quarta-feira, julho 09, 2008

A crítica teatral e professora Maria Lúcia Candeias foi a primeira a escrever sobre A Coleira de Bóris, minha peça mais recente, em cartaz no Espaço dos Satyros Um até o fim de julho. Depois de tecer considerações seguras sobre o texto, a direção e o desempenho dos atores, ela termina sua crítica com estas palavras: “Se você não faz questão de entender totalmente o que vê, não perca este espetáculo”.

Fiquei pensando muito nesta frase. Em outros tempos, talvez eu tivesse ficado preocupado com ela. Hoje, aprendi a encará-la como um elogio. Porque escrever, a cada dia, está se tornando mais e mais um exercício de tentar compreender aquilo que é incompreensível. Ou melhor: o exercício de tentar, por meio da escrita, decifrar tudo aquilo que a vida nos entrega em códigos. Durante os meses que passei escrevendo A Coleira de Bóris, não foram poucas as vezes em que me vi perdido, no escuro, sem saber quem eram aqueles dois personagens e suas motivações na peça. Quando isso acontecia, eu precisava desligar o computador e passar dias, semanas até, ocupando meu tempo com outras coisas, como se no disco rígido do meu PC o destino dos dois personagens estivesse, sozinho, tentando encontrar seu caminho entre placas, fusíveis, condutores e um emaranhado de fios coloridos. Este distanciamento era necessário para que algumas coisas se acomodassem dentro do seu próprio ritmo. Ao voltar ao texto, novas luzes estavam acesas.

Quando eu estava exatamente na metade da peça, tive a sorte de participar de um debate com o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra sobre a escrita dramática. Aproveitei uma brecha para perguntar a ele se um autor precisava entender absolutamente tudo do que escrevia. Ele parou, pensou um pouco e respondeu assim: “Eu só escrevo sobre aquilo que eu não entendo. Sobre aquilo que eu sei, já não me interessa mais escrever”. Agradeci, voltei para casa e, em questão de dias, A Coleira de Bóris ganhava seu ponto final.

Hoje eu vejo que minha produção teatral (que as pessoas julgam ser mais numerosa do que realmente é) é quase toda ela fruto de vivências pessoais – o contrário talvez fosse surpreendente. Minha primeira peça, que hoje eu encaro com algumas restrições, veio ao mundo à fórceps após a morte de um grande amigo, dessas pessoas que, de tão queridas, você acha que nunca mais vai precisar viver longe delas. Jovem, bonito, talentoso e muito, muito querido, ele foi levado por um aneurisma que venceu alguns dos principais neurocirurgiões de São Paulo. Achei aquela morte tão estúpida (como todas talvez) e tão inoportuna (como todas seguramente) que passei anos tentando digeri-la. A digestão se fez por meio de um texto teatral que hoje eu vejo como raivoso, vingativo e carregado de dor e preconceito em estado bruto. No momento estou novamente às voltas com um novo texto em que tento transitar por dois episódios doloridos – haja masoquismo! Porém, a experiência me ensinou que o teatro não é lugar de acertar as contas com ninguém, muito menos com o destino. Por isso deixei o tempo passar, o estranhamento se transmutar em aceitação e a revolta ceder a um certo conformismo. Mais distanciado de tudo, talvez eu consiga compartilhar com os outros não mais a dor, mas uma espécie de quietude, ainda que incômoda, que surge quando a dor nos dá uma certa trégua.

O mais surpreendente em tudo isso é que não precisamos de tempo para compreender a alegria. Sua assimilação se dá de forma muito mais rápida, porque no fundo talvez nos julguemos merecedores de alguma felicidade, ainda que ela venha acompanhada de certa culpa. Mas a tristeza necessita de intérprete, de explicação, de alguém que nos diga e nos faça aceitar por que ela decidiu atingir justamente a nós, que estávamos razoavelmente quietos em nosso canto e sem mexer com ninguém. Talvez haja algo de infantil neste raciocínio, mas se a alegria pede chope, a tristeza pede colo.

Escrever então tem sido, para mim, a prática quase diária de devolver ao mundo de forma relativamente elegante aquilo que a vida nos força a engolir. Ou aquilo que ficou parado em nossas gargantas. Aquilo que entalou e já não sobe e nem desce mais. Aquilo que agora apenas dói.

5 comentários:

Fabrício Muriana disse...

Seria legal ver mais textos seus aqui no blog comentando tanto a crítica quanto o seu processo de criação.
Mas entendo o quanto isso deve ser chato, lá pro terceiro ou quarto texto sobre o mesmo tema.
Grande Abraço

Anônimo disse...

gostaria de ver a coleira. que dia voce vai estar la nos satyros? beijos, querido.

Só no blog disse...

Oi, Fabrício, mas eu penso em fazer isso, sim. Em escrever mais sobre o processo de criação, embora eu tenha medo de que fique um pouco repetitivo para o leitor. Em todo caso, a gente pode encontrar um viés diferente a cada post, não é mesmo? Valeu mesmo pela visita.

Só no blog disse...

E aí, César, tudo bem? Olha, diz aí um dia em que você possa ir que eu tento passar lá também. Este próximo fim de semana tá complicado pra mim, mas podemos tentar no próximo. Enquanto isso, vamos nos falando, né?

Anônimo disse...

ai, mas que necessidade de querer "entender" tudo. Que mania. Quando meu filho Henrique tinha uns 5 anos me pediu para levá-lo ao Teatro Municipal para ver um espetáculo "Chiquinha Gonzaga", com Rosmaria Murtinho. Num certo momento colocou a cabeça no meu colo e desatou a chorar. Depois, não perdia um capítulo de uma minisérie que passava na Globo, se apaixonou pela nossa pianista. Agora, eu te pergunto, o que uma criança de 5 anos pode "entender" num espetáculo para adultos. Se a alma e o coração da gente não estiver aberto, não há obra de arte que vai sensibilizar. E arte meu querido é pra isso, pra nos emocionar, pra nos fazer feliz, pra nos fazer rir, chorar e chocar, também. Hoje, aos 15, Henrique estuda música e acaba de formar de uma banda.Foi picado pelo bichinho da arte, Sergio e isso me deixa muito feliz. Um dia te apresento. Ah! Adorei o comentário da Bravo deste mês, merecido. beijos Rachel Rocha