e poderosa, mas a imagem continua sendo a mesma.

Participei de uma entrevista coletiva com a atriz francesa Isabelle Huppert, quando ela esteve no Sesc Anchieta para interpretar o monólogo 4.48, de Sarah Kane, que a obrigava a permanecer imóvel no palco por quase duas horas, vivendo os tormentos de uma suicida. Tive a chance de perguntar a ela que tipo de memória ou sensação ela carregava para o coxia quando o espetáculo terminava. “Não levo nada. Isto aqui é trabalho. Chego ao camarim e tomo uma cerveja. Eu não sou esta personagem e nem tenho os problemas dela”. Ah, os franceses e seu apego ao distanciamento.

Quando abordaram um tema semelhante com Elis Regina, ela ficou mais ao lado de Clarice do que de Isabelle Huppert. Uma repórter de tevê quis saber se ela fazia terapia. Elis respondeu que não mais, que havia se dado alta. “Sou uma pessoa insegura e talvez eu não possa me tratar disso. Quem me garante que eu não cante justamente por ser insegura? Imagine se um dia algum psicanalista disser que eu estou curada da minha insegurança e daí eu abro a boca e não sai voz alguma. Não quero correr este risco”. Em nome do seu canto, parece ter corrido outros.

Poderíamos passar a noite aqui, lembrando casos e casos de artistas que parecem tirar tudo de letra e de outros que, ao contrário, não sentem-se realizados até que o sangue escorra. Sei que o rosto fantasmagórico de Heath Ledger travestido de Coringa vai me acompanhar ainda por muito tempo, como um alerta de que todos nós vivemos nos becos escuros de uma Gotham City de onde nenhum Batman vai nos resgatar. Por isso, todo cuidado é pouco. Que a gente possa, pra sempre, ler Clarice e ouvir Elis. Mas, acima de tudo, que a gente possa tomar a cervejinha gelada da Isabelle Huppert com a reconfortante certeza de que quando a cortina fecha é porque acabou mesmo.

domingo, julho 20, 2008

Só mais um dia

E então, numa manhã qualquer, você acorda mais ou menos no horário de todas as outras manhãs. A noite não foi assim tão boa. Você observou os números luminosos do rádio-relógio que tingiam de verde claro o teto do quarto, estava acordado ainda quando a luminosidade da manhã se infiltrou por aquele pedacinho aberto da cortina, que você prometeu fechar antes de se deitar, mas acabou esquecendo. Você se levanta, caminha até o banheiro, olha no espelho e ainda se julga um pouco íntimo daquela figura que o espelho lhe devolve. Escova os dentes, lembra-se de que seu dentista recomendou movimentos mais suaves com a escova, mas naquela manhã você não está nada preocupado com as suas gengivas – se alguma parte do seu corpo vai sangrar um pouco naquele dia, que sejam elas.

Você apanha o jornal no corredor e se ajeita em um canto do sofá em que ainda bate um pouco de sol. Como em todas as outras manhãs da sua vida, você vai ler o jornal de trás para a frente, como se nunca estivesse suficientemente pronto para o impacto de alguma notícia que só poderia ocupar a primeira página. Quando você finalmente chega àquele ponto do jornal do qual todas as outras pessoas provavelmente partiram, você já está um pouco cansado de ler e nada parece ser muito importante mesmo.

É uma manhã exatamente igual a todas as outras, mas você sente que no fundo talvez não seja. Só que você resolve não pensar a respeito, não naquela hora.
E seu dia, então, vagarosamente começa. Dali a pouco o telefone vai tocar, você vai ligar o computador e ver que sua caixa de correspondência está repleta de e-mails que não merecem respostas, o telefone vai tocar de novo, e desta vez você torce que seja para você, o dia avança, você sabe que logo vai precisar sair à rua, talvez tomar um banho antes, ou não, em pouco tempo vai precisar procurar alguma coisa para comer e quando pensa no quê nada lhe vem à cabeça, a não ser aquela sensação de que você está fazendo tudo como sempre fez, mas ainda há algo estranho naquele dia tão rotineiro.

Você almoça, toma duas xícaras de café como sempre, volta para casa caminhando devagar, e percebe que está na hora de trabalhar. Trabalha e é até possível que sinta-se feliz com o que acabou de produzir. Talvez nesta hora enfim chegue um e-mail que mereça resposta, o telefone toca de novo e desta vez é mesmo para você, você conversa, combina alguma coisa para a noite já prevendo que dali a pouco vai desmarcar porque os dias são cheios de imprevistos, liga a televisão porque os noticiários da noite estão começando e ainda que você já tenha visto tudo pela internet, é sempre bom conferir. E finalmente, ainda que você não queira, é preciso pensar um pouco naquele incômodo que o acompanhou durante aquele dia que ainda continua rotineiro.

E então você vê que era apenas um encanto que se quebrou, uma coisinha de nada, uma chama que se apagou tão devagarzinho como se ela não se sentisse no direito de incomodar você. Como se ela nem mesmo fizesse parte de você. Era isso, então, você diz. E era tão pouco. E era quase um nada. E se acabou. No dia seguinte, você vai acordar mais ou menos no horário em que acorda em quase todas as manhãs. E no mesmo instante vai saber que sem aquele encanto, aquela coisinha de nada, aquela chama que nem produziu assim tanto calor, a vida nunca mais será a mesma. Vai ser um dia igual a todos os outros, você sabe disso. E o mais vazio de todos os que você já enfrentou. E você sabe disso também. E contra tudo e contra todos, e contra você mesmo, você se levanta.

sexta-feira, julho 18, 2008

A liberdade e a frigideira

Em seu blog Psicanálise Presente (http://www.psicanalisepresente.blogspot.com/), o psiquiatra e amigo Márlio Vilela Nunes escreveu, esta semana, um artigo muito oportuno sobre um fenômeno sorrateiro que está se tornando uma das principais marcas destes dias que correm: a nossa propensão em abrir mão das liberdades individuais em troca da segurança coletiva. Adotando como ponto de partida para o seu raciocínio a implantação da lei seca, o psiquiatra narra, em um texto de reflexão obrigatória, como o governo de alguns países, em nome do bem-estar da coletividade, avança de maneira impiedosa sobre algumas conquistas individuais que ajudaram a definir o nosso conceito de civilização. Em nome de um mundo mais seguro e menos hostil, segundo ele, estaríamos todos nós, conscientemente ou não, endossando uma prática que, em pouco tempo, poderá aniquilar a nossa identidade – e, com ela, a nossa chance de encontrar alguma felicidade pessoal. A se desenhar este futuro que o psiquiatra repudia, talvez nos encontremos seguros em algum lugar lá na frente, mas jamais livres. E ainda menos felizes.

Não pretendo aqui falar mais sobre o artigo. O assunto é urgente e justifica uma visita àquele blog. Mas quando terminei de ler o texto, talvez por algum mecanismo de auto-defesa me veio à mente uma história ocorrida há muitos anos e que também versa, embora de forma bastante prosaica, sobre o conceito individual de liberdade. Eu era recém-formado, morava em Jundiaí e viajava todos os dias para trabalhar no Jornal da Tarde, aqui em São Paulo. Em uma ocasião qualquer, quando parei com o carro num posto de pedágio na Via Anhanguera, o atendente quis saber se eu estava indo para São Paulo. Respondi que sim. Ele então perguntou se eu não me incomodaria de dar uma carona para um seu colega, também atendente, que tinha deixado o emprego naquele momento e precisava ir até São Paulo. Concordei em levá-lo.

Um segundo depois subia no meu carro um homem de seus trinta anos, ainda com o jaleco do pedágio, e aparentemente muito disposto a conversar. Não me lembro do nome dele, mas posso afirmar, sem receio, que se tratava de uma daquelas pessoas sempre prontas a responder as perguntas que elas mesmas fazem, sem dar qualquer chance de diálogo ao interlocutor, no caso eu. Depois de condensar toda sua vida em um relato de uns dez minutos, ele finalmente decidiu perguntar o que eu fazia. Consegui dizer que era jornalista, morava em Jundiaí, trabalhava em um jornal de São Paulo e, por isso mesmo, estava pensando em me mudar para a capital. Acrescentei que na semana seguinte começaria a procurar apartamento.

“Não precisa procurar mais”, ele disse. “Já tenho um lugar para você morar. Minha sogra mora na Vila Brasilândia e está alugando dois cômodos no fundo da casa dela. É para lá que você vai. Hoje mesmo vou falar com ela. Vou dizer que você é um velho conhecido e pedir para que ela faça um precinho camarada”.

Enquanto eu tentava argumentar que ele não precisava se preocupar comigo, ele já estava descrevendo o bairro, a entrada da casa e o corredor estreito que me levaria até os meus dois cômodos no fundo, os hábitos interioranos da sogra, o pequeno portão verde que separaria a minha habitação do corpo principal da casa onde ela vivia, a tranqüilidade que eu sentiria em poder sair sabendo que a sogra zelaria pelos meus dois cômodos e, acima de tudo, um aluguel que não pesaria tanto no meu bolso. “Fica aí com o meu telefone”, disse ele enquanto se apressava em me dar um papelzinho. “Você vai gostar muito de morar lá, eu garanto. Você trabalha de dia ou de noite?”, ele me perguntou.

Respondi que trabalhava à noite.

“Melhor ainda. Você vai poder chegar em casa, abrir uma cervejinha e fritar dois gomos de lingüiça antes de dormir. Liberdade, para mim, é isso: poder chegar em casa e fritar dois gomos de lingüiça sem ninguém para me encher o saco”.

Chegamos à Marginal Tietê e ele pediu para descer no primeiro ponto de ônibus. Não me lembro do que fiz com o papelzinho em que ele anotou o telefone. Alguns meses depois, me mudei para São Paulo. Não fui para a Vila Brasilândia. Aluguei um apartamento na Brigadeiro Luís Antonio, onde morei por nove anos antes de me mudar para a Vila Madalena. E, neste tempo todo, nos dois apartamentos em que vivi aqui em São Paulo, não me lembro de ter chegado em casa, uma única noite que fosse, e fritado dois gomos de lingüiça.

Talvez eu ainda não tenha aprendido a ser livre.

terça-feira, julho 15, 2008

Com medo de farda

Ando assustado com a polícia. Talvez não haja nenhuma novidade nesta afirmação, então o correto seria dizer que ando ainda mais assustado com a polícia. Passei a última semana ocupado com um interesse mórbido - o de me informar sobre todos os erros policiais, ao menos aqueles que chegaram à grande mídia, e que resultaram na morte de gente jovem e inocente. Primeiro, o caso do garoto de três anos, fuzilado no Rio de Janeiro quando os policiais confundiram o carro de sua mãe com o de bandidos em fuga. Depois, o de uma jovem do Paraná, morta com um tiro na cabeça em situação semelhante. Na seqüência, a da bela engenheira carioca, misteriosamente desaparecida após cruzar com alguns policiais na saída de um túnel no Rio. Sem falar no caso dos soldados que invadiram uma escola e espancaram adolescentes, entre eles um com deficiência física, e num outro ocorrido no fim de semana, em que a polícia chegou com tudo em uma festa na cidade de Três Rios, no Rio de Janeiro, lançou spray de pimenta sobre crianças e esmurrou uma senhora de 60 anos.

Se todos estes fatos tivessem ocorrido de maneira mais espaçada, eles engrossariam alguma estatística qualquer e só diriam respeito aos poucos interessados. Mas como todos se deram em pouco menos de uma semana, fica difícil fechar os olhos diante desta barbárie institucionalizada e continuar andando pelas ruas sem medo de sermos sumariamente fuzilados por um soldado desavisado. Depois, alguma autoridade irá pedir desculpas aos nossos familiares, alegar que a tropa anda estressada e que, desgraçadamente, fomos confundidos com um criminoso procurado. Mais algum dia e a tal autoridade, ciente da impunidade deste país, vai acrescentar o seguinte: também, quem mandou estar no caminho da polícia bem naquela hora? SE estivesse quietinho em casa, a esta hora ele provavelmente estaria vivo.

Há pouco tempo, entrevistei vários adolescentes, de diversas classes sociais, num trabalho de pesquisa para a produção da peça Cidadão de Papel, baseada no livro do Gilberto Dimenstein e produzida pelo grupo Os Satyros. Alguns muito ricos, outros muito pobres. Fiz praticamente as mesmas perguntas para todos os jovens e pude constatar que a polícia havia conseguido, enfim, eliminar o famoso abismo social entre as classes: todos, pobres e ricos, tinham igual pavor dos meganhas. Entre os mais de 20 tópicos levantados pela pesquisa, o medo da violência policial foi o único a aproximar estes dois universos. Garotos do Alto de Pinheiros e seus pares do Jardim Pantanal, endereços separados por quilômetros de estrada e anos-luz de renda familiar, só concordaram diante do pavor de topar com uma blitz policial em uma noite qualquer.

Sei bem do que eles estavam falando. Fui parado duas vezes pela polícia. Em uma delas, estava com um casal de jornalistas a pouco mais de 200 metros da minha casa. Quando um policial me perguntou onde eu morava, foi mais fácil apontar o edifício do que dar o endereço. Eu e o casal ficamos rendidos, com as mãos na parede e as pernas separadas, enquanto o carro era revistado. A operação só não foi mais longe porque, ao pedirem nossos documentos, viram logo de cara nossas carteiras de jornalistas profissionais. O tratamento, então, mudou: a truculência deu lugar a um respeito hipócrita e achei que isso foi ainda pior que a humilhação.

Na segunda vez eu me encontrava na companhia do Gustavo Fioratti, repórter da Revista da Folha que há poucas semanas escreveu uma brilhante matéria sobre os carroceiros de São Paulo. Era um sábado, pouco depois das oito da noite, e fomos abordados enquanto nos dirigíamos ao cinema do Shopping Frei Caneca. Novamente ficamos os dois ali, mãos na parede, pernas separadas e com fuzis apontados para nossas cabeças, com soldados doidinhos para nos enviar dali para um show solo do Kurt Cobain. Tiraram tudo que era possível do carro e, ao constatar que estávamos limpos, nos mandaram seguir.

Entendo perfeitamente que zelar pela ordem pública deve ser missão da polícia e, nesta hora, brancos e negros, ricos e pobres, empregados ou não, devem ter o mesmo tratamento. Mas eu me pergunto se é realmente necessário expor as pessoas a tamanha humilhação? Pedir para que alguém, às oito da noite, com o comércio todo aberto e as calçadas cheias de gente, seja colocado contra a parede e com uma arma apontada para a cabeça, me parece muito mais uma encenação armada para humilhar e intimidar o cidadão do que para efetivar algum tipo de busca. É um aparato criado para apontar previamente qualquer um como culpado. E cabe a nós, com as mãos na cabeça, as pernas abertas e um fuzil apontado para o nariz, tentar provar a nossa inocência. Me parece um jogo injusto e muito, muito desconfortável.

quinta-feira, julho 10, 2008

Prende e solta

Eu acho que a Polícia Federal deveria, antes de realizar tantas prisões nestas famosas e bem nomeadas operações contra a corrupção, consultar os ministros do Supremo Tribunal Federal para saber quanto tempo os presos vão ficar na cadeia. Porque, se for para eles ficarem presos um dia só, então seria melhor nem prender. A gente acompanha o noticiário e fica com cara de palhaço. Os federais realizam umas prisões cinematográficas, cheias de pompas, truculência e exibicionismo - um espetáculo, creio eu, forjado para nos transmitir a falsa sensação de que está sendo feito algum tipo de justiça neste país. Mas, como todo espetáculo sem conteúdo e seriedade, ele não se sustenta em pé por muito tempo.

Depois das prisões, os jornais trazem páginas e páginas com o histórico das operações fraudulentas praticadas por estes grandes banqueiros e megainvestidores. A gente lê todas aquelas páginas, todos aqueles gráficos, presta atenção no noticiário da televisão, ouve os comentaristas econômicos e, no fim do dia, finalmente concorda que o lugar deles parece ser mesmo o xilindró. Afinal, tivemos acesso a telefonemas grampeados, a práticas de suborno, a documentos que comprovam o envio de divisas para ilhas fiscais, a testemunhas compradas e tudo mais. Quando finalmente estamos convencidos de que as prisões foram justificadas, vem um ministro do Supremo e manda soltar todo mundo.

Não entendo nada de direito, nem de administração pública e nem de negociatas. Só estou procurando usar o bom-senso: se vai soltar mesmo amanhã, por que prender hoje? De novela e filminhos de ação de Hollywood a tevê já está cheia e a gente não precisa ter esta sensação estranha de que a justiça, para os ricos, dura apenas 24 horas neste país.

quarta-feira, julho 09, 2008

A crítica teatral e professora Maria Lúcia Candeias foi a primeira a escrever sobre A Coleira de Bóris, minha peça mais recente, em cartaz no Espaço dos Satyros Um até o fim de julho. Depois de tecer considerações seguras sobre o texto, a direção e o desempenho dos atores, ela termina sua crítica com estas palavras: “Se você não faz questão de entender totalmente o que vê, não perca este espetáculo”.

Fiquei pensando muito nesta frase. Em outros tempos, talvez eu tivesse ficado preocupado com ela. Hoje, aprendi a encará-la como um elogio. Porque escrever, a cada dia, está se tornando mais e mais um exercício de tentar compreender aquilo que é incompreensível. Ou melhor: o exercício de tentar, por meio da escrita, decifrar tudo aquilo que a vida nos entrega em códigos. Durante os meses que passei escrevendo A Coleira de Bóris, não foram poucas as vezes em que me vi perdido, no escuro, sem saber quem eram aqueles dois personagens e suas motivações na peça. Quando isso acontecia, eu precisava desligar o computador e passar dias, semanas até, ocupando meu tempo com outras coisas, como se no disco rígido do meu PC o destino dos dois personagens estivesse, sozinho, tentando encontrar seu caminho entre placas, fusíveis, condutores e um emaranhado de fios coloridos. Este distanciamento era necessário para que algumas coisas se acomodassem dentro do seu próprio ritmo. Ao voltar ao texto, novas luzes estavam acesas.

Quando eu estava exatamente na metade da peça, tive a sorte de participar de um debate com o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra sobre a escrita dramática. Aproveitei uma brecha para perguntar a ele se um autor precisava entender absolutamente tudo do que escrevia. Ele parou, pensou um pouco e respondeu assim: “Eu só escrevo sobre aquilo que eu não entendo. Sobre aquilo que eu sei, já não me interessa mais escrever”. Agradeci, voltei para casa e, em questão de dias, A Coleira de Bóris ganhava seu ponto final.

Hoje eu vejo que minha produção teatral (que as pessoas julgam ser mais numerosa do que realmente é) é quase toda ela fruto de vivências pessoais – o contrário talvez fosse surpreendente. Minha primeira peça, que hoje eu encaro com algumas restrições, veio ao mundo à fórceps após a morte de um grande amigo, dessas pessoas que, de tão queridas, você acha que nunca mais vai precisar viver longe delas. Jovem, bonito, talentoso e muito, muito querido, ele foi levado por um aneurisma que venceu alguns dos principais neurocirurgiões de São Paulo. Achei aquela morte tão estúpida (como todas talvez) e tão inoportuna (como todas seguramente) que passei anos tentando digeri-la. A digestão se fez por meio de um texto teatral que hoje eu vejo como raivoso, vingativo e carregado de dor e preconceito em estado bruto. No momento estou novamente às voltas com um novo texto em que tento transitar por dois episódios doloridos – haja masoquismo! Porém, a experiência me ensinou que o teatro não é lugar de acertar as contas com ninguém, muito menos com o destino. Por isso deixei o tempo passar, o estranhamento se transmutar em aceitação e a revolta ceder a um certo conformismo. Mais distanciado de tudo, talvez eu consiga compartilhar com os outros não mais a dor, mas uma espécie de quietude, ainda que incômoda, que surge quando a dor nos dá uma certa trégua.

O mais surpreendente em tudo isso é que não precisamos de tempo para compreender a alegria. Sua assimilação se dá de forma muito mais rápida, porque no fundo talvez nos julguemos merecedores de alguma felicidade, ainda que ela venha acompanhada de certa culpa. Mas a tristeza necessita de intérprete, de explicação, de alguém que nos diga e nos faça aceitar por que ela decidiu atingir justamente a nós, que estávamos razoavelmente quietos em nosso canto e sem mexer com ninguém. Talvez haja algo de infantil neste raciocínio, mas se a alegria pede chope, a tristeza pede colo.

Escrever então tem sido, para mim, a prática quase diária de devolver ao mundo de forma relativamente elegante aquilo que a vida nos força a engolir. Ou aquilo que ficou parado em nossas gargantas. Aquilo que entalou e já não sobe e nem desce mais. Aquilo que agora apenas dói.

segunda-feira, julho 07, 2008

As quatro verdades do mundo*

Um grande amigo me disse que só existem quatro verdades neste mundo. Aqui vão elas:

1. Mamão solta
2. Banana prende
3. Branco engorda
4. Preto emagrece

Segundo ele, todo o resto é bobagem da nossa cabeça. Com estas quatro verdades em mente, seremos felizes para sempre. Se não der certo, ele manda dizer que aceita reclamações, mas não devolve o dinheiro.

* Estes tempos politicamente corretos são muito complicados. Recebi um e-mail irado, dizendo que este post é racista. Então, para nos adequarmos à ética vigente, esclareço que meu amigo quis dizer que são as roupas de cor branca que transmitem a impressão de que a gente está mais gordo, enquanto que os trajes de cor preta afinam um pouco a nossa silhueta. Agora está tudo explicadinho, não é? Pena que assim não tem graça alguma, mas temos de satisfazer aos raivosos também!!!

terça-feira, julho 01, 2008

Com medo da lei seca

Na noite de domingo, após sair da última sessão do genial Wall-e, o robozinho que é capaz de cativar qualquer um mesmo em cópias dubladas, eu e dois grandes amigos, o ator e professor Alberto Guzik e o jornalista Ricardo Moreno, paramos em um restaurante para a tradicional saideira do domingo. Passava um pouco das onze da noite. O Guzik pediu uma cerveja longneck, o Ricardo foi de caipirinha de lichia e eu, bem...como naquela noite eu estava dirigindo, pedi um copo de água e aceitei dar no máximo dois goles na cerveja do Guzik, linda, gelada, amarelinha e irresistível. Naquela hora eu senti o peso da lei seca e, ainda que sob o risco de atrair uma chuva de críticas à minha opinião, gostaria de explicar aqui como eu me senti naquele momento. Eu me senti infeliz.

Concordo com um outro grande amigo que costuma dizer que os números de acidentes de trânsito no Brasil são pornográficos. Concordo com qualquer medida, lei ou decreto que visem diminuir tais estatísticas e preservar a vida de motoristas e pedestres, principalmente dos mais jovens, que parecem ser as principais vítimas desta guerra que se trava nas ruas do País. Concordo também que tolerância zero é tolerância zero, sem brechas, exceções ou jeitinhos. Mas, apesar de tudo isso, continuo achando que esta lei ainda é um pouco difícil de engolir - e não sei se ela se tornará mais digestiva com o tempo, pois o problema não parece estar em sua adaptação, mas sim em suas raízes.

É ridículo acreditar que alguém possa ser flagrado pelo bafômetro por ter usado Listerine, ser diabético, tomado antidepressivos ou, o que é pior, comido dois bombons recheados de licor. Com apenas um chopinho a gente já corre o risco de perder a carteira de habilitação e ainda arcar com uma multa de quase mil reais. Conversei hoje com um psiquiatra, estudioso de vários tipos de drogas e seus efeitos sobre o organismo humano a partir de certas dosagens. Ele diz que não há consenso médico que classifique como alcoolizada um pessoa que tenha ingerido um copo de chope. Parece pouco. Sei que se a lei usasse como parâmetro a medida mínima de dois copos de chope, ainda assim haveria reclamações - até porque somente os outros ficam bêbados. Nós, no máximo, ficamos alegrinhos, e olhe lá.

Repito que sou favorável a qualquer lei criada para diminuir o número de acidentes de trânsito, mas esta me parece invasiva demais, penalizante demais, espetaculosa demais. Ou seja: um cenário propício para casos de propina que nosso jeitinho brasileiro bem sabe como administrar. Acredito que esta lei, da maneira como vem sendo aplicada, só reforça a idéia de que o mundo está se tornando um lugar cada vez menos prazeroso, cada vez mais vigiado e repressor.

Naquele domingo à noite, ao lado do Guzik e do Ricardinho, tomei dois goles tão pequeninos de chope que parecia que estava tomando a vacina Sabin: deu para molhar a língua, mas não para engolir. Na volta, tive de cruzar toda a Vila Madalena para deixar o Ricardinho na casa dele. Fiz este trajeto com medo de ser parado pela polícia, eu olhava para cada esquina da Vila com tamanho pavor de ser flagrado que parecia que eu estava transportando um cadáver no porta-malas. Mas não um cadáver qualquer: um cadáver que eu mesmo havia produzido. Achava que a qualquer momento uma viatura ia interceptar o meu caminho, um policial desceria com um bafômetro, meu carro seria guinchado e eu passaria a noite na cadeia por causa daqueles dois golinhos de chope. E talvez nunca mais pudesse dirigir. E é isso que me dá medo nesta lei e no mundo de hoje: parece haver uma ação orquestrada para que a gente viva acuado, temeroso, marginalizado e com aquela sensação de que está constantemente fazendo algo de errado.

Eu trabalhei, há alguns anos, com um famoso jornalista que matou a namorada com dois tiros nas costas. E continua em liberdade. Se eu tivesse sido pego no domingo, talvez fosse detido após meus dois goles de cerveja. Repito que não quero ser contra a lei, mas que mundo é este em que dois goles de cerveja são mais graves do que dois tiros pelas costas? É para dar medo ou estou exagerando?