sexta-feira, julho 18, 2008

A liberdade e a frigideira

Em seu blog Psicanálise Presente (http://www.psicanalisepresente.blogspot.com/), o psiquiatra e amigo Márlio Vilela Nunes escreveu, esta semana, um artigo muito oportuno sobre um fenômeno sorrateiro que está se tornando uma das principais marcas destes dias que correm: a nossa propensão em abrir mão das liberdades individuais em troca da segurança coletiva. Adotando como ponto de partida para o seu raciocínio a implantação da lei seca, o psiquiatra narra, em um texto de reflexão obrigatória, como o governo de alguns países, em nome do bem-estar da coletividade, avança de maneira impiedosa sobre algumas conquistas individuais que ajudaram a definir o nosso conceito de civilização. Em nome de um mundo mais seguro e menos hostil, segundo ele, estaríamos todos nós, conscientemente ou não, endossando uma prática que, em pouco tempo, poderá aniquilar a nossa identidade – e, com ela, a nossa chance de encontrar alguma felicidade pessoal. A se desenhar este futuro que o psiquiatra repudia, talvez nos encontremos seguros em algum lugar lá na frente, mas jamais livres. E ainda menos felizes.

Não pretendo aqui falar mais sobre o artigo. O assunto é urgente e justifica uma visita àquele blog. Mas quando terminei de ler o texto, talvez por algum mecanismo de auto-defesa me veio à mente uma história ocorrida há muitos anos e que também versa, embora de forma bastante prosaica, sobre o conceito individual de liberdade. Eu era recém-formado, morava em Jundiaí e viajava todos os dias para trabalhar no Jornal da Tarde, aqui em São Paulo. Em uma ocasião qualquer, quando parei com o carro num posto de pedágio na Via Anhanguera, o atendente quis saber se eu estava indo para São Paulo. Respondi que sim. Ele então perguntou se eu não me incomodaria de dar uma carona para um seu colega, também atendente, que tinha deixado o emprego naquele momento e precisava ir até São Paulo. Concordei em levá-lo.

Um segundo depois subia no meu carro um homem de seus trinta anos, ainda com o jaleco do pedágio, e aparentemente muito disposto a conversar. Não me lembro do nome dele, mas posso afirmar, sem receio, que se tratava de uma daquelas pessoas sempre prontas a responder as perguntas que elas mesmas fazem, sem dar qualquer chance de diálogo ao interlocutor, no caso eu. Depois de condensar toda sua vida em um relato de uns dez minutos, ele finalmente decidiu perguntar o que eu fazia. Consegui dizer que era jornalista, morava em Jundiaí, trabalhava em um jornal de São Paulo e, por isso mesmo, estava pensando em me mudar para a capital. Acrescentei que na semana seguinte começaria a procurar apartamento.

“Não precisa procurar mais”, ele disse. “Já tenho um lugar para você morar. Minha sogra mora na Vila Brasilândia e está alugando dois cômodos no fundo da casa dela. É para lá que você vai. Hoje mesmo vou falar com ela. Vou dizer que você é um velho conhecido e pedir para que ela faça um precinho camarada”.

Enquanto eu tentava argumentar que ele não precisava se preocupar comigo, ele já estava descrevendo o bairro, a entrada da casa e o corredor estreito que me levaria até os meus dois cômodos no fundo, os hábitos interioranos da sogra, o pequeno portão verde que separaria a minha habitação do corpo principal da casa onde ela vivia, a tranqüilidade que eu sentiria em poder sair sabendo que a sogra zelaria pelos meus dois cômodos e, acima de tudo, um aluguel que não pesaria tanto no meu bolso. “Fica aí com o meu telefone”, disse ele enquanto se apressava em me dar um papelzinho. “Você vai gostar muito de morar lá, eu garanto. Você trabalha de dia ou de noite?”, ele me perguntou.

Respondi que trabalhava à noite.

“Melhor ainda. Você vai poder chegar em casa, abrir uma cervejinha e fritar dois gomos de lingüiça antes de dormir. Liberdade, para mim, é isso: poder chegar em casa e fritar dois gomos de lingüiça sem ninguém para me encher o saco”.

Chegamos à Marginal Tietê e ele pediu para descer no primeiro ponto de ônibus. Não me lembro do que fiz com o papelzinho em que ele anotou o telefone. Alguns meses depois, me mudei para São Paulo. Não fui para a Vila Brasilândia. Aluguei um apartamento na Brigadeiro Luís Antonio, onde morei por nove anos antes de me mudar para a Vila Madalena. E, neste tempo todo, nos dois apartamentos em que vivi aqui em São Paulo, não me lembro de ter chegado em casa, uma única noite que fosse, e fritado dois gomos de lingüiça.

Talvez eu ainda não tenha aprendido a ser livre.

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