Poucos dias antes de morrer de uma overdose acidental de medicamentos, em janeiro deste ano, o ator australiano Heath Ledger revelou em uma entrevista que não conseguia mais dormir e nem se alimentar direito após ter feito o Coringa no filme Batman, O Cavaleiro das Trevas. A gente lê este tipo de declaração, que hoje em dia já se tornou um lugar-comum, e não costuma dar muito crédito a ela. E depois é obrigado a morder a língua repetidas vezes. Assisti ao Batman na noite de segunda-feira e quase que eu não consigo mais dormir depois de ver a estupenda criação de Ledger para o vilão dos quadrinhos. Ensandecido, apaixonado, desmedido, temerário, antológico... poderíamos usar todo o estoque de adjetivos disponíveis no Aurélio para definir o trabalho do ator sem medo de incorrer em grandes exageros. Mas acho que apenas um adjetivo dá conta desta tarefa: perigoso.
Eu sempre acreditei que os artistas soubessem o caminho de volta em qualquer situação, que eles poderiam mergulhar nos abismos mais indevassáveis no encalço de seus personagens e depois voltar de lá com as mãos nas costas. Hoje eu acho que não é bem assim. Paga-se um preço alto para adentrar neste terreno perigoso em que a arte parece fazer fronteira com a insanidade. Ou com a obsessão.
Lembro-me de uma vez em que uma jovem e bela repórter do Jornal da Tarde, Paola Gentile, foi entrevistar a Bibi Ferreira a respeito do musical Piaf, então um grande sucesso na cidade. Era uma manhã de segunda-feira e a própria Bibi abriu a porta para a repórter. Estava vestida de preto, com chinelos baixos que reforçavam seu caminhar arrastado, tinha um aspecto alquebrado como o da cantora francesa em seus últimos dias. “Desculpe-me”, disse Bibi à repórter. “Ela costuma ir embora mais cedo, mas desta vez resolveu ficar no meu pé”. O “ela” a quem Bibi se referia era ninguém menos que a própria Piaf.
Desde aquele dia passei a cultivar um certo fascínio, às vezes quase mórbido, por este momento na vida do artista em que ele parece não delimitar com precisão em que momento a vida real precisa se desvencilhar do personagem para que os dois, vida e personagem, saiam ilesos desta confusão. Clarice Lispector escreveu, certa vez, que costumava associar seus defeitos às estruturas de um grande edifício. Por isso mesmo tinha receio de mexer com eles. “De repente, eu removo justamente o defeito que é a estrutura que sustenta o edifício inteiro e tudo virá abaixo”. Vindo de Clarice, é óbvio que isso foi dito de maneira muito mais elegante e poderosa, mas a imagem continua sendo a mesma.
Participei de uma entrevista coletiva com a atriz francesa Isabelle Huppert, quando ela esteve no Sesc Anchieta para interpretar o monólogo 4.48, de Sarah Kane, que a obrigava a permanecer imóvel no palco por quase duas horas, vivendo os tormentos de uma suicida. Tive a chance de perguntar a ela que tipo de memória ou sensação ela carregava para o coxia quando o espetáculo terminava. “Não levo nada. Isto aqui é trabalho. Chego ao camarim e tomo uma cerveja. Eu não sou esta personagem e nem tenho os problemas dela”. Ah, os franceses e seu apego ao distanciamento.
Quando abordaram um tema semelhante com Elis Regina, ela ficou mais ao lado de Clarice do que de Isabelle Huppert. Uma repórter de tevê quis saber se ela fazia terapia. Elis respondeu que não mais, que havia se dado alta. “Sou uma pessoa insegura e talvez eu não possa me tratar disso. Quem me garante que eu não cante justamente por ser insegura? Imagine se um dia algum psicanalista disser que eu estou curada da minha insegurança e daí eu abro a boca e não sai voz alguma. Não quero correr este risco”. Em nome do seu canto, parece ter corrido outros.
Poderíamos passar a noite aqui, lembrando casos e casos de artistas que parecem tirar tudo de letra e de outros que, ao contrário, não sentem-se realizados até que o sangue escorra. Sei que o rosto fantasmagórico de Heath Ledger travestido de Coringa vai me acompanhar ainda por muito tempo, como um alerta de que todos nós vivemos nos becos escuros de uma Gotham City de onde nenhum Batman vai nos resgatar. Por isso, todo cuidado é pouco. Que a gente possa, pra sempre, ler Clarice e ouvir Elis. Mas, acima de tudo, que a gente possa tomar a cervejinha gelada da Isabelle Huppert com a reconfortante certeza de que quando a cortina fecha é porque acabou mesmo.
Eu sempre acreditei que os artistas soubessem o caminho de volta em qualquer situação, que eles poderiam mergulhar nos abismos mais indevassáveis no encalço de seus personagens e depois voltar de lá com as mãos nas costas. Hoje eu acho que não é bem assim. Paga-se um preço alto para adentrar neste terreno perigoso em que a arte parece fazer fronteira com a insanidade. Ou com a obsessão.
Lembro-me de uma vez em que uma jovem e bela repórter do Jornal da Tarde, Paola Gentile, foi entrevistar a Bibi Ferreira a respeito do musical Piaf, então um grande sucesso na cidade. Era uma manhã de segunda-feira e a própria Bibi abriu a porta para a repórter. Estava vestida de preto, com chinelos baixos que reforçavam seu caminhar arrastado, tinha um aspecto alquebrado como o da cantora francesa em seus últimos dias. “Desculpe-me”, disse Bibi à repórter. “Ela costuma ir embora mais cedo, mas desta vez resolveu ficar no meu pé”. O “ela” a quem Bibi se referia era ninguém menos que a própria Piaf.
Desde aquele dia passei a cultivar um certo fascínio, às vezes quase mórbido, por este momento na vida do artista em que ele parece não delimitar com precisão em que momento a vida real precisa se desvencilhar do personagem para que os dois, vida e personagem, saiam ilesos desta confusão. Clarice Lispector escreveu, certa vez, que costumava associar seus defeitos às estruturas de um grande edifício. Por isso mesmo tinha receio de mexer com eles. “De repente, eu removo justamente o defeito que é a estrutura que sustenta o edifício inteiro e tudo virá abaixo”. Vindo de Clarice, é óbvio que isso foi dito de maneira muito mais elegante e poderosa, mas a imagem continua sendo a mesma.
Participei de uma entrevista coletiva com a atriz francesa Isabelle Huppert, quando ela esteve no Sesc Anchieta para interpretar o monólogo 4.48, de Sarah Kane, que a obrigava a permanecer imóvel no palco por quase duas horas, vivendo os tormentos de uma suicida. Tive a chance de perguntar a ela que tipo de memória ou sensação ela carregava para o coxia quando o espetáculo terminava. “Não levo nada. Isto aqui é trabalho. Chego ao camarim e tomo uma cerveja. Eu não sou esta personagem e nem tenho os problemas dela”. Ah, os franceses e seu apego ao distanciamento.
Quando abordaram um tema semelhante com Elis Regina, ela ficou mais ao lado de Clarice do que de Isabelle Huppert. Uma repórter de tevê quis saber se ela fazia terapia. Elis respondeu que não mais, que havia se dado alta. “Sou uma pessoa insegura e talvez eu não possa me tratar disso. Quem me garante que eu não cante justamente por ser insegura? Imagine se um dia algum psicanalista disser que eu estou curada da minha insegurança e daí eu abro a boca e não sai voz alguma. Não quero correr este risco”. Em nome do seu canto, parece ter corrido outros.
Poderíamos passar a noite aqui, lembrando casos e casos de artistas que parecem tirar tudo de letra e de outros que, ao contrário, não sentem-se realizados até que o sangue escorra. Sei que o rosto fantasmagórico de Heath Ledger travestido de Coringa vai me acompanhar ainda por muito tempo, como um alerta de que todos nós vivemos nos becos escuros de uma Gotham City de onde nenhum Batman vai nos resgatar. Por isso, todo cuidado é pouco. Que a gente possa, pra sempre, ler Clarice e ouvir Elis. Mas, acima de tudo, que a gente possa tomar a cervejinha gelada da Isabelle Huppert com a reconfortante certeza de que quando a cortina fecha é porque acabou mesmo.
4 comentários:
que texto genial, cara! simplesmente genial. obrigado. beijão, guza. ah, independentemente das acidulações do querido rimoreno e das paixões da emocionante rachel, o teu texto sobre o dia normal e a quebra dessa pequena coisa que nunca é pequena é ressonante, profundo. se você quiser, tem lá o germe de um romance. até amanhã! guza [[[]]]
Brigadão, Guza. Valeu mesmo, acho que o coringa vai despertar a mesma inquietação em você. E, quanto ao dia normal, ai, que dorzinha, né...
lindo texto..tocou aqui...calou fundo....brigada! Bjss
anninha cecilia
Brigadão, Anninha. É que fiquei pensando muito no que é o trabalho do ator quando saí do cinema...este é um assunto que me interessa muito. Que bom que você curtiu, beijo grande.
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