quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Os autores que dizem adeus - e seus livros que ficam

Eu devia ter 15 anos quando li Cem Anos de Solidão e me vi imediatamente encantado por aquele mundo fantasioso – e paradoxalmente familiar – de Gabriel Garcia Márquez. Por um longo tempo, eu não queria fazer mais nada da vida a não ser ler tudo que o escritor colombiano houvesse publicado e, assim, me tornar mais íntimo daqueles personagens que viviam mais de cem anos e se reconheciam pelos cheiros, que cruzavam desertos misteriosos em caravanas improvisadas, ou que, de tão sedutores, conseguiam despertar paixões ainda que já estivessem mortos. Naquela época, se alguém me oferecesse uma viagem, eu diria, sem hesitar, que meu sonho era conhecer Macondo, a cidade imaginária fundada pela família Buendia em Cem Anos de Solidão, indiscutivelmente meu livro de cabeceira, de escrivaninha, de sofá, e de todo resto da mobília.

Algum tempo depois, conversando com uma amiga mais velha, já formada em jornalismo, sobre minha paixão pela obra de Garcia Márquez, ela se revelou sabiamente impiedosa: “Eu não acho Garcia Márquez tão bom assim”, ela me disse. “Toda família tem a sua Macondo, ele só foi perito em descobrir isso antes dos outros. Quem nasceu numa cidade pequena, pode dizer, sem medo, que também nasceu em Macondo. E isso não faz de ninguém um grande escritor”.

Fiquei muito tempo com este diagnóstico a me assombrar a cabeça – e hoje, muitos e muitos anos depois daquela conversa, me vejo obrigado a dar um pouco de razão a ela. Abandonei o gosto por Garcia Márquez na mesma época em que a adolescência me abandonou. Li outras coisas dele, é claro, mas nunca mais sua obra me causou impacto considerável. Para mim, seu último grande livro foi o pequeno Crônica de Uma Morte Anunciada – mas ainda assim ficou longe de iluminar em mim aquela Macondo eclipsada pelos anos.

Às vezes, me pego pensando se havia realmente algo de Macondo no lugar em que nasci – e talvez a amiga jornalista estivesse certa sobre isso também. Havia Iracema, sobre quem já falei aqui, a mulher de uma brancura fantasmagórica que era espancada pelo marido sempre que saía de casa para cantar; havia o Zé da Hélia, o louquinho boa praça que entrava em surto psicótico toda vez que ouvia a palavra chuva; havia o Dito Cruz, em cuja boca sempre risonha despontavam apenas os caninos superiores, que se perdia em passeios solitários que nunca duravam menos de três dias, deixando sua única irmã, tão velha e solteira quanto ele, em pânico; havia o homem que se enforcou em uma árvore de quintal a quatro casas da minha; havia a mulher que encharcou seu corpo em álcool e riscou um palito de fósforo – e foi enterrada com os cabelos terrivelmente vermelhos e o rosto cheio de sulcos; havia o funcionário de uma fábrica de cadeiras, moreno e calvo, do qual todas as mães mantinham seus filhos afastados – ninguém falava em pedofilia na época, mas todo cuidado em se tratando dele parecia pouco; havia o seu Domingos, o homem carrancudo e solitário que, quando jovem, matou a facadas um primo da mesma idade por causa de uma mulher; havia Lúcia, a guardiã da moral de todo bairro, a jovem freirinha que um dia fugiu do convento para se casar com um motorista de ônibus, enfraquecendo um pouco a fé de cada um de nós; havia uma família de anões; havia um menino que ficou cego com a bicada de um passarinho que fora presente do seu pai; havia os bêbados, havia os cachorros loucos, havia os jovens que morriam cedo de meningite ou tiro e havia ainda todos nós, os outros, um grupo mais ou menos coeso e que parecia não reunir, assim à primeira vista, qualquer particularidade para esperar um papel de protagonista caso alguém um dia resolvesse escrever esta história. Seríamos uns figurantes simpáticos, não mais que isso. A menos que o tal escritor fosse suficientemente talentoso para descobrir aquilo que nós, tão habilmente, passamos a vida a esconder.

Se ainda penso nisso tantos anos passados, é sinal de que a obra de Garcia Márquez se aconchegou em algum canto da minha memória. Talvez os escritores não precisem nos acompanhar para sempre. Basta que tenham sido nossos confidentes, em algum momento das nossas vidas, e toda obra já estará justificada.

domingo, fevereiro 22, 2009

Chega de aperitivo chato

O cinema sempre foi uma das minhas principais diversões em São Paulo. Às vezes, acho que o termo “diversão” nem é o mais apropriado para definir a nossa ida aos cinemas. Filmes como A Vida Dos Outros, Foi Apenas Um Sonho, Medos Privados em Lugares Públicos e Lemmon Tree, apenas para ficar em alguns títulos mais recentes, não são exatamente opções divertidas para um fim de semana: são, e talvez devamos ser gratos a isso, uma saudável vocação de parte da indústria cinematográfica de traduzir alguns dos nossos desejos, anseios e pesadelos mais recorrentes. Penso que não se pode classificar de diversão uma atividade que nos obriga a horas e horas de reflexão sobre as nossas próprias atitudes quando as luzes se acendem. Um certo tipo de cinema é, para mim, como também o é um certo tipo de teatro, algo que se aproxima da catarse, do nosso grande silêncio interior, de uma sessão de psicanálise ou de uma dessas conversas fundamentais que costumamos manter, às vezes, com nossos amigos mais íntimos e queridos enquanto a madrugada avança sobre um boteco qualquer da cidade. Neste sentido, a literatura talvez exerça um papel ainda mais preponderante – mas não é sobre isso que eu desejo falar.

O que eu desejo falar, na verdade, é sobre um certo tipo de punição que recai sobre quem costuma ir com alguma freqüência ao cinema. E também não vou falar aqui sobre as pessoas que atendem o celular ou conversam sem parar durante a projeção – pois disso eu também já falei. Eu quero falar sobre a irritante repetição de alguns trailers, que, antes de nos atrair, acabam por nos afastar das salas quando entram em cartaz os filmes a que eles se referiam. Há uns dois anos, mais ou menos, o trailer do filme Machuca foi tão martelado em nossos cinemas, e por tanto tempo, que quando eu o via em companhia de algum amigo tão cinéfilo quanto eu, a gente costumava repetir todas as falas daqueles garotinhos chilenos afetados pelo golpe militar que derrubou Allende.

Agora eu sinto que temos um concorrente à altura de Machuca: a comédia Divã, baseada na peça teatral que a atriz Lilia Cabral mostrou com muito sucesso no Teatro Faap. Em apenas uma semana eu já vi três vezes o trailer do filme que deve entrar em cartaz só em abril. Quando abril chegar, de tão cansado do aperitivo, eu seguramente fugirei do filme com todas as forças possíveis – até porque, pelo que foi mostrado até agora, Divã encaixa-se naquela mesma linha de Se eu Fosse Você e outros filminhos que batem recordes de bilheteria graças à presença de atores da Globo fazendo exatamente o que o público espera que eles façam – acho que isto é um assunto para outro post, mas Divã e Se eu Fosse Você talvez até sejam filmes bem-feitos, mas não passam de um capítulo de novela com duas horas de duração acompanhado de pipoca e cola-cola em embalagem gigante. Ou seja, arrastam as multidões para os cinemas apenas para lhes exibir tudo aquilo que elas já veem em casa, em embalagem um pouquinho diferente, mas com o requentado e inofensivo sabor dos folhetins.

Se eu seguramente não irei ver Divã, porque dois meses antes da estreia eu já estou com o trailer até o pescoço, lanço o seguinte desafio aqui: adivinhem se irei votar em Dilma Rousseff para presidente se hoje, em pleno domingo de carnaval e faltando um ano e meio para as eleições, ela aparece em seis fotos no jornal que eu assino. E a reportagem, é claro, versa sobre a famosa plástica a que a ministra se submeteu. O que me interessa se ela anda exibindo seu rostinho repuxado até na concentração das escolas do terceiro grupo do carnaval de Quixeramobim? Os marqueteiros, todos eles, do cinema e da política, deveriam aprender uma lição bem básica: por mais requintado que seja o menu, ninguém tem estômago para engolir por muito tempo a mesma coisa. O cansaço fecha a nossa garganta e embota os nossos ouvidos – com o tempo, nada mais desce.

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E como eu falei em estômago, uma dica para quem vai ficar por aqui no carnaval: liguem para o número 2951-3056 e peçam para a moça do caixa, que irá atender o telefone, explicar como se faz para chegar ao restaurante de comida nordestina Mocotó, na Vila Medeiros, zona norte da cidade. Foi o que eu fiz no sábado e estou sentindo que meu feriadão já valeu só por isso. Há muito tempo que eu queria conhecer este restaurante, apontado por toda imprensa como um dos melhores e mais baratos da cidade. Desta vez, a imprensa acertou bacana: as caipirinhas do lugar são maravilhosas, o torresmo faz a gente se esquecer de que existe colesterol no mundo,a comida é boa pra caramba e a torta de aipim com calda de coco queimado, a sobremesa mais pedida pelo pessoal animado que lota o lugar, é a prova de que existe vida antes da morte. Tudo sem frescura, sem estrangeirismos e com um preço para lá de justo – algo cada vez mais raro em São Paulo. O Mocotó só oferece um risco: é melhor não marcar nenhum compromisso para depois do almoço, pois a comida é tão farta e tão boa que você não vai querer absolutamente mais nada deste mundo a não ser cair na cama e dormir com a felicidade das jiboias diante de um ventilador ligado.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

O bloco do eu sozinho

Existem algumas pessoas que não precisam de ninguém neste mundo. Elas não costumam sair de casa em busca de amigos ou diálogos – saem apenas para divulgar a grandeza dos seus gestos e feitos; saem para nos brindar, a nós, a quem elas acreditam seus súditos, com o brilho de sua imagem sempre digna de louvor; saem para mostrar, no fundo, como elas podem ser generosas diante da pequenez do nosso cotidiano opaco. Em nenhum momento passa pela cabeça delas a possibilidade de nos fazer qualquer pergunta – pois elas já sabem, previamente, que tudo que sair de nossas bocas não será mesmo digno de atenção. Porque, no fundo, nossa existência não é reconhecida por elas – somos figurantes silenciosos de um mundo muito particular que elas criaram para si próprias; um mundo, afinal, em que só existe lugar para elas e seus atos. Elas nos dirigem a palavra apenas para evitar a ideia de que andam por aí a falar sozinhas. Embora não percebam, elas estão falando sozinhas, pois para elas, de tão desinteressantes e descartáveis que somos, é como se não estivéssemos mesmo por ali.

Antes de mais nada, elas se bastam e se completam. Acreditam tanto em si e na relevância do seu trabalho, que é como se o mundo não precisasse mesmo de mais ninguém. E elas nos irritam, nos irritam tanto porque a odiosa superioridade que exibem surge travestida de um delicado ar professoral. É como se elas, a todo instante, precisassem ser adoravelmente didáticas diante do nosso despreparo intelectual e da escassez das nossas conquistas. E usam todas as ferramentas que estão ao seu dispor, do encontro casual ao e-mail, para revelar uma quantidade enlouquecedora de auto-elogios que não despertam outra coisa em nós senão uma terrível sensação de pena e escárnio. Fazem, a si próprias, todos os salamaleques e rapapés que gostariam de ouvir do mundo – e parecem não se abalar com o fato de que o mundo não está preocupado em elogiar seus feitos, pois o mundo percebeu, bem antes delas, que seus feitos não são dignos de elogio algum.

Estas pessoas não compreendem que um homem elegante é, acima de tudo, um homem discreto em relação às suas conquistas. Mostram-se incapazes de conviver com a ideia de que um homem elegante é também um homem paciente, que sabe esperar pelo reconhecimento dos tais feitos e que já aprendeu, em alguma altura da vida, que não existe nada mais constrangedor do que bancar o relações públicas de si próprio. O que nos mantém, e não sei por quanto tempo ainda, próximos destas pessoas é a convicção de que elas não são exatamente chatas – só são momentaneamente insuportáveis. Mas como não as vemos com frequência, sempre temos a esperança de que se mostrarão um pouco mais evoluídas e despidas de si em nosso próximo encontro. E até nisso elas conseguem nos decepcionar. No próximo encontro, tudo que elas são capazes de nos dizer é o quanto foram absolutamente geniais desde a última vez em que nos vimos. Se o mundo ainda não as reconheceu e nem destinou a elas o trono que lhes parecia de direito, o problema é do mundo e tudo não passa, afinal, de uma questão de tempo. Elas já se reconheceram e isso parece bastar.

Estas pessoas também são autoras de uma proeza acima de tudo biológica: já eliminaram o outro de suas vidas. Se tudo que elas gostariam de ouvir escapa de suas próprias bocas, então não se torna mais necessária a existência de ninguém. Elas se encarregaram da limpeza étnica do seu próprio mundinho: fomos primeiramente marcados a ferro, depois incinerados e por fim jogados em uma vala comum, de onde nossa ousada figura jamais deveria ter se levantado para fazer frente ao gigantismo de sua presença. E assim elas seguirão para sempre, satisfeitas e sozinhas, ainda que exista uma corte sempre pronta a aplaudir com falsa sofreguidão o ruído de seus passos. E caminharão convictas de que todo o universo foi gerado com o único propósito de abrigar um dia sua passagem efêmera por aqui. Se uma destas pessoas ler este post, com certeza se perguntará: nossa, mas de quem será que ele está falando? Jamais irão se reconhecer nestas palavras, pois eu sou a voz do outro – e o outro, para elas, nasceu, viveu e deverá morrer mudo.

E antes de dormir, realizadas por mais uma aparição diante das feições mortais que a contemplaram, é altamente provável que elas dirijam um olhar de cumplicidade para o espelho. Pois é ele, o espelho, o único objeto em todo universo que elas próprias criaram ainda capaz de refletir o talento e a grandiosidade dos quais se julgam possuidoras. Nós já nos tornamos cegos para elas. E mudos. E surdos. E indiferentes. E foram elas e sua empáfia que nos deixaram assim. Que o sono possa ser leve e justo para elas e para cada um de nós também. E que a inevitável queda da cama, por fim, não as machuque tanto: o mundo ainda não está preparado para descobrir que elas, assim como nós, também podem ter hematomas.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

As vítimas do golpe de Paula: cada um de nós

Tenho acompanhado, como milhões de brasileiros curiosos, os desdobramentos do caso da advogada pernambucana Paula Oliveira, que acaba de ser indiciada pelo governo suíço depois que sua versão de ter sido atacada por três neonazistas que lhe retalharam o corpo aparentemente desmoronou. Segundo a promotoria suíça, Paula, que em nenhum momento esteve grávida de gêmeas, teria ela mesma provocado os ferimentos que chocaram não só o Brasil, mas grande parte do mundo. As investigações prosseguem, mas eu creio que não é mais necessário ouvir médicos legistas e nem sair em busca de prováveis testemunhas do atentado que nunca houve: basta acompanhar as reações do pai de Paula, o advogado Paulo Oliveira, para que se tenha a certeza de que sua filha se meteu em uma grande enrascada. Da qual, espera-se, não consiga se safar com tanta facilidade.

O advogado chegou à Suíça dois dias depois do atentado. Seu rosto era a síntese de toda a dor e indignação que cada um de nós, brasileiros, compartilhava naquele momento. Confesso que fiquei arrasado quando ele se referiu às gêmeas que Paula teria perdido como sendo “as minhas netinhas que eu não cheguei a ter”. O advogado revelava, diante das câmeras de tevê, sua angústia e preocupação com o estado de saúde da filha, e afirmava, como faria qualquer pai, que pensaria nas medidas legais em um segundo momento, quando a jovem já estivesse recuperada. E então começou a ocorrer o impensável: a cada dia, o advogado ia se mostrando mais titubeante na frente dos repórteres, suas respostas demoravam a brotar, a certeza começava a abandonar o seu rosto perplexo. Segundo os jornais, ele caminhava atônito pelos corredores do hospital em que a filha estava internada e já era evidente, em seu comportamento, que uma grande reviravolta havia lhe quebrado as pernas e toda a convicção sobre a inocência da garota. A madrasta de Paula, que passou vários dias alegando que esfregaria na cara de quem quisesse os exames que comprovavam a gravidez da jovem, também mudou de estratégia: sumiu dos noticiários e passou a se esconder da imprensa como se estivesse sendo, ela própria, acusada de alguma coisa.

Neste instante, na minha opinião, já não se fazia mais necessário o depoimento de médicos e policiais: o ato de Paula estava doloridamente mapeado no rosto de seu pai e na omissão de sua madrasta. Os últimos fatos só parecem comprovar isso: a jovem advogada, bem-sucedida e vivendo em situação legal naquele país, teria armado toda aquela encenação para abocanhar uma indenização que pode chegar aos 100 mil dólares. O que me espantou neste caso, além da desfaçatez de Paula, foi o estranho mea-culpa de alguns jornalistas conceituados que haviam comprado a versão da garota em primeira mão. Quando a farsa de Paula começou a vir a público, eles não tiveram a decência de dizer que haviam sido precipitados em seu julgamento. Não haveria mal algum nisso: as fotos do corpo retalhado da jovem e seu relato da agressão eram tão revoltantes que não nos cabia outra escolha a não ser confiar nela – e partilhar de sua dor. Pois os tais jornalistas, diante da farsa e do engodo do qual foram vítimas, preferiram publicar o seguinte: “Tudo bem, não aconteceu nada com Paula, mas poderia ter acontecido, pois a pobre jovem vive num país xenófobo”.

Calma, lá: como assim? Parece muito a desculpa do ex-presidente George Bush, que após invadir o Iraque e não encontrar nenhuma arma de destruição em massa, veio a público afirmar o seguinte: realmente não havia armas, mas a invasão se justifica porque poderia haver.... Será que as pessoas lúcidas não têm noção do tamanho da barbaridade que uma desculpa assim fajuta representa? Do tamanho do precedente que se abre para justificar qualquer mentira? E mesmo a questão da xenofobia tem de ser tratada com muito mais cerimônia. A Suíça tem a maior população de imigrantes de toda a Europa: 25%. Ou seja, de cada quatro habitantes do País, um não é suíço. É um dado relevante que deve ser analisado com muita calma, ainda que o país atravesse uma assustadora guinada à extrema direita.

Mas como agiríamos se houvesse no Brasil 50 milhões de imigrantes, quem sabe interessados em nossos empregos? É algo em que devemos pensar com muito cuidado. Será que nós, brasileiros, também não exibimos, ainda que de forma mais indolor, algum sintoma de xenofobia? Estendemos tapetes vermelhos para americanos, franceses e alemães que encontramos passeando pelas ruas dos Jardins ou almoçando em restaurantes badalados da cidade – e ainda pagamos o maior mico na tentativa de nos comunicar na língua deles, para que se sintam bem-vindos, protegidos e familiarizados. E então eu pergunto: dedicamos o mesmo carinho e atenção com os bolivianos que entopem as ruas do Brás? Ou com os coreanos que vivem no Bom Retiro? E, se é para colocar o dedo na ferida, então vamos fundo: tratamos com o mesmo respeito e dignidade os brasileiros do Norte e Nordeste que estão à nossa volta, fazendo os trabalhos que não nos imaginamos fazendo? É bom que a gente pense nisso com muito cuidado antes de usarmos a xenofobia como desculpa para todos os atuais males do mundo.

Tudo indica que a jovem advogada fez uma cagada homérica, pela qual milhares de brasileiros no exterior vão ser penalizados todas as vezes em que comunicarem alguma injustiça VERDADEIRA do qual tenham sido vítimas. Caímos todos na história do carneirinho que berrava que havia um lobo no caminho. Não houve nenhum lobo no caminho de Paula, mas estaremos perdidos quando o lobo aparecer de verdade na nossa frente e ninguém mais nos levar a sério. O Itamaraty está tratando Paula como se ela fosse uma princesinha desamparada numa terra inóspita – uma terra que a recebeu com um namorado nativo e vencimentos em euros. E onde estava o mesmo Itamaraty quando o compositor Guinga, este sim um orgulho nacional, já gravado por Elis Regina e gente de calibre semelhante, foi espancado por um policial no aeroporto de Madri, teve o dinheiro roubado e perdeu dois dentes na agressão? Guinga é menos cidadão brasileiro que Paula Oliveira? Muito estranho este critério, muito estranho.

Se a polícia suíça comprovar que a advogada brasileira realmente mentiu – e tudo parece caminhar nesta diração – eu torço, de verdade, para que ela passe alguns anos mofando na cadeia e não se safe com o pagamento de uma multa. O dano que ela causou para os brasileiros merece ser corrigido – e exemplarmente. Mas, caso venha a ser presa, há algo no que ela pode se apegar: seu zeloso pai, aparentemente tão ludibriado como todos nós, com certeza irá presenteá-la com os melhores chocolates do mundo nos dias de visita. Comprados logo ali, na esquina ao lado do xilindró....

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Cenas do próximo capítulo

Adoro as novelas da Glória Perez por um motivo muito particular. Quando elas estão sendo exibidas, sei que posso ir ao cinema sem o menor receio de estar perdendo alguma coisa bacana. Algo que não ocorria, por exemplo, quando A Favorita entrou em sua reta final: era impossível sair de casa e ficar sem saber quem seria a vítima da Flora naquela noite. E não que A Favorita fosse assim um Roque Santeiro ou um Vale Tudo. Ela era apenas aquilo que toda novela em princípio deveria ser: um folhetim emocionante com personagens do bem que sofrem durante grande parte da trama, para ser compensados no final com uma herança, um amor ou a descoberta de um filho querido e distante, enquanto os personagens ruins terminam mortos, presos ou condenados à infelicidade. Nada assim tão complicado. Tudo bem que Gilberto Braga subverteu esta ordem e nos deixou a todos com cara de bobos ao permitir que o personagem de Reginaldo Faria em Vale Tudo escapasse impune depois de tantas trapaças, e ainda desse uma banana para o país no horário nobre. Gilberto Braga, embora talentosíssimo, nem precisou ser assim um gênio da raça: ele só teve a coragem de mostrar na novela aquilo que estamos acostumados a ver no nosso dia a dia.

Mas por que A Favorita e Vale Tudo, para ficar apenas em dois exemplos, eram novelas deliciosas de ver enquanto que Caminho das Índias, de Glória Perez, é um porre? Minha explicação bem simples: porque em A Favorita e Vale Tudo os personagens falavam como gente normal e nenhum deles tinha a pretensão de revelar uma parábola a cada diálogo. Suas falas cotidianas não tinham a obrigação de se converter em mandamentos sagrados – até porque o nosso mundo real vai um pouco além das páginas da Bíblia, graças a Deus. Vi apenas um capítulo de Caminho das Índias e tenho a certeza de que não preciso ver mais nada. A impressão que eu tive era de que estava diante de uma animação feita a partir da Wikipedia: todos falam por meio de verbetes, ninguém é natural, ninguém é espontâneo. Todo personagem surge em cena, antes de mais nada, para nos dar uma lição de moral, para nos dizer que todas as ações negativas que praticamos um dia vão se voltar contra nós mesmos e para nos ameaçar com as chamas do castigo eterno. Então eu pergunto: para que ver novela se é isso o que elas têm a nos dizer? Não seria melhor ir direto à igreja ou ler os discursos do papa, já que pelos menos eles nos dão estes mesmos conselhos com mais propriedade e terror?

Confesso que imagino um dia na vida de Tony Ramos ou Lima Duarte, dois grandes atores brasileiros. Eles têm de sair de casa cedinho, chegar ao Projac, pintar uma bolinha vermelha na testa, vestir um saiote ridículo e ficar ensinando o Brasil inteiro a diferença entre o bem e o mal, o pecado e a virtude, o céu e o inferno. Nada de uma boa intriga, de um saboroso complô, de uma personalidade sacana que adoramos ver quebrar a cara depois da janta. As nossas noites na Globo viraram uma grande aula de catecismo.

E então decidimos trocar de canal, mas para continuar nas novelas, porque somos fãs do gênero, fazer o quê? E o que nos aguarda na emissora vizinha, a Record? Uma legião de atores com dentadura de vampiros, cabeleiras desgrenhadas, unhas de feras e superpoderes que nos remetem à pré-história dos efeitos especiais. Se em Caminho das Índias os diálogos já são pobres, em Caminhos do Coração, na Record, eles beiram à indigência. Basta um capítulo desta novela para que aprendamos que o amor move montanhas, a fé é o que nos mantêm vivos, o bem sempre vencerá no final e não há extraterrestre no universo capaz de arranhar a dignidade das pessoas de bom coração. Nossa paciência chega ao limite quando todos estes ensinamentos saltam da boca de crianças de seis anos – nesta novela da Record, até os recém-nascidos já se mostram catequizados e doidinhos para descortinar a harmonia do universo diante da nossa boca aberta de sono e incredulidade.

No meio desta aridez de emoções, só nos resta torcer para que um Silvio de Abreu, um Lauro César Muniz e um Gilberto Braga voltem depressa para lavar a nossa honra de noveleiros. Até porque, acabo de conferir a programação de cinema e só há dois filmes que eu ainda não vi. E estou guardando estes dois com a parcimônia de quem reserva uma garrafa de água no deserto: algo me diz que, na falta de alho, é sempre bom ter um filminho na manga para espantar os vampiros da Record e as vacas sagradas da Globo.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Seu Aristides, meu velhinho de direita

Não sou médium e nem pai de santo, mas às vezes tenho certeza de que uma entidade baixa em mim. Esta entidade se chama seu Aristides, é um velhinho aposentado de direita, ranzinza e pessimista, cansado de psicologismos e panos quentes e convicto de que algumas coisas só podem ser resolvidas na base do grito e da porrada. Hoje, por exemplo, seu Aristides baixou em mim logo cedo e disse que só vai embora quando eu escrever aqui tudo o que ele está pensando. Como eu preciso de um pouco de sossego para trabalhar, vou logo dar o recado do velho para seguir com a vida depois.

Semana passada eu usei este espaço para mostrar o quanto estava indignado com os trotes promovidos pelos alunos da PUC e da FAAP, que paravam o trânsito na região de Perdizes e Higienópolis para pedir dinheiro aos motoristas. Naquele dia, o velhinho de direita também tinha me possuído, mas o humor dele estava consideravelmente melhor do que hoje. Pois bem, lendo os jornais de ontem e hoje, constato (ou seria o seu Aristides que constata, às vezes eu me confundo) que o trote da PUC e da FAAP não passava de brincadeira de criança diante das barbaridades a que foram submetidos um calouro de Medicina Veterinária de uma faculdade na cidade do Leme e uma estudante grávida em uma escola de Santa Fé do Sul. O calouro foi chicoteado, teve de chafurdar em fezes e restos de animais em decomposição, obrigado a consumir bebida alcoólica em quantidade suicida e depois, ferido e em coma, abandonado numa calçada, para ser socorrido pela mãe de um outro estudante. Deu entrada num hospital como indigente, pois os veteranos haviam surrupiado sua carteira com os documentos. Já a garota, grávida, teve as costas queimadas por uma mistura de tíner e creolina atirada em seu corpo por uma estudante de pedagogia. Os dois calouros, como era de se esperar, alegam que não têm mais condições e coragem de continuar nas escolas.

Além das atrocidades em si, o que deixa o meu velhinho de direita puto da vida é a desculpa esfarrapada das universidades. Todas elas têm, na ponta da língua, o mesmo discurso pronto e repetido dezenas de vezes nesta época do ano: dizem que vão abrir sindicância e que não podem se responsabilizar pelo que os alunos fazem além dos muros da instituição. Meu ânus, diria o velhinho de direita, que é revoltado mas odeia palavrões. É como se os pais falassem que não podem se responsabilizar pelo que seus filhos adolescentes fazem fora de casa. Não só podem, como devem se responsabilizar. Minha entidade ficaria muito menos emputecida se as faculdades fossem honestas e alegassem o seguinte: “Sim, nossos alunos são vândalos, sim. Mas eles estão com a mensalidade em dia e não é interessante para o nosso fluxo de caixa que eles sejam expulsos da instituição. Preferimos ver um calouro humilhado e queimado a ter de expulsar da escola um bando de irresponsáveis a quem acobertamos para que não haja prejuízo financeiro na nossa reconhecida instituição acadêmica. Atenciosamente, o nobre reitor”.

Seu Aristides, então, pergunta: que tipo de sindicância precisa ser aberta quando os autores destes trotes violentos são reconhecidos pelas vítimas e pelas imagens gravadas em celular? Sim, porque este show de crueldade é fotografado e filmado por outros alunos como se eles estivessem diante de uma festinha de aniversário! Os autores do trote foram reconhecidos? Sim. A culpa deles foi comprovada? Sim. Então, pronto: rua para estes canalhas. Expulsão imediata, sem choro nem vela. As faculdades não podem mais abrigar este tipo de estudante e nem ser coniventes com práticas tão aterradoras. Eles devem abandonar os bancos acadêmicos e ser entregues à polícia. Eu tenho certeza de que, se houvesse uma punição à altura da violência praticada, no ano seguinte os trotes teriam a candura de um batizado de bebê. O que motiva os estudantes a este vandalismo com hora marcada é a mesma impunidade que, com o tempo, forja a conduta e a alma dos nossos políticos.

Chega de acobertar estudantes de medicina que entram nos hospitais soltando rojões, grita o seu Aristides; chega de proteger veteranos que queimam, espancam e chicoteiam os calouros; chega de alegar que as faculdades não têm responsabilidade sobre isso. De neonazistas já bastam os que vivem na Europa, não precisamos de um criadouro deles por aqui.

Antes de liberar meu corpo para outras tarefas e seguir seu caminho de pouca luz, meu velhinho de direita pede para que eu faça ainda duas perguntas aqui:

1) Quando é que os jornais vão parar de falar desta maldita plástica da Dilma Roussef e dos inúmeros penteados que ela vem usando nas últimas semanas? Ela é uma ministra de Estado ou uma postulante ao São Paulo Fashion Week? Se os jornais insistem em dar foto de mulher na capa (afinal, dizem que vende mais), será que não existe uma cocotinha (seu Aristides, ninguém mais fala cocotinha, não me envergonhe) que ainda não tenha passado pelo bisturi, não?

2) Quando é que alguns jornais mais sérios, como a Folha de S. Paulo, por exemplo, vão parar de falar destes malditos participantes do Big Brother? A corja já invade a nossa televisão a torto e a direito e a gente ainda é obrigada a comprar jornal para ver, DIARIAMENTE, o que aquelas mentes tão brilhantes andam aprontando debaixo do sorriso amarelo do Pedro Bial.? Será que os colunistas de televisão que escrevem nos grandes jornais não encontram nada mais interessante para nos revelar?

Pronto, seu Aristides já disse tudo que tinha de dizer por hoje e agora vai tirar uma soneca. Mas eu desconfio que logo logo ele volta....

domingo, fevereiro 08, 2009

Macacos me mordam

Dois séculos após o nascimento de Charles Darwin e a maioria dos ingleses, seus conterrâneos, ainda não acredita na teoria da evolução. Até aí, tudo bem: pelas matérias publicadas neste domingo (o Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, e 20 páginas na revista Veja) parece que os ingleses não estão sozinhos nesta desconfiança. Cresce a cada dia, ao redor do mundo, a legião daqueles que preferem crer no sopro divino da criação – um boneco de barro chamado Adão, de quem Deus tirou uma costela para fazer Eva, a companheira intempestiva que pôs tudo a perder quando resolveu morder a maçã. Como mitologia, sempre achei esta história um pouco pobre e sem graça. Os gregos criaram enredos muito mais saborosos e interessantes para compreender o nascimento dos seus deuses. Adão, Eva, Noé e sua arca, ainda que simplórios, são a mitologia que nos cabe e é nela que a Bíblia nos ensina a acreditar, ainda que os passos da ciência moderna comprovem o quanto Darwin foi preciso e certeiro ao descrever a nossa origem.

Fiquei pensando e cheguei à conclusão – talvez tão simplória quanto a existência de Adão e Eva – de que a grande aversão às teorias de Darwin é consequência não do fato de ele nos ter dito de onde viemos, mas de não nos ter ensinado para onde vamos. Este é o grande dilema do darwinismo: ele mapeou o nosso passado mas, ao reduzir a importância de Deus no nosso currículo, nos deixou espetacularmente sozinhos no mundo. Se somos realmente produto de uma caprichada teoria evolutiva, que levou milhões de anos para forjar um polegar em nossas mãos e um cérebro avantajado em nossas cabeças, capaz de compor sinfonias e produzir naves espaciais, para onde irá tudo isso após a nossa morte? O que nos espera se não existe um Deus para nos receber de braços abertos quando se der o nosso último suspiro – afinal, se Deus não foi um elemento assim tão presente em nosso surgimento, quem nos garante que ele se revelará em toda sua glória diante de nós quando chegar o nosso fim?

Com todas as evidências científicas hoje disponíveis, a única justificativa convincente para que milhões de pessoas ainda acreditem no criacionismo é o medo do grande nada. É esta estranha sensação que faz de nós apenas mais um item nesta grande diversidade natural que forma o planeta – nem de longe o mais importante e insubstituível dos itens e nem de longe o que mais se aproxima em forma e conteúdo da figura do criador. Para a natureza, talvez a espécie humana, apesar de todas as suas incontáveis habilidades, seja apenas um macaco elegante que trocou as árvores e cavernas por condomínios fechados. E é com isso que não conseguimos conviver. Acredito que o ritmo espantoso da nossa evolução nos afastou além do que seria desejável das demais espécies e realmente é doloroso acreditar num homem que comprovou, há 150 anos, que na primeira ramificação da nossa árvore genealógica só existiam grunhidos, mordidas, dentes à mostra e pelos, muitos pelos... E nenhum resquício de uma alma imortal.

Pelo pouco que sei de Darwin, ele nunca negou a existência de Deus. E se houve alguém que sofreu demais com sua teoria, este alguém foi ele mesmo. Seu grande pecado foi ter revelado que tivemos todos uma origem comum – e, por isso mesmo, é absolutamente esperado que venhamos a ter também um fim comum. Compartilharemos todos da grande vala comum do universo, ainda que tenhamos a suprema chance, naquele intervalo do berço ao túmulo, de deixar a nossa marca neste planeta. E é isso que talvez o ser humano não consiga aceitar – a idéia de que nós, eretos, poliglotas, asseados, bem-feitinhos e altamente tecnológicos iremos para o mesmo lugar destinado ao gorila cheio de piolhos que é morto na África. Realmente é um final melancólico para a nossa soberba. Realmente seria muito mais confortável destruir todas as idéias de Darwin, se não fossem por dois detalhes: 1) a culpa de a vida ser assim não é dele; 2) infelizmente, o velhinho parecia estar certo. Ai de nós e de nossa solidão.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Um trocadinho, por favor.

Passei pela região da Faap, em Higienópolis, hoje na hora do almoço. O trânsito estava horrível: tudo parado ao redor da faculdade. Pensei que o motivo daquele caos fosse a volta das aulas. Mas, ao chegar mais perto, vi que não era só isso: centenas de calouros, jovens da classe média alta, de belos rostos e um sorriso de uns 52 dentes, se espalhavam por todas as esquinas pedindo uma gorjeta aos motoristas. Na região da PUC, não muito longe dali, o cenário costuma ser o mesmo: calouros cruzando as ruas com moedinhas e notas miúdas nas mãos para entregar aos veteranos – uma performance em que se torna difícil distinguir qual dos dois lados é o mais idiota: se o dos calouros, obrigados a mendigar com seus jeans da Diesel nos semáforos, ou o dos veteranos, uma espécie de contadores da miséria, que na falta de coisa melhor a fazer na vida, devem ficar imaginando quantos copos de cachaça será possível comprar com tantas moedinhas. Não sei qual é o destino que os estudantes darão ao dinheiro arrecadado nas ruas destes bairros nobres da cidade – eu gostaria de acreditar que a quantia seria doada a alguma instituição de caridade ou usada na compra de equipamento escolar. Mas quando a gente repara no movimento dos botecos ao lado destas faculdades, fica fácil imaginar que tudo acaba em pinga.

Sei que há exceções, mas a maioria dos trotes continua sendo um ritual de imbecilidade. Todos os anos vemos casos de jovens feridos por tesouras, com a pele queimada por tinta ou algum produto químico ou, em casos mais graves, de calouros mortos por traumatismo ou afogamento. E outros casos, incontáveis, de jovens que se recusam a voltar à faculdade em função da carga de violência ou humilhação com que foram recepcionados por alunos mais velhos. Sei que os estudantes podem dizer: pô, faz parte da nossa ideia de socialização, é o momento de celebrar esta nova fase na vida dos jovens. Sei, conta outra...Ainda acho que é uma semana dedicada às formas mais primárias do sadismo. Isso é o que você merece por desejar competir comigo no mercado de trabalho – devem pensar os veteranos, enquanto transformam os calouros em uns zumbis de várias cores.

Aqueles jovens da Faap me impressionam especialmente. Hoje eles estão com os rostos e cabelos empapuçados de tinta, com as camisetas rasgadas e um certo ar de aventura nos rostos, enquanto experimentam, por um ou dois dias na vida, a sensação de ser um mendigo fashion. Sabemos que, na semana que vem, já inseridos em seu habitat natural, grande parte deles chegará à faculdade em seus carros importados, alguns com motorista e segurança. Se eles querem realmente fazer um trote inteligente e original, que tragam dinheiro trocado de suas próprias casas, em notas de um, e distribuam aos motoristas obrigados a perder tanto tempo no trânsito. Parece mais justo, mais politicamente correto e, acima de tudo, menos hipócrita. Tirando os veteranos, alijados de sua comissão, a cidade inteira aplaudiria este trote.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

A velha parede

Quando eu era garoto, seis ou sete anos, dormia em uma cama encostada na parede. Toda manhã minha mãe a afastava um pouco, para ajeitar os lençóis e cobertas – e a deixava assim, a cerca de um metro da parede, “para que eu não dormisse com o nariz no concreto”, como ela costumava dizer. À noite, eu empurrava a cama novamente para o lugar em que eu sempre achei que ela deveria estar – completamente colada à parede pintada de azul claro, onde eu apoiava os joelhos para só assim pegar no sono.

Quem vive em apartamento, principalmente em andares altos, perdeu um pouco a noção do papel protetor que as paredes exercem – elas são vistas muito mais como depositárias de quadros, relógios e outros objetos de decoração. Mas a minha parede de menino era uma espécie de fortaleza particular, algo que me fazia sentir muito mais seguro do que a presença dos pais a poucos metros dali. Era aquela parede, que mais tarde se revelou surpreendentemente frágil, que me separava de todos os sons e ameaças noturnos: as brigas dos cães, o alvoroço dos bêbados nas calçadas, as discussões dos casais nem sempre apaixonados, a freada brusca dos automóveis, sem falar na chuva e no vento, estes sim inimigos mais constantes.

Eu dormia com olhos e ouvidos colados àquela parede, imaginando um mundo de perigos logo ali, do outro lado. E então, nestes poucos minutos antes de cair no sono, eu acreditava que aquela parede era, acima de tudo, uma espécie de juiz: do lado de cá, onde eu estava, ficaria o mundo da paz, do silêncio das noites bem-dormidas, do calor dos pijamas e cobertores e da certeza de um despertar tranqüilo; do lado de lá, atravessando a parede e um pedaço de quintal, encontrava-se um reino de perigos inomináveis para um garoto de seis anos. E eu dormia colado à parede como uma criança que se aninha no colo da mãe – fora daquela zona conhecida e protetora, todo o resto constituía uma ameaça medonha.

Muitos anos depois, quando já vivíamos em um lugar maior e bem melhor, aquela pequena casa da infância pegou fogo. O filho do inquilino que vivia ali, um garotinho de dois anos, ateou fogo no beliche e as chamas, em poucos minutos, consumiram a casa toda. Ninguém se feriu – mas as paredes, entre elas a da minha infância, cansadas do tempo e de tantas noites de resguardo, vieram ao chão.

Quando me lembro daquela velha casa, o que sinto não é exatamente saudade – afinal, ela só devia ser uma casa confortável e espaçosa na cabeça de um garoto de seis anos. O que sinto é uma certa tristeza de constatar que algo que um dia me transmitiu tanta proteção e segurança já não existe mais. É a isso que costumamos chamar de abandono, eu acho.