terça-feira, setembro 30, 2008

Rindo pelo retrovisor

Quem acompanha este blog sabe que raramente eu escrevo sobre teatro. Sempre me senti mais confortável para falar a respeito de outras coisas, para falar daquela fração da vida que se dá longe dos palcos. Eu mesmo não saberia explicar os motivos de o teatro ser um assunto tão escasso por aqui, já que praticamente não existe um único dia em que eu não esteja escrevendo sobre teatro, para teatro ou mesmo vendo teatro. Talvez, e me dou conta disso somente agora, este blog exista justamente para que eu possa desviar meus olhos para outras paisagens menos sagradas que o tablado, mas nem por isso menos interessantes. Se eu me dedicasse a escrever com alguma regularidade sobre teatro, fatalmente me veria tentado a fazer críticas – e neste terreno a internet já está muitíssimo bem servida com as observações sempre precisas que o mestre Alberto Guzik faz em seu próprio espaço. Sobre projetos também não gosto de falar: nesta vida a gente dá tantos chutes na trave que eu aprendi ser muito mais prudente comemorar o gol já feito.

Mas hoje me vi obrigado a abrir uma raivosa exceção. E o que me leva a escrever sobre teatro é a mais que oportuna matéria do eficiente repórter Lucas Neves, publicada na Folha de S. Paulo, sobre esta onda nostálgica que ressuscitou três espetáculos de sucesso dos anos 80 e os colocou em cartaz na mesma época em São Paulo: O Mistério de Irma Vap, Doce Deleite e Brincando em Cima Daquilo. Podia haver algo de saudável neste revisionismo, mas parece que não há. E quem faz questão de propagar que não existe nada de saudável neste triplo regresso são justamente produtores, autores e diretores envolvidos nos espetáculos: eles alegam que as três comédias voltaram à cena porque nos últimos anos a dramaturgia brasileira não produziu textos capazes de arrancar o mais pálido sorriso da platéia.

Eu acredito que a dramaturgia brasileira produziu, sim, muitos bons textos nos últimos anos. Diria mais: poucas vezes, como agora, assistiu-se a uma efervescência tão grande na área de produção, divulgação, debates e leituras de novos textos teatrais. Infelizmente, esta efervescência não encontra eco na coragem de grande parte dos produtores, diretores e atores renomados. Contrariando o preceito mais fundamental do mundo das artes, aquele que diariamente injeta risco e ousadia no cotidiano do artista, estamos vivendo uma época em que produtores e uma certa categoria de atores resolveram eliminar da atividade teatral a incerteza, a novidade e o improvável. Diante da dúvida, diante do impasse, diante do desafio do novo, eles, amedrontados, correm em busca da proteção segura do riso empoeirado dos anos 80. Se deu certo lá atrás, pode dar certo de novo – ainda que o país seja outro, que os hábitos sejam outros, que a realidade seja outra e que o próprio humor seja outro. Nada disso tem importância diante de uma bilheteria que parece reluzir ao final de cada sessão. Temerosos em dizer que numa época de incertezas econômicas, em que alguém vai dormir milionário e acorda miserável, é mais conveniente investir no conhecido, eles alegam que a culpa é do novo. Ou pior: que a culpa é da inexistência do novo.

O novo existe, sim, e em quantidade avassaladora. Que nem sempre o novo é bom, concordo totalmente. Mas nem sempre o velho é bom também – e, dos três espetáculos acima citados, um dá prova disso de quinta a domingo para quem estiver interessado em conferir. Talvez eu não esteja sendo ético, elegante e respeitador com os colegas neste comentário, mas acredito que, como eu, todos os autores brasileiros sentiram-se agredidos ao ler a reportagem de hoje. Que queiram remontar sucessos de trinta anos atrás, não vejo problema algum nisso. São Paulo é a cidade brasileira com o maior número de salas de espetáculos do país – e, com um pouco de paciência e diplomacia, é possível acomodar a todos. E existe, como foi dito na matéria, uma geração mais jovem curiosa para saber do que os seus pais tanto riam nos anos 80. O problema é dizer que se recorre ao passado porque o presente não tem qualidade. O problema do presente – sim, meus amigos, há um problema no presente – é que o presente não oferece segurança, o presente nos acena com o risco, o presente nos acena com o novo. O presente, meus caros, dá medo. E eu sempre achei que tudo isso, o medo, o desafio, o risco e a insegurança formassem o cardápio da refeição diária do artista. Mas percebo agora que a comida congelada parece ser mais atraente.

Aos entrevistados da matéria de hoje, faço aqui um convite público: visitem o Espaço dos Parlapatões, passeiem pelas Satyrianas, assistam às leituras do ciclo Letras em Cena do Masp, às leituras do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, compareçam ao Festival do Grotesco que o Next vai realizar neste mês de outubro, vejam as dezenas de festivais de cenas curtas e cômicas que pipocam pela cidade. Se, depois de tudo isso, vocês continuarem achando que nada foi feito de bom nos últimos 20 anos, eu prometo apagar este post e morder minha língua no meio da Praça Roosevelt. Por que na Praça Roosevelt? Simples: porque ali a gente perdeu o medo da novidade e decidiu que botar a culpa na ditadura ficou uma coisinha tão sem graça, tão anos oitenta....

segunda-feira, setembro 29, 2008

Sem velinhas

Setembro está chegando ao fim. É o mês do meu aniversário e, pela primeira vez em muitos anos, decidi não comemorar. Motivos para celebração até que não faltavam: a vida profissional anda bem, alguns projetos bacanas devem mesmo sair do papel, os amigos estão sempre por perto e meu último check-up mostrou que, até prova em contrário, a saúde continua jogando a meu favor. Isso tudo justificaria várias taças de prosecco, eu acredito. Mas resolvi ficar em silêncio desta vez: alguns amigos ligaram, vários outros enviaram mensagens por e-mail e orkut e, no dia mesmo do aniversário, vi poucas pessoas. Decidi que era só mais um dia – e então o percorri com a maior naturalidade possível.

Tenho a impressão de que este aniversário silencioso foi o prenúncio de tantos outros iguais que virão. Não estou atravessando nenhuma crise particular de idade – até porque estou me esforçando para não sofrer mais com as crises inevitáveis, e a da idade é a mais poderosa delas. Ainda que eu me tranque num abrigo e passe os dias chorando, o tempo vai continuar a correr lá fora e o máximo que conseguirei, com isso, é chegar no ano que vem com mais rugas e os olhos inchados. Se o tempo começou a nos boicotar no instante exato em que levamos aquele tapinha na bunda para o nosso choro primordial, o primeiro dos milhares que teríamos de enfrentar vida afora, o melhor a fazer é tentar um acordo com ele. Ou, ao menos, tentar não levar tão a sério as armadilhas que ele nos arma. Ao ignorar o meu aniversário, talvez eu tenha feito isso: fingi que não ouvi a batida anual que ele dá em minha porta. Caso eu me arrependa, tudo bem. Sempre haverá chance de uma reconciliação: no ano que vem, na mesma data, ele certamente baterá em minha porta de novo.

No fundo, eu acho que este ano decidi jogar o meu aniversário no mesmo baú em que já havia jogado o natal e o reveillon. Percebo que quanto menos importância eu dou para estes dias, mas fácil é atravessá-los e chegar ileso do lado de lá. Há algum tempo, Danuza Leão escreveu que achava os natais tristes porque muitas pessoas importantes para ela já haviam morrido. Eu sempre achei os natais um pouco tristes, pelos que morreram e principalmente pelos que continuam vivos. Por nós, que nos obrigamos a extrair alguma alegria que ninguém sabe de onde. Os mortos já estão livres disso.

Não é em vão que todas estas coisas estão passando pela minha cabeça. Ontem, descendo a rua Augusta em direção ao centro, vi uma loja decorada com uns 50 bonecos de papai Noel que pendiam do teto. Levei um susto. E hoje, ao entrar numa papelaria, notei com pesar que na vitrine só havia agendas de 2009. Não entendo por que as pessoas decretam o fim do ano com tanta antecedência – temos ainda três longos – e espero, produtivos – meses pela frente e todo mundo se une para nos dizer que 2008 já terminou. Prometo ignorar todos os papais noéis que vão cruzar meu caminho até o natal e asseguro que só comprarei a agenda de 2009 na primeira semana de janeiro. Até lá, eu prefiro acreditar que continuo em 2008 e que este ano ainda tem fôlego para oferecer uma porção de coisas boas para mim e para todo mundo. Por mais que as vitrines digam o contrário.

quarta-feira, setembro 24, 2008

Da boca para dentro

Foi há mais ou menos uns 15 dias. Um sábado frio e chuvoso. Eu e o amigo Gustavo Fioratti, repórter da Revista da Folha, estávamos na estação Sumaré do metrô, esperando um amigo para o almoço. Este amigo, percebi logo, é daquelas pessoas que dizem que já estão indo, quando na verdade nem saíram da cama ainda. Ele atrasou uma hora e dez minutos. Eu e o Gustavo ficamos muito irritados, é claro. Mas a espera não foi nada em vão. Quando estávamos ali, vendo os trens indo e vindo enquanto a garoa batia nas amplas paredes de vidro da estação, fizemos o que as pessoas têm cada vez menos tempo de fazer: conversar sem pressa alguma, sem a pretensão de chegar a qualquer conclusão, sem o compromisso de ser sério ou definitivo. Chovia, fazia frio e o amigo não chegava: conversemos, pois.

O que revestiu aquela conversa de importância, a ponto de eu sentir vontade de falar nela aqui, foi o seu tema. Falamos, durante muito tempo, sobre a ineficácia das palavras. Pode parecer incongruente, mas foi isso mesmo: falamos sobre como o silêncio é capaz de dizer mais que cem frases bem encadeadas, falamos como os gestos podem ser mais precisos que os discursos, e falamos, principalmente, sobre tudo aquilo que não precisa de palavras para se tornar palpável: o amor, o afeto, o carinho. E concordamos os dois, sem grandes discussões, que quase tudo nesta vida já está dito: ouve quem quer, compreende quem quer e vê quem quer.

O bom do silêncio é isso: muitas vezes ele não demanda uma resposta. O bom de um gesto é isso também: ele pode ser preciso e ainda assim o outro tem a liberdade, sem nenhum constrangimento, de fingir que não é com ele. Já as palavras, estas ecoam. Como numa partida de tênis, as palavras esperam que alguém as rebata, parece que elas nunca estão completas até o momento em que retornam a nós, reinterpretadas pela boca e pela mente do outro. O silêncio pode apenas ir, pode apenas partir de nós e já terá cumprido sua missão. O gesto também. De alguma forma, ele é quase auto-suficiente: faz, sozinho, o que dezenas de palavras tropeçariam para tentar fazer.

Quando a gente diz, com palavras, que ama alguém é porque já disse a mesma coisa tantas vezes antes, de tantas formas mais delicadamente precisas. Penso se cabe a nós alguma culpa por não termos sido ouvidos. E se cabe a nós, mais do que tudo, alguma culpa por não termos prestado atenção quando o outro nos disse, também sem palavras, que não era bem assim. Talvez andemos todos nós, ao menos um pouquinho, surdos para o silêncio.

Antes que o nosso amigo chegasse, o Gustavo fechou brilhantemente a nossa discussão. “Eu não acredito em conversas sobre crises conjugais”, disse-me ele. “O máximo que eu posso falar numa discussão sobre relacionamento é o seguinte: viu, hoje o seu macarrão não está tão bom quanto o da semana passada. O resto já está tudo dito”.

sexta-feira, setembro 19, 2008

O nosso amor de ontem

Ela sabia que ia passar. Não porque os amigos, como forma de consolá-la, dissessem que era só uma questão de tempo. Ela sabia que ia passar, acima de tudo, pela sua prática no assunto. Já havia passado outras vezes, e agora não deveria ser diferente. No fundo, era muito igual até. Tão igual que ela se perguntava por que tinha de passar por isso de novo, se tudo se resumia a mais uma história em que o final já fora escrito antes que ela provasse das delícias do primeiro capítulo. E ela sabia, principalmente, que as tais delícias do primeiro capítulo não se estenderiam pelos seguintes – tudo seria tão delicadamente retirado dela, as páginas iriam se embranquecer de maneira tão sutil, a história iria morrer tão lentamente diante dos seus olhos que, quando o fim realmente chegasse, talvez a dor já tivesse se consumido nas notas de rodapé em que seu amor se perdera.

Não era exatamente medo o que ela sentia. O frio das tardes a assustava um pouco, isso é verdade. E ela sabia que precisava trocar uma das lâmpadas da sala. Se o ambiente estivesse um pouco mais claro, ela pensava, talvez a noite levasse mais tempo para se infiltrar pela janela. Ela não estava bem certa disso, mas desconfiava que o telefone andava tocando menos. Ela não gostava de tirar o fone do gancho para ver se o aparelho estava funcionando e decidiu parar de fazer isso depois da terceira vez em quinze minutos. Então ela se deitava um pouco, para descansar das tarefas ainda não feitas, mas que a deixavam previamente irritada. E nestas horas ela imaginava coisas.

Imaginava que não devia ter saído tanto, que não devia ter tão facilmente revelado lugares que ela levou anos para descobrir sozinha. Tudo que ela havia compartilhado agora se transformava em fatias doloridas de memória, espalhadas aqui e ali, na mesa de canto daquele bistrô ao qual ela não voltaria tão cedo, no bar barulhento e de chão pegajoso, naquela rua estreita em que sempre era possível estacionar. Nada era um grande tesouro afinal, mas foi o que ela lhe ensinara de forma tão inocente e que por isso devia ter algum valor. Ela também havia aprendido algumas coisas com ele, claro que havia. Mas quando tudo passasse, isso também iria embora. E ela ficaria vazia novamente, mas de um vazio diferente daquele em que ele a encontrara. E então ela perdia as horas de sono pensando sobre quantas maneiras uma pessoa pode se esvaziar de forma que o vazio de hoje seja um pouco mais sábio do que o vazio de ontem.

Ela sabia que não seria traída pelos seus olhos, e nem pelas lembranças. Seria pelo cheiro que um dia ele voltaria à sua vida – no mais ingênuo dos dias, na mais insignificante das horas, ela voltaria a sentir aquele cheiro que parecia ser só dele, embora seu perfume abarrotasse as prateleiras de qualquer farmácia barata. O cheiro vindo de um outro homem, talvez. Ou nem tanto. Vindo, por certo, de algum canto do seu cérebro que, sem nada mais importante a fazer, resolveu, à revelia, brincar de abrir baús proibidos. E então ela teria de parar, olhar para todos os lados e depois seguir adiante com a certeza de que não, não era ele. Era só ela de novo.

E um dia o cheiro iria embora, alguém iria lavar o chão do boteco, o bistrô fecharia por falta de clientes e algumas placas nos postes mostrariam que agora é proibido estacionar naquela rua estreita. Ela não se lembraria mais dele. E essa dor, a dor que se esquece, se revelaria a maior dor do mundo. Mas então ela já estaria vazia. Porque, nesta vida, tudo passa.

quinta-feira, setembro 18, 2008

Só as claques são felizes

Esta semana eu assisti, pela primeira vez, ao humorístico Toma Lá Dá Cá, apresentado pela Globo nas noites de terça-feira. Alguns amigos já tinham me alertado de que era pura bagaceira. O Dirceu Alves e a Mônica Santos, repórteres da Vejinha, chegaram a me telefonar, várias vezes, para que eu ligasse a televisão e visse a Norma Bengell, a grande musa do cinema nacional, fazendo, em participação especial, uma lésbica assanhadinha. Eles garantiram que era imperdível – em todos os sentidos que esta palavra pode assumir. Mas, infelizmente, eu nunca estava em casa. Até que nesta última terça finalmente fui apresentado à série. É uma experiência que não recomendo a ninguém.

Juro que não estava prevenido. Não sou desses que torcem o nariz para novelas ou para a programação da tevê aberta. Quando estou em casa, tento ver de tudo. Das entrevistas da Oprah à ranhetice do doutor House, da guerra pelo poder e sexo dos Tudors ao bate-papo gastronômico do Ronnie Von, do programa Conta Corrente aos diálogos de catequese dos Mutantes. Sempre acho que a gente tem alguma coisa a aprender – ainda que seja aprender a evitar algumas dessas coisas no futuro. Mas o Toma Lá Dá Cá é um nada, um entra-e-sai de atores que não têm o que dizer e que encontram na claque a única resposta para suas piadas sem graça. Talvez um único episódio não seja suficiente para julgar uma série, mas não tenho a mínima vontade de rever o programa. Do começo ao fim, não consegui esboçar um único movimento facial – era como se eu tivesse saído de uma aplicação generalizada de botox. Estava tudo congelado: o riso, o ânimo, a curiosidade. Para ser sincero, a única coisa que realmente falou mais alto foi o constrangimento de ver alguns atores tão bem desperdiçados.

Quando acabou o programa, pensei: bom, pode ser um tipo de humor que não me agrada. Vai ver que isso é engraçado pra caramba e eu não estava no espírito. Na quarta de manhã, enquanto comprava laranja na primeira banca de frutas da feira da Rua Luminárias, na Vila Madalena, ouço a feirante da barraca ao lado, uma mulher que tem uma banquinha só com manjericão e outros temperos, dizer exatamente isso para uma freguesa: “Tô com o maior medo da próxima novela das seis, que é do Falabella. Viu que porcaria que é aquele programa que ele fez ontem à noite?” Voltei para casa feliz: o problema, aparentemente, não era eu. Toma Lá Dá Cá é ruinzinho mesmo...

Engraçado. Comecei este post achando que ia falar de como é fácil se disfarçar nas novelas. Cláudia Raia, com aquele tamanhão todo, bota uma peruca loira e o elenco inteiro de A Favorita acredita que ela é outra pessoa. Em Beleza Pura, que terminou semana passada, a atriz Mônica Martelli, aquela que diz que os Homens são de Marte, grudava um cavanhaque grotesco no queixo, engrossava um pouco a voz e, pimba, virava homem de uma hora para outra. Com Rodrigo Veronese, seu marido na trama, era a mesma coisa: um par de seios e uma peruca medonha faziam dele uma mulher que não enganaria nem os personagens de Ensaio Sobre a Cegueira. Não há uma composição mais delicada, uma preocupação com o gestual, uma entonação vocal que seja. Basta uma peruca para que todo mundo nas novelas mude de sexo e recomece a vida como outra pessoa. A gente, em casa, fica se sentindo um bobo. Acho que alguns atores precisam aprender um pouco com os travestis: esses sim dão um duro na vida para enganar os outros e nem sempre conseguem. Aliás, conseguem sim: de tão mal-treinados, os atores são os únicos que saem com travesti e depois dizem que não tinham percebido. Ver muita novela faz mal. Fazer novelas, no entanto, deve ser ainda pior.

quinta-feira, setembro 11, 2008

Uma velha foto na caixa de camisa

Sei que a escritora americana Susan Sontag escreveu um ensaio sobre fotografia que, a julgar pelo que dizem, é um trabalho de mestre. Eu não o li. Tenho medo de me deixar influenciar pelo que ela escreveu e, a partir daí, passar a ver as fotografias com um olhar mais intelectualizado e menos espontâneo do que este que tenho hoje. Nem sei se isso é realmente um risco, mas acho melhor evitá-lo.

Reservei parte do último domingo para jogar fora papéis velhos. Sou daquelas pessoas que guardam o recibo do condomínio por dez anos – pode ser prudente, mas deixa a casa com jeito de museu. Comecei a faxina por uma caixa de camisa onde eu guardava documentos do carro – seguros, IPVAs, notificação de multas, tudo razoavelmente separado ano a ano. E, no meio de tantas guias, encontro uma foto esquecida, tirada no fim dos anos 80, em meu primeiro emprego como jornalista.

Apareço extremamente magro, barba comprida e uma bolsa de couro pendendo do ombro esquerdo. Bolsa de couro combinava com a época e talvez com a profissão. Eu estava cobrindo um evento qualquer, que devia ser festivo, pois há uma bandinha com alguns músicos ao fundo. Já se vão quase vinte anos daquela foto e eu não me reconheço mais naquele rapaz quase torto de tão magro.

Este é o mistério das fotos: você não sabe mais o que foi feito dos vivos. Quando olhamos uma foto de alguém que já morreu, está tudo certo. A história teve um fim e a página foi finalmente virada, ainda que com dor. Mas quando vemos uma foto antiga de alguém que ainda vive, e quando este alguém é você mesmo, a pergunta sobre o que aconteceu com aquela pessoa, o que aconteceu com aquela pessoa que é você, é inevitável. Fiquei com os olhos vidrados naquela imagem e me perguntando quantos dos sonhos que aquele rapaz tinha naquele dia foram realizados? Do que ele precisou abrir mão, ou o que ele precisou agarrar, para se transformar naquilo que eu sou hoje? Em quantos outros pedaços de papel fotográfico ele esqueceu um pouco mais da sua história? Em quantas imagens borradas a vida foi sendo irrecuperavelmente gasta?

Não sei se Susan Sontag escreveu sobre isso em seu ensaio, ou se ela encontrou resposta para algumas destas questões. Ou se ela teria sido capaz de desvendar para onde vamos todos nós, ao mesmo tempo vivos, ao mesmo tempo apagados, ao mesmo tempo congelados em uma imagem que os anos, por um processo inexplicável, transformaram em uma outra pessoa. De quem somos quase íntimos, e de quem sentimos quase nenhuma saudade.

domingo, setembro 07, 2008

Laurie Anderson

Uma amiga me liga no fim de semana em busca de companhia para ver o show da Laurie Anderson sábado à noite no Sesc Pinheiros. Confesso que achei o convite muito estranho. Devo ter passado os últimos 15 anos sem ouvir falar na Laurie Anderson – para mim, ela continuava refém daquela época em que a gente freqüentava o Aeroanta, via shows no vão livre do Masp nas tardes de sexta-feira e achava performance a coisa mais moderna do mundo. Tudo isso, me parece, não sobreviveu à virada dos anos oitenta. E, em alguns casos, ainda bem. Perguntei à minha amiga se ela não preferia trocar a Laurie Anderson por um cineminha – e ela recusou. E ainda me garantiu que os shows que a cantora performática (ai, que nostalgia!) havia feito em Porto Alegre e Santiago do Chile tinham sido ovacionados. Bom, como ninguém precisa ser um diplomata para me tirar de casa num sábado à noite, resolvi ir.

Surpresa: o imenso auditório do Sesc Pinheiros estava lotado. Enquanto o show não começava, eu ficava olhando para aquelas pessoas e tentava localizar ali algum hippie ressuscitado, algum eleitor do PT, algum macrobiótico, algum adepto do hare krishna, alguém que acreditasse na cura pelos cristais, alguém com camiseta tingida e saia colorida até o calcanhar, alguém com colares de semente, enfim, alguém que, como a Laurie Anderson, estivesse decidido a mostrar que a década de oitenta, afinal, não havia sido assim tão perdida como insistem em rotular. Mas, ainda bem, era só um show e não uma convenção de sobreviventes de alguma coisa. Embora todas aquelas velas acesas no palco me lembrassem uma festinha de aniversário em uma escola de ioga. Sem falar que, depois do incêndio no Cultura Artística, abarrotar um palco com velas me parece um pouco temerário.

Laurie Anderson e sua banda de três músicos tão introspectivos como ela entraram com apenas dez minutos de atraso. A cantora continua um prodígio de tecnologia: toca um violino que traz preso ao pescoço, comanda teclados e uma mesa de som dos quais extrai inúmeros efeitos, entre eles um que distorce sua voz, e ainda usa uma espécie de óculos com algum tipo de amplificador que emite sons graves quando ela bate na própria cabeça ou morde os dentes. Sobre o palco, um telão com legendas, em alguns casos indispensáveis, para que sua poesia intimista ou seus ataques à política externa dos Estados Unidos chegassem ao público com intimidade.

A poesia de Laurie Anderson é quase um mantra – ele repete à exaustão alguns versos simples, como “me encontre na beira do lago”, de uma canção provavelmente feita para homenagear seu pai, que tinha “olhos de diamantes”. Infelizmente, seu lirismo não vai muito além de uma interminável canção de ninar, que cumpriu bem seu objetivo em várias pessoas que estavam ao meu lado. A Laurie Anderson que realmente vale a pena é a poeta que sabe fazer uma crítica irônica e impiedosa às figuras de Bush e McCain. Somente um artista maduro consegue levar um discurso estritamente político para o universo do show biz sem se tornar apocalíptico ou simplesmente um chato.

O próprio Bono Vox escorregou nesta travessia. Laurie Anderson faz isso com certa desenvoltura, mas... e nestes casos sempre tem um mais, no meio do show ela perde a medida e bate de frente com a nossa indiferença diante de assuntos como aquecimento global, guerras, desrespeito aos direitos humanos e desigualdade social. A culpa é nossa (ou minha), e não dela. Laurie Anderson parece, mais do que nunca, uma voz imprescindível nesta época de celebridades rasas e idiotizadas. O problema de Laurie Anderson é que ela ficou presa à uma época em que a gente ainda acreditava em alguma coisa. Sua música nos bate na cara, mas a gente vira o rosto para olhar a vitrine do lado. Suas críticas são mais que oportunas, mas rimos delas como se estivéssemos na platéia do Terça Insana. Estamos vivendo no grande baile da Ilha Fiscal deste planeta, mas enquanto houver música tocando, cervejas geladas e salgadinhos sobre a mesa, a festa deve continuar. E Laurie Anderson é aquela pessoa que chega e pede para que abaixem o som para que possamos ouvir o bombardeio na rua de trás. Mas nós só queremos dançar. Tirem esta chata daí, gritamos.

Então, fica combinado assim: o teatro estava lotado, mas eu tinha a impressão de que Laurie Anderson pregava no deserto. Todo este post é tão pessoal e diz respeito a mim e ao que eu me tornei de maneira tão particular que, confesso aqui, saí na metade do show. Minha admiração aos que ficaram até o fim e suportaram de verdade o que ela estava tentando nos dizer. Eu devo estar um pouco cansado.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Madonna ou panelas?

Há algumas semanas, as estações do metrô estavam abarrotadas de cartazes que alertavam os homens sobre os sintomas da queda de testosterona no organismo. Segundo os avisos, os homens em tais condições apresentariam ondas de calor, irritabilidade, desânimo, sono em horários impróprios e um aumento na barriguinha. Como toda pessoa, eu também tenho o impulso de me encaixar em qualquer quadro clínico num primeiro momento. Da imensa lista descrita acima, a única coisa que eu não apresentava era o aumento da barriguinha – graças à academia, acredito eu. O resto eu tinha tudo.

Depois, a gente pensa um pouco e vê que os tais sintomas não têm a ver com os baixos níveis de testosterona, eles têm a ver com a vida. Vamos a eles: quem não sente ondas de calor quando os termômetros marcam 31 graus no inverno? Irritabilidade é o primeiro efeito colateral de quem mora em São Paulo. Desânimo é o primeiro efeito colateral de quem está vivo e sentir sono em horários impróprios...bom, qualquer pessoa, como eu, que não consegue dormir antes das duas da manhã, corre o risco de implorar por um travesseiro ao longo do dia seguinte.

Concluí, para o meu deleite e sem qualquer exame, que minhas taxas de testosterona deviam estar normais, mas não recomendo esta auto-avaliação a ninguém. Até porque, ando apresentando um sintoma muito mais preocupante que ondas de calor: nas últimas semanas, não há nada que me deixe mais feliz do que entrar numa loja de utilidades domésticas ou de cama, mesa e banho. Enquanto meus amigos, pelo menos aqueles que ainda não baixam tudo pela Internet, continuam a freqüentar livrarias e lojas de disco, principalmente as seções de música eletrônica, eu paro o que estiver fazendo para correr até uma loja de produtos de cozinha. Fico hipnotizado diante de um baldinho de gelo todo trabalhado, das panelas em duas cores, das xícaras que trazem a palavra café escrita em vários idiomas, dos escorredores de macarrão com trava para que a tampa não caia, do design das coqueteleiras... Fico torcendo para que esfrie bastante e assim eu possa ter um motivo para entrar numa loja de edredons e me acabar no meio de tantas estampas novas... Eles estão com um preço tão em conta, que merda este calor...

Eu, que nunca fumei, até os cinzeiros tenho achado bonitos. Fico pensando: como alguém pode perder um dia inteiro na fila dos ingressos para ver a Madonna se há um universo de lençóis, toalhas e enfeitinhos de banheiro para ser explorado? Como alguém pode pagar R$ 720 para ver o show da cantora se, com esta grana, a gente pode comprar umas cinco panelas imensas, dessas em que nada gruda? Eu sei que no meu armário de cozinha nem há lugar para cinco panelas, mas as paixões são assim mesmo: elas não se explicam e, quando surgem em nossas vidas, a gente também não sabe onde guardá-las. Por isso eu estou nesta fase das panelas em que nada gruda. Das paixões a gente não pode dizer o mesmo.

Tenho medo de que este meu encanto pelo reino doméstico ainda me leve a comprar um berço em dez prestações no cartão de crédito. Se isso ocorrer, juro que faço o exame para ver se ainda existe alguma testosterona em meu corpo. Mas, enquanto o bercinho não vem, passo as tardes olhando para o meu novo baldinho de gelo. Este eu já comprei!

quarta-feira, setembro 03, 2008

Palavras ao vento

Há tempos que as entrevistas coletivas se transformaram em uma das atividades mais chatas e maçantes do exercício do jornalismo. Qualquer repórter, com um mínimo de experiência, consegue extrair informações muito mais relevantes em uma conversa de dez minutos a sós com um entrevistado do que numa coletiva de duas horas. Não sei como são as coletivas nas áreas de economia e política, mas quando o assunto é teatro, posso garantir aqui que elas são chatérrimas.

Embora eu não goste das coletivas e não tenha medo de afirmar isso aqui, pois sei que muitos dos meus colegas também as evitam, esta semana participei de uma. E, ao menos desta vez, saí de lá com uma frase antológica.

Ao ser perguntado por uma repórter se a preparação para o espetáculo que ele está estreando aqui na cidade havia sido intensa, um ator carioca foi de uma sinceridade comovente: “Nossa, foi muito difícil. Deixei de ir à praia para decorar o texto”.

Doeu de ouvir. Mas foi mais interessante do que quase todo o resto da entrevista.