quarta-feira, outubro 31, 2007

Próxima pergunta, por favor!

Na semana passada participei de uma entrevista coletiva com uma das mais famosas atrizes da tevê brasileira. Houve um tempo em que eu gostava muito das coletivas. Hoje, na maioria das vezes, saio deprimido delas. Desconfio que eu já me tornei uma espécie de dinossauro do jornalismo - na maioria das coletivas, costumo estar entre os profissionais com mais tempo de carreira... e de idade. A maioria dos meus colegas ou já abandonou a profissão ou está ocupando cargos de chefia e por isso se afastaram da reportagem. Eu já ocupei cargos de chefia também, mas não sinto saudade destas épocas. A reportagem ainda é, na minha opinião, a faceta mais emocionante que o jornalismo pode oferecer a quem o pratica.

As coletivas sempre foram a grande oportunidade de trocar experiências e conhecimentos com os colegas que cobriam a mesma área e também com o entrevistado. Era o momento de aprender com perguntas inteligentes que sempre provocavam respostas idem. Infelizmente, isto acabou - ao menos para um determinado segmento do jornalismo cultural. Os jovens profissionais, talvez seduzidos pelas publicações que só enaltecem os famosos, não estão mais interessados em perguntar nada - eles querem apenas tornar públicos seus elogios. Aliás, me parece que fazer pergunta está fora de moda no jornalismo: boa parte dos repórteres está muito mais interessada em dar suas próprias opiniões ou exibir seus parcos conhecimentos sobre algum tema do que em indagar o entrevistado. Você participa durante uma hora de uma coletiva e volta para casa com as mesmas informações que já constavam do release.

Nesta coletiva da semana passada, um repórter, o primeiro a segurar o microfone, disse que mal via hora de o espetáculo estrear, porque tinha certeza de que seria emocionante. Onde estamos, eu pensei na hora. Em um evento profissional ou tomando um chá da tarde na casa da nossa avó? Que me interessa saber para quem ou o quê o repórter está torcendo? Se ele quer felicitar um artista pelo seu desempenho, que mande um e-mail, passe na papelaria e compre um cartão ou vá bater na porta do seu camarim. Entrevista coletiva existe para que perguntas sejam feitas e, neste caso, é muito mais produtivo para os leitores constatar que o artista foi colocado numa sinuca do que presenciar todos os galanteios feitos em público por profissionais que são pagos para questionar, e não para bajular.

Há algum tempo, uma jovem repórter perguntou em uma coletiva se a atriz Marisa Orth se lembrava que elas tinham compartilhado de um mesmo camarote em um carnaval de Salvador. Como a memória da atriz não colaborava, a repórter ajudou: eu estava com o cabelo diferente... lembrou agora? Tive vontade de me enfiar debaixo da mesa. Ou de apanhar o microfone para dizer que não, eu não fazia parte deste novo time. Espero não estar sendo presunçoso ao escrever tudo isso. É só o desabafo de alguém que tá velhinho pra sair de casa, pegar trânsito, pagar estacionamento e depois de tudo passar uma hora ouvindo elogios descabidos a trabalhos que ainda nem disseram a que vieram.

sábado, outubro 27, 2007

Corrida de bastão

A academia de ginástica que eu frequento ocupa um prédio envidraçado de dois andares no bairro do Sumaré. Do segundo andar, onde estão instalados os equipamentos de musculação, é possível ver as duas piscinas que ficam no térreo - a adulta, onde eu já presenciei alguns alunos fazendo até aulas de mergulho, e a infantil, de longe o lugar mais divertido de toda academia. Esta semana, enquanto tentava me adaptar à minha nova série de exercícios, fiquei emocionado com um tipo de treinamento que unia mães e seus bebês pequenos na piscina infantil.

O treinamento era simples. As mães, a maioria delas em elegantes trajes de natação, tinham de erguer seus bebês um pouco acima de suas próprias cabeças, e caminhar com eles de uma margem à outra da piscina. Talvez algumas pessoas se perguntem: mas o que há de emocionante nisso? Eu explico: a expressão de vitória estampada no rosto de cada uma delas. Naqueles breves minutos do exercício, era como se seus filhos não fossem apenas filhos, mas venerados troféus que elas exibiam aos professores, aos demais alunos e, salvo exagero de minha parte, também aos céus. Os bebês em suas touquinhas coloridas eram a prova inconsteste de que algo havia dado certo na vida delas, e por isso podiam ser exibidos acima de suas próprias cabeças. E lá iam as mães, em grupos, movendo-se contra a pressão da água, plenas de vida com suas crias perfeitas e belas.

Havia algo de ancestral naquela cena - fêmeas jovens orgulhosas de seus rebentos saudáveis. A emoção que me invadiu devia-se exatamente a isso: a certeza de que a natureza permitiu às mulheres serem divinamente mais animais do que nós os homens. Existe algo que demonstre mais o poder da natureza do que uma mulher grávida? Existe alguma imagem mais maravilhosamente eficaz do que a de uma mulher amamentando para nos lembrar de nossa condição de primatas evoluídos? Eu sempre pensei que está nelas, nas mulheres, esta ligação mais terna e profunda com algum lugar remoto de onde viemos. E não há excesso de romantismo nisso, não. O mesmo ser humano que chega à lua e é capaz de outras proezas tecnológicas, um dia procurou faminto o seio de sua mãe, como fazem os cães, os gatos e nossos irmãos chimpanzés. E são estes dois momentos, a gravidez e a amamentação, a principal peça de resistência de nossa sociedade. Enquanto nascermos delas e procurarmos seus seios para algum tipo de alimento que só se encontra ali, eu sinto que tudo ainda está em ordem. E a coroação disso tudo, para mim, foi ver aqueles bebezinhos como acessórios de uma comovente prova olímpica - eles eram, no fundo, o bastão que suas mães algum dia irão entregar para a grande atleta que está logo ali, correndo incansável na frente de todos nós: a vida.

Duas frases e um conselho

Talvez tenha sido a chuva que empurrou muita gente para os cinemas na tarde de quinta-feira. Tentei ver alguns dos filmes mais badalados da Mostra e não consegui: dei de cara com o aviso de ingressos esgotados em três vitrines de cinema. Faz parte da Mostra e de seu folclore. Inútil perder a paciência ou achar que o dia está jogado fora. É só abrir o guia e ver que, muito perto de você e dentro de no máximo meia hora, outro filme, talvez menos concorrido, está prestes a começar. E é sempre um convite para a aventura, para o desconhecido.

Foi assim que entrei na sessão de A Última Hora, documentário produzido e narrado por Leonardo DiCaprio sobre o aquecimento global e nossa permanência cada vez mais incerta neste planeta. Pensei duas vezes antes de entrar na sessão. Como eu já via visto Uma Verdade Inconveniente, documentário de Al Gore de tom apocalíptico, julguei que não precisava me deprimir de novo diante da idéia de que não haverá mais o Ártico dentro de alguns anos e que, também dentro de alguns anos, vai ser difícil apontar uma diferença entre a Amazônia e o Saara - será tudo um deserto só.

Mas entrei. E confesso que me surpreendi, pois A Última Hora é um documentário que está disposto a nos redimir. Em seus momentos finais, ao menos. Depois de passar três quartos do filme apontando a quantidade de besteiras que a humanidade já fez, alguns dos principais cientistas internacionais deram algumas receitas de como salvar o planeta enquanto ainda resta um pouquinho de tempo. Tudo, é claro, passa por uma decisão política: se realmente quisermos, haverá futuro e ele não será nada assustador.

Mas guardo duas frases que foram ditas no filme. Da primeira eu não me recordo o autor, mas ele diz mais ou menos assim: "Nunca teremos o bastante daquilo que não precisamos". E a segunda foi dita por Churchill: "Os americanos têm vocação para fazer a coisa certa. Depois, é claro, que eles já esgotaram todas as outras alternativas".

E aqui um conselho para os amigos atores, atrizes, diretores, escritores, gente de teatro, literatura, cinema e todas as demais pessoas bacanas e sensíveis: não percam, por nada neste mundo, o filme francês Atrizes, que está passando na Mostra. Juro que devolvo o dinheiro do ingresso se alguém não gostar.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Uma praga cor de abóbora

Sempre fui da opinião de que todo trabalho, a princípio, é honesto... antes de surgirem os flanelinhas, é claro. Acho que poucas coisas, nos últimos tempos, se reproduziram de forma tão acelerada e sem controle quanto os flanelinhas. Sinto que eles estão, literalmente, cada vez mais perto de mim. Houve uma época em que eles eram vistos apenas próximos aos estádios de futebol, casas de show e alguns poucos teatros. Dentro de pouco tempo, eu tenho medo, eles estarão agindo dentro das nossas próprias garagens.

Não foi apenas na quantidade que esta categoria apresentou mudanças. A abordagem também ficou diferente. Até pouco tempo atrás, eles se contentavam com um real. Havia alguns, mais compreensíveis, que diziam assim: doutor, deixa aí quanto o senhor puder ou quiser. Tirando a parte do doutor, que realmente é chata, o resto do diálogo era até comovente. Agora, não. Eles estipulam o preço, que costuma variar de três a cinco reais, e adotam uma postura muito mais agressiva. EStamos nos tornando, aos poucos, reféns dos flanelinhas.

Ontem fui almoçar na Mercearia São Pedro, um dos cantinhos mais adoráveis e desorganizados da Vila Madalena, um misto de restaurante, locadora de vídeos, livraria e quitanda em que a quantidade de clientes bacanas só é menor que o mau humor dos donos. Moro a apenas duas quadras dali, mas como estava chovendo resolvi ir de carro. Quando estava estacionando o carro, na Rua Jericó, já apareceu um flanelinha para me ajudar na manobra. Isso é outra coisa que irrita: gente que tenta nos ajudar a estacionar o carro. Eu já sou péssimo nestas manobras sozinho. Quando surge alguém para gritar: isso, agora vira, vai um pouco pra frente, ôpa, foi muito, agora volta, não, não deste lado doutor, vira do outro... daí a coisa só piora. Parece que eu voltei para a auto-escola. Quando desci do carro, ele me pediu três reais. Caralho, eu falei. Eu moro ali. Tá vendo aquele prédio? É ali que eu moro. Eu tenho de pagar três reais para tirar o carro da garagem? AO MEIO DIA!!!!! Então eu percebi que os flanelinhas das matinês já tinham invadido também as ruas Harmonia, Girassol, Jericó, Rodésia e todos os outros cantinhos que ainda fazem a Vila Madalena ter cara de bairro do interior. A partir de agora, quando você quiser tomar um simples café na Vila, se prepare: você vai gastar mais com os flanelinhas do que com um bom expresso.

Mas existe um local da cidade em que eles adotaram um grau de profissionalismo que consegue ser ainda mais proibitivo: a região da Faap. Ali eles costumam chegar antes do início das aulas e ocupam as ruas com uma série de cones para guardar vagas para os alunos que vão chegar em pouco tempo. Tente encontrar uma vaga nas imediações da faculdade: quando você avistar, um pouco de longe, um espaço vago entre dois carros, nem adianta comemorar - ao chegar mais perto você vai ver um cone reservando o lugar para algum aluno que, no entender dos flanelinhas, tem mais direito à rua do que você, que não é estudante da Faap.

Daí eu me pergunto: ninguém vê isso além da gente? Não há polícia, fiscais de trânsito ou qualquer outra autoridade que nos garanta o direito de parar o carro na rua sem sermos chantageados? E que ninguém venha me dizer que isso é papo de burguês. Que ter carro é privilégio e que eles estão fazendo um trabalho honesto e que são frutos da injustiça social do país. Ter carro não é privilégio porra nenhuma. Se fosse, São Paulo não seria uma das cidades mais congestionadas do mundo. E o que eles fazem não é nem trabalho e muito menos honesto. É chantagem, é constrangimento, é exotrsão, é ameaça, é aporrinhação. Não é justo que o camarada tenha de pagar para deixar seu carro na rua, não é justo que eles risquem a pintura do carro ou murchem os pneus quando a gente não aceita pagar. E não é justo que a gente se sinta intimidado por não ter pago três reais para um sacana de colete cor de abóbora. O que eles fazem é roubo e, como tal, devia ser proibido.

Mas a Prefeitura e os órgãos de trânsito estão muito mais preocupados em revestir a cidade com câmeras bem equalizadas para nos multar em cada esquina, se por acaso avançarmos alguns centímetros o sinal, não por negligência ou imprudência - mas por medo de sermos assaltados, como eu já fui e muita gente também já foi, a cada vez que paramos num cruzamento da cidade. Tudo é orquestrado para nos roubar ainda mais, para nos extorquir a cada vez que saímos de casa. Os flanelinhas estão ali, visíveis como uma praga urbana, fantasiados de cor de abóbora como se fossem um bloco carnavalesco de desocupados e chantagistas. E ninguém os pune, ninguém os coíbe, ninguém os tira da rua. Eles foram incorporados por nossa paisagem urbana como os equilibristas dos faróis, as crianças desassistidas e os pedintes que caem pelas sarjetas. São tolerados pelo poder público. Quem sabe se até, no intervalo entre uma extorsão e outra, eles ainda não sorriem e fazem tchauzinho para as novas câmeras instaladas para nos multar.

sexta-feira, outubro 19, 2007

Dez coisas que poderiam ser proibidas

1. Os ingressos de cinema acabarem bem na nossa vez de comprar

2. Dar mais do que duas voltas num quarteirão para encontrar uma vaga de estacionamento

3. Peças de teatro que terminam com ária de ópera - só para avisar o público que aquilo realmente é o fim

4. A obrigação de aplaudir de pé todo e qualquer espetáculo que a gente veja - mesmo que seja ruim de doer

5. Acabar a bateria do celular no meio da tarde quando a gente só vai voltar pra casa à noite

6. Chuva na manhã de segunda-feira

7. Usar a camiseta da mostra de cinema com a cara do Hector Babenco estampada no peito

8. Não lembrar quem é aquela pessoa que nos chama pelo nome e sobrenome numa festa

9. A tia que a gente não vê há um tempão dizer que a gente engordou, mas que continua bonitinho

10. O cabelo crescer mais nos lados do que no alto da cabeça

quarta-feira, outubro 17, 2007

Calma, calma... era só brincadeirinha!!!!!

Passo em frente a uma banca de jornal e tomo o maior susto ao ver a capa da revista Flash. LUCIANO HUCK ASSASSINADO POR UM ROLEX. Este era o principal título da publicação, escrito assim, em letras enormes, ao lado de uma foto de Huck com sua mulher, a apresentadora Angélica. Na hora eu pensei: meu Deus, será que o incidente com o tal relógio, que Huck soube tão bem capitalizar a ponto de lhe render uma capa na revista Época e as páginas amarelas da Veja, tinha realmente se convertido numa tragédia? Chego mais perto da banca, já que ultimamente meus olhos, sem óculos, só me permitem ler mesmo as letras graúdas, e percebo que, de maneira muito mais discreta, havia um complemento logo abaixo da manchete: Isto poderia ter acontecido. Respirei aliviado. Luciano Huck não morreu. Quem morreu foi o jornalismo.

Fiquei alguns momentos ali, parado diante da banca, pensando até onde é capaz de ir a inconseqüência de um tipo de jornalismo que se pratica cada vez mais neste país - e, ao que tudo indica, no resto do mundo também. Eles estampam, em manchete, que uma figura pública como Huck é assassinada para esclarecer, logo abaixo, que isso poderia ter acontecido. Resolvi ampliar um pouco a brincadeira proposta pela revista Flash e fiquei imaginando qual seria a reação mundial se um dia lêssemos uma manchete assim: BIN LADEN LANÇA BOMBA ATÔMICA EM LOS ANGELES E MATA 700 MIL. Depois, em letras bem menores, viria o alívio: Isto poderia ter acontecido.

Claro que sim. Tantas coisas poderiam ter acontecido, ou não. Jesus Cristo poderia não ter sido crucificado, Hitler poderia não ter enviado milhões de judeus aos campos de concentração, Fernando Collor poderia não ter sido eleito, eu poderia ter ganho na mega-sena sozinho e agora estaria escrevendo este post de um cyber café no hotel Ritz de Paris... O mundo poderia ser um lugar muito mais divertido se o jornalismo passasse a se dedicar a esta prática alucinógena. Neste dia, não nos preocuparíamos mais com os fatos e sim com as suposições. O que aconteceu seria irrelevante; bom mesmo seria discutir o que poderia ter acontecido. Eu penso que assustadora é a palavra que melhor define este new-journalism que a Flash adotou esta semana. Huck, acredito eu, talvez tenha até ficado feliz em saber que seu Rolex foi capaz de distorcer ainda mais a visão que nós, brasileiros, estamos tendo da realidade. Quem sabe em 2008 a Cásper Líbero, a PUC, a USP e outras tradicionais escolas de jornalismo do país incluam em seu currículo uma disciplina chamada Jornalismo Adivinhatório. Seguramente, muitos profissionais atuantes no mercado dariam grandes mestres.

Se eu não aparecer por aqui nos próximos dias, é porque eu poderei ter decidido escalar o Himalaia - um lugarzinho gelado e inóspito que, até onde eu saiba, não dispõe de cyber café e nem de pivetes doidos para roubar um Rolex.

terça-feira, outubro 16, 2007

Chiquinha

Esta é uma fábula de final triste. Na cidade de São José do Rio Preto vivia uma família que tinha uma gata chamada Chiquinha. Um dia, a família precisou se mudar e, por algum motivo que ninguém conseguiu descobrir, decidiram não levar a gata junto. Um casal de vizinhos passou, então, a cuidar de Chiquinha. Mas, como todos sabem, os gatos são muito apegados à casa em que vivem - e aos donos também, embora insistam em pregar o contrário. Com Chiquinha não foi diferente: ela comia ao lado dos novos donos, mas passava o resto do tempo no portão da casa em que nasceu e viveu toda sua vida até ser deixada para trás.

Um dia chegaram os novos moradores para ocupar a velha casa de Chiquinha, entre eles um estudante de direito de 26 anos, dono de dois cães pitbull. Com medo dos cães e talvez por desconfiar que aquela casa já não era mesmo sua, Chiquinha nunca cruzou o partão: ficava o tempo todo na calçada, provavelmente ainda tentando compreender o abandono, coisa que nós humanos também não conseguimos aceitar direito. Chiquinha não fazia nada além de olhar, mas apenas isso irritou o estudante de direito.

Ao voltar da faculdade uma noite dessas e ver a gata novamente na calçada, o estudante não se conteve. Apanhou Chiquinha pelo rabo, a girou duas vezes em torno da cabeça e a arremessou contra um muro. Algumas pessoas que passavam pelo local interromperam a barbárie e denunciaram o estudante à polícia, no momento em que ele se preparava para pisotear a gata.

Chiquinha quebrou as duas patinhas dianteiras e, apesar de uma cirurgia que tentou reconstituir seus ossos com pinos de metal, ela ficou praticamente aleijada - consegue se locomover, mas manca muito.

A notícia só não dizia se Chiquinha ainda insiste em sentir saudades e a observar por longas horas a casa em que nasceu...

Em pouco tempo aquele estudante estará formado, apto a entrar com celular nos presídios de segurança máxima ou a colaborar com traficantes e sequestradores. E nós, como Chiquinha, continuaremos nossa marcha em direção a algum futuro incerto. Mancando cada vez mais.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Uma tarde para o resto da vida

Fiquei em dúvida entre escrever ou não alguma coisa sobre Paulo Autran. Eu sempre tive medo desta linha fina, muito fina, que separa a homenagem do oportunismo. Nestas horas, continuo achando que o silêncio, o respeito e a saudade sincera são os maiores tributos que podemos prestar a alguém que se vai, mesmo que este alguém tenha a dimensão gigantesca de um Paulo Autran. Tanto se falou sobre ele nestes dias, de sua colossal importância ao teatro brasileiro e de sua insubstituível presença nos palcos, que qualquer depoimento extra pode soar redudante. Mas há uma história, pequena na verdade, que eu gostaria de deixar registrada aqui, como prova da imensa generosidade deste ator que se recolheu naquela coxia misteriosa que um dia irá nos receber a todos.

Um dia, encontro Paulo Autran no saguão de um teatro - e qual seria o lugar mais provável para encontrá-lo? Ele veio me perguntar o que eu andava fazendo. Respondi que estava escrevendo para jornais e revistas. Ele disse que isso não tinha a menor importância para ele. "Eu quero saber de teatro. O que você anda escrevendo para o teatro, isso sim me interessa. O resto eu não ligo". Eu disse que tinha algumas coisas inéditas em casa, algumas peças, pequenas cenas, algumas idéias... "Imprima tudo e mande para mim. Eu quero ler".

Obedeci, é claro. Imprimi três peças, coloquei-as num envelope branco e deixei na portaria do prédio em que ele morava, numa rua dos Jardins. Duas ou três semanas depois, encontro um recado na secretária eletrônica. "Oi, Sérgio. Aqui é o Paulo. Liga para mim, preciso falar com você". Paulo Autran, ator consagrado, um dos poucos brasileiros acima do bem e do mal em seu ofício, isento de qualquer obrigação profissional com quem quer que fosse, havia lido minhas três peças e queria conversar sobre cada uma delas. Era uma sexta-feira à tarde e ficamos um bom tempo no telefone. Ele havia lido O Encontro das Águas, O Funil do Brasil e A Vida que eu Pedi, Adeus, estas duas últimas ainda inéditas. Falou com carinho sobre cada uma delas, elogiou o que considerava seus pontos altos, criticou o que julgava falho e me incentivou a continuar escrevendo.

Num desses rompantes de coragem que a gente tem algumas vezes na vida, eu disse que dali a dois dias, no domingo, os atores José Roberto Jardim e Pedro Henrique Moutinho iriam ler a peça num teatro, para tentar conseguir uma pauta. "Quem vai dirigir esta leitura?", ele perguntou. Eu disse que não havia pensado nisso ainda. "É uma peça cheia de pausas e silêncios. Estes atores precisam ser bem dirigidos", completou. Respirei fundo, tomei coragem e fiz o convite. Você não gostaria de dirigi-los, Paulo? Então ele me perguntou: quando mesmo será a leitura? Eu respondi que no domingo. "Então temos apenas um dia para ensaiar. Quero vocês amanhã aqui em casa, às três da tarde. Temos de caprichar, o tempo é curto".

Às três em ponto do sábado estávamos lá, tocando a campainha de seu apartamento, com o texto impresso nas mãos. Sem muitas cerimônias, Paulo Autran nos conduziu até uma grande mesa de madeira, em sua sala de jantar. Pediu um cigarro para o Pedro Moutinho e então começou a pilotar os meninos. Como eles, eu também não acreditava no que estava acontecendo ali. Com paciência e um carinho indescritível, Paulo Autran ia mostrando aos atores a melhor maneira de pronunciar cada palavra, a pontuação mais precisa, a respiração mais exata, o tom mais confiável, a emoção mais apropriada. Disse a eles que, ao contrário do que os jogadores de futebol fazem com a bola, o ator não podia ter pressa em passar a palavra adiante. Cada palavra tinha de sair no seu tempo exato, acariciando a garganta do ator, pois só assim ela acariciaria o ouvido do público - se fosse o caso de acarinhar.

Passamos três horas na companhia de Paulo Autran. Em vários momentos, eu senti vontade de chorar. Ainda que O Encontro das Águas jamais viesse a ser encenada, ainda que nenhuma outra peça minha chegasse aos palcos, aquela tarde já seria, por si só, suficiente para dar sentido à minha breve carreira de autor. Quando saímos de lá, atordoados com o grau de entendimento de texto e a compreensão teatral de Paulo Autran, o Zé Roberto Jardim disse que naquela tarde ele havia aprendido tanto ou mais do que nos três anos que passara na Escola de Arte Dramática. Pedro Moutinho, o sacana mais adorável que eu conheço, completou com a seguinte frase: "Não sei o que eu ainda tenho pela frente, mas, não importa o que eu venha a fazer, esta tarde vai abrir a minha biografia".

Quando cheguei em casa, Paulo Autran ligou. "Esqueci da última recomendação. Caso vocês consigam a pauta no teatro, não quero que digam que eu ajudei na direção da leitura. O mérito é todo de vocês, vocês vão chegar lá sozinhos".

Conseguimos a pauta e Paulo Autran foi à estréia. Chegou sozinho, de táxi, dizendo que não perderia aquilo por nada. Esperou para cumprimentar os atores, elogiou muito a direção do Alberto Guzik, posou para as fotos e, antes de ir embora, chamou a gente num canto para dizer que ficava sempre muito feliz quando via um trabalho que o agradava. "Eu tenho a impressão de que o teatro vai ficar em boas mãos".

Tomara, grande mestre e amigo querido. Tomara mesmo.

quarta-feira, outubro 10, 2007

O menino


De repente esse menino começou a falar umas coisas esquisitas. Outro dia mesmo, na hora da janta, a gente com a cara quase enfiada no prato de sopa de feijão que a mãe dele tinha feito, ele deixou a fatia de pão de lado pra dizer, assim do nada, que era importante que cada um de nós tivesse um ideal nesta vida. Eu fiz de conta que não ouvi e continuei comendo, a mãe dele olhou pra mim, com a colher de sopa a um palmo da boca, e também não falou nada. Na hora de dormir, eu perguntei pra ela que história era aquela de ideal. Ela jurou que não sabia de nada, que nunca tinha ensinado o moleque a falar daquele jeito. Você tá de prova, ela continuou. Quando foi que a gente falou de ideal aqui dentro, quando? Na certa, eram as más companhias. Ele já tá meio crescido, ela falou, pára pouco em casa, sai por aí com um monte de moleque que a gente nem sabe direito de onde vem, na certa é com eles que o menino estava aprendendo essas coisas. Eu juro por nossa senhora, disse ela, que eu nunca ensinei essas coisas de ideal pro menino. Se ele anda aprendendo isso, é fora de casa.

Discussão na cama dura pouco. Quando a gente deita, é pra dormir mesmo. Teve época que a gente fazia umas outras coisas, mas agora isso diminuiu também. Eu continuo gostando, eu sei que ela gosta também. Mas nos últimos tempos ela deu de pedir pra gente fazer depressa, porque senão no outro dia ela fica muito cansada na hora de levantar. Depois que tiraram o ponto de ônibus daqui da frente, a gente precisa levantar meia hora mais cedo pra pegar a condução. E meia hora é muito pra quem já dorme tão pouco. Então, naquela noite, a gente nem falou do menino e nem fez aquilo que deixou de fazer faz tempo. Mas que aquela palavra não me saía da cabeça, ah, isso não saía mesmo. Ideal. Onde o menino anda aprendendo essas coisas?

No outro dia, eu chamei ele no canto. Você já tá ficando grande, menino. Logo vai ter de ajudar na casa. O que você acha que vai fazer da vida? Eu ainda não sei, falou o menino. Mas tem de saber, na sua idade eu nem só sabia, como já fazia, eu falei. Eu sei, ele respondeu, mas é que eu gostaria de fazer alguma coisa que me desse prazer. Eu quase perdi a cabeça. Você não responde desse jeito pro seu pai, eu falei. Você tá bem crescido mas ainda pode levar uma coça. Quem anda falando essas coisas pra você, me fala agora que eu vou lá tirar satisfação, eu falei. Ninguém anda me ensinando nada, pai. Como não anda? Claro que anda. Ontem você falou de ideal, agora você vem me falar de prazer. Na sua idade, se eu falasse umas coisas dessas pro meu pai, eu levava um tapa na boca que ia ficar três dias sem comer. Mas o que é que tem demais, o menino perguntou. Eu vou te ensinar o que é que tem demais, repete isso que eu te ensino, falei por último e mandei o menino direto pro quarto. Depois eu fui junto, eu e a mãe dele, porque é um quarto só na casa.

Naquela noite eu tive um pesadelo. Sonhei que caía uma chuva braba, dessas que alagam o bairro inteiro. E era cada trovão, mas cada trovão. Só que o trovão não fazia barulho de trovão, a cada vez que o céu ficava branco, o que eu ouvia vindo lá de cima, em vez do trum, trum, era ideal, prazer... Parecia que as nuvens ficavam gritando na minha cabeça, com voz de macho doente: ideal, trummmm, prazer, trummmmm. Acordei ensopado. Olhei pro lado e o menino já tinha levantado. Agora esse menino deu de me atormentar até de madrugada, eu ralhei. Fui pra cozinha e a mãe dele já tava coando o café. Cadê o seu filho, eu perguntei. Ele já foi. Ele disse que nem conseguiu dormir direito, de tanto que você roncava, se mexia e falava alto de noite, ela disse. Culpa dele, tudo culpa dele. Ele foi pra aonde, eu perguntei. Ele foi andar por aí, sem rumo. Ele tomou um gole de café e disse que ia andar, porque hoje.... ela parou no meio da fala. Por que hoje o quê, mulher? Você anda escondendo coisa de mim, eu gritei. Porque hoje ele me falou que tinha acordado feliz, ela falou. Feliz? Feliz aqui? Nesta casa? Eu não tô dizendo. Esse menino vai acabar dando trabalho pra gente. Escuta o que eu digo.

domingo, outubro 07, 2007

Falou alguma coisa? Hein? O quê? Talvez eu...Não sei...

Sempre evitei falar de teatro neste espaço por acreditar que talvez eu esteja envolvido demais neste meio, o que poderia, se não comprometer, no mínimo afetar a minha imparcialidade. Falar de teatro, aqui, seria o equivalente, em muitos casos, a falar de amigos ou no mínimo de pessoas conhecidas, o que, convenhamos, nunca é muito confortável e ainda menos prudente. Se eu fizesse elogios, poderia pairar sempre a idéia de algum nepotismo ou favorecimento no ar; se fizesse críticas, algumas vozes iriam se erguer para dizer que é tudo despeito. Então, prefiro passar longe do tema, embora a vontade de recorrer a ele sempre tenha sido muito grande.

Resolvi abrir uma exceção hoje porque, nos últimos tempos, tenho percebido o entusiasmo com que vem sendo saudado um tipo de dramaturgia que começou a proliferar nos nossos palcos. É um estilo de texto, a meu ver, não apenas vazio e entediante, mas acima de tudo frágil em relação a uma das principais regras do bom diálogo - aquela que ensina um personagem a não dizer aquilo que o outro já sabe. Pois bem, este novo estilo de texto parece querer sempre tratar como estranhos dois personagens que convivem há anos sob o mesmo teto. Está em cartaz em São Paulo, neste momento, uma montagem cool e luxuosa que leva este tipo de recurso à exaustão. É algo mais ou menos assim. Imaginemos um diálogo entre marido e mulher. Vou tentar imitar:

MARIDO: Nosso carro...
MULHER: Sim?
MARIDO: É vermelho.
MULHER: Sim, vermelho.
MARIDO: Nosso carro é vermelho.
MULHER: Vermelho
MARIDO: Havia outras cores
MULHER: Sim, outras cores
MARIDO: Mas nós compramos vermelho
MULHER: Sim, nós compramos um carro vermelho
MARIDO: Embora as outras cores...
MULHER: O vermelho, nós compramos vermelho
MARIDO: Sim, nosso carro é vermelho
MULHER: Nós compramos juntos
MARIDO: Nós compramos juntos um carro vermelho
MULHER: Você sabe, nós sempre gostamos de vermelho
MARIDO: Havia tantas outras cores
MULHER: Mas, você sabe, o carro que nós compramos é vermelho
MARIDO: Vermelho...
Silêncio
MULHER: Oi?
MARIDO: O quê?
MULHER: Você disse alguma coisa?
MARIDO: Eu...bem, eu...
MULHER: Sim?
MARIDO: Eu estava me referindo ao nosso carro
MULHER: Ah, sim, o nosso carro vermelho
MARIDO: Isso, a ele. Nós compramos um carro vermelho....
MULHER: Talvez nós devêssemos....
Silêncio.
MULHER: Talvez nós devêssemos...
MARIDO: Sim?
MULHER: Não, melhor não.
MARIDO: É, talvez seja melhor não.
MULHER: Eu preciso ir
MARIDO: Como?
MULHER: Eu disse que talvez eu precise ir...
MARIDO: Ir? Ah, é claro, ir...Você sempre costuma ir, não costuma?
MULHER: Sim...
MARIDO: Agora?
MULHER: Melhor sim... Você sabe, eu preciso ir...
MARIDO: Ok
MULHER (indecisa, olhando a porta): Bem, talvez eu...
MARIDO: Sim?
MULHER: É, você sabe, eu preciso ir...

Vai embora de uma vez e deixe a gente em paz, pelo amor de Deus. Não acho que o teatro tenha a obrigação de reproduzir a nossa fala cotidiana - uma de suas grandes dificuldades, aliás, é a de retratar com um mínimo de verossimilhança justamente a nossa incapacidade de comunicação. Mas, a continuar assim, em pouco tempo sairemos de casa para ver no palco algo como Mim Tarzan, You Jane. O mais engraçado é que, sobre esta peça que está em cartaz na cidade, há algo de bom nela: há tantas repetições que nos sobra tempo de contar quantas pessoas estão bocejando, quantas já caíram no sono, quantos estão olhando no relógio, quantas estão ligando o celular dentro das bolsas para ver se do lado de fora do teatro está chegando algo mais interessante do que aquilo que vem do palco. Depois, quando o espetáculo termina, todo mundo aplaude de pé, calorosamente. E sai falando sobre a tal da musicalidade do texto, das repetições precisas, da entrega dos atores a um diálogo tão seco e, como diria matreiro o meu amigo Ivam Cabral, do mergulho na verticalidade proposto pelo autor e cumprido com perfeição pelo elenco. Vixi Maria.

Há um livro chamado O Náufrago, do genial Thomas Bernhard, lançado pela Companhia das Letras. Ali eu aprendi, com admiração incondicional, como se dá a repetição de idéias, palavras e pensamentos no sentido de tratar o texto como se este fosse uma partitura musical. Praticamente toda a história de O Náufrago é contada durante os poucos minutos em que um personagem espera para ser atendido numa pousada européia. O Náufrago nos ensina, acima de tudo, a distinguir o abismo que existe entre uma verdadeira sinfonia e um disco furado. Infelizmente, todos os aplausos nos últimos tempos têm sido para os discos furados.

terça-feira, outubro 02, 2007

Um dedinho de prosa

Não sei se é impressão minha, mas acredito que as pessoas do interior, como eu, adoram dar explicações que vão muito além do necessário, ou do esperado. Na maioria das vezes, um sim, um não ou um muito obrigado já seriam suficientes para responder a quase todas as questões que nos apresentam. Mas nós, eternamente caipiras, nunca nos contentamos só com isso. Nenhuma dúvida parece estar suficientemente esclarecida até que revelemos parte de nossa intimidade ao mais completo estranho. Vejo isso em minha mãe. Se uma visita, por exemplo, elogiar o pedaço de bolo ou torta que ela oferecer, minha mãe jamais irá se satisfazer com um muito obrigado. Ela, seguramente, sairá com esta resposta: "Imagine, tão fácil de fazer. Olha só: vão três ovos, um copo de leite morno, a mesma medida de leite condensado, duas colheres de manteiga..." Pronto, o visitante, feliz ou não, irá embora levando de presente uma receita na cabeça.

Se você resolver elogiar a roupa de alguém do interior, é quase certo que também sairá da conversa com um guia de compras cheio de ótimas dicas. Tenho uma prima que é assim. Se alguém disser, "nossa, que blusa bonita", ela vai responder "ah, paguei só 35 reais naquela loja que fica perto do correio, sabe? Na verdade, custava 40 reais, mas como era a última peça deste número, a moça fez um desconto, até porque ficou um pouco justa e, está vendo este botãozinho aqui, então, ele veio meio solto e eu tive de dar um pontinho quando cheguei em casa. Mas olha, pra ficar em casa, está bom demais, não está?"

Eu não sei se rio ou choro diante destas situações, pois me pego fazendo a mesma coisa quase todos os dias. Quando eu tomo um táxi e o motorista me pergunta para onde eu quero ir, além de dar o endereço eu digo o que estou indo fazer lá, por que não fui de metrô, se é dia do meu rodízio, se estou a trabalho ou a passeio e, se não chegarmos logo, sou capaz de dizer qual o saldo da minha conta bancária. Outro dia estava tomando chope com um amigo do interior de Minas, bonitão, jovem e ator descolado. No fundo, tão bocó quanto eu. Quando o garçom perguntou se ele queria o terceiro chope, em vez de responder não, muito obrigado, ele saiu com exatamente isso: "Não vou querer, não. É que, saindo daqui, eu vou na casa de uma amiga que mora aqui perto e acho que lá só tem vinho, porque ela está de regime. E eu não quero misturar, porque amanhã é domingo e eu trabalho mais cedo". O garçom olhou para a cara dele, virou as costas e foi embora, equilibrando um copo de chope na bandeja e, provavelmente, sem dar a mínima bola para as combinações etílicas ou os compromissos dominicais do meu amigo.

Não sei se foram todas as cadeiras na calçada da nossa infância, todos os portões e janelas abertos, toda falta de cerimônia na hora de entrar na casa dos vizinhos, todas as brigas ouvidas através das paredes das casas geminadas, todas as rodinhas que se formavam na frente de qualquer boteco, todas as novenas, todas as procissões, todos os recados que levamos e trouxemos numa época em que telefone era coisa de rico, todas as festinhas em que entrava qualquer um, todas as quermesses em que dedicávamos músicas de amor nos alto-falantes, todas as festas juninas no terreno baldio, todo jogo de bola nas ruas sem carro, tudo isso e nossa eterna aversão interiorana ao isolamento nos deixaram assim: loucos para falar muito mais do que a prudência nos recomenda. Mas existe uma questão que para mim continua sem resposta: falamos tanto por sentir orgulho real dos nossos atos ou por que, na falta de atributo melhor, jogamos todas as fichas na nossa sincera ingenuidade?

Só existe uma coisa que nós, do interior, gostamos mais do que falar: é exibir as cicatrizes das nossas cirurgias e contar quantos pontos levamos... Mas isto é assunto para outro dia. Estou começando a desconfiar que por hoje já falei demais.