Quando eu era garoto, seis ou sete anos, dormia em uma cama encostada na parede. Toda manhã minha mãe a afastava um pouco, para ajeitar os lençóis e cobertas – e a deixava assim, a cerca de um metro da parede, “para que eu não dormisse com o nariz no concreto”, como ela costumava dizer. À noite, eu empurrava a cama novamente para o lugar em que eu sempre achei que ela deveria estar – completamente colada à parede pintada de azul claro, onde eu apoiava os joelhos para só assim pegar no sono.
Quem vive em apartamento, principalmente em andares altos, perdeu um pouco a noção do papel protetor que as paredes exercem – elas são vistas muito mais como depositárias de quadros, relógios e outros objetos de decoração. Mas a minha parede de menino era uma espécie de fortaleza particular, algo que me fazia sentir muito mais seguro do que a presença dos pais a poucos metros dali. Era aquela parede, que mais tarde se revelou surpreendentemente frágil, que me separava de todos os sons e ameaças noturnos: as brigas dos cães, o alvoroço dos bêbados nas calçadas, as discussões dos casais nem sempre apaixonados, a freada brusca dos automóveis, sem falar na chuva e no vento, estes sim inimigos mais constantes.
Eu dormia com olhos e ouvidos colados àquela parede, imaginando um mundo de perigos logo ali, do outro lado. E então, nestes poucos minutos antes de cair no sono, eu acreditava que aquela parede era, acima de tudo, uma espécie de juiz: do lado de cá, onde eu estava, ficaria o mundo da paz, do silêncio das noites bem-dormidas, do calor dos pijamas e cobertores e da certeza de um despertar tranqüilo; do lado de lá, atravessando a parede e um pedaço de quintal, encontrava-se um reino de perigos inomináveis para um garoto de seis anos. E eu dormia colado à parede como uma criança que se aninha no colo da mãe – fora daquela zona conhecida e protetora, todo o resto constituía uma ameaça medonha.
Muitos anos depois, quando já vivíamos em um lugar maior e bem melhor, aquela pequena casa da infância pegou fogo. O filho do inquilino que vivia ali, um garotinho de dois anos, ateou fogo no beliche e as chamas, em poucos minutos, consumiram a casa toda. Ninguém se feriu – mas as paredes, entre elas a da minha infância, cansadas do tempo e de tantas noites de resguardo, vieram ao chão.
Quando me lembro daquela velha casa, o que sinto não é exatamente saudade – afinal, ela só devia ser uma casa confortável e espaçosa na cabeça de um garoto de seis anos. O que sinto é uma certa tristeza de constatar que algo que um dia me transmitiu tanta proteção e segurança já não existe mais. É a isso que costumamos chamar de abandono, eu acho.
quarta-feira, fevereiro 04, 2009
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2 comentários:
é serginho, abandono com um tempero de nostalgia. eu também tive uma parede. no sobrado em que eu morava na alameda casa branca, que era cheia de casinhas modestas, que foram abaixo pra dar lugar a prédios residenciais 'finos'. é tão triste, quando passo por lá e vejo o prédio que engoliu a "minha" parede... lindo texto. beijão. guza
Oi, Guza, é uma sensação engraçada, né? Talvez se minha casa ainda estivesse de pé, como a sua, talvez a sensação hoje fosse diferente, não é? Mas o fato de não existir mais torna tudo mais distante....beijão
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