domingo, outubro 07, 2007

Falou alguma coisa? Hein? O quê? Talvez eu...Não sei...

Sempre evitei falar de teatro neste espaço por acreditar que talvez eu esteja envolvido demais neste meio, o que poderia, se não comprometer, no mínimo afetar a minha imparcialidade. Falar de teatro, aqui, seria o equivalente, em muitos casos, a falar de amigos ou no mínimo de pessoas conhecidas, o que, convenhamos, nunca é muito confortável e ainda menos prudente. Se eu fizesse elogios, poderia pairar sempre a idéia de algum nepotismo ou favorecimento no ar; se fizesse críticas, algumas vozes iriam se erguer para dizer que é tudo despeito. Então, prefiro passar longe do tema, embora a vontade de recorrer a ele sempre tenha sido muito grande.

Resolvi abrir uma exceção hoje porque, nos últimos tempos, tenho percebido o entusiasmo com que vem sendo saudado um tipo de dramaturgia que começou a proliferar nos nossos palcos. É um estilo de texto, a meu ver, não apenas vazio e entediante, mas acima de tudo frágil em relação a uma das principais regras do bom diálogo - aquela que ensina um personagem a não dizer aquilo que o outro já sabe. Pois bem, este novo estilo de texto parece querer sempre tratar como estranhos dois personagens que convivem há anos sob o mesmo teto. Está em cartaz em São Paulo, neste momento, uma montagem cool e luxuosa que leva este tipo de recurso à exaustão. É algo mais ou menos assim. Imaginemos um diálogo entre marido e mulher. Vou tentar imitar:

MARIDO: Nosso carro...
MULHER: Sim?
MARIDO: É vermelho.
MULHER: Sim, vermelho.
MARIDO: Nosso carro é vermelho.
MULHER: Vermelho
MARIDO: Havia outras cores
MULHER: Sim, outras cores
MARIDO: Mas nós compramos vermelho
MULHER: Sim, nós compramos um carro vermelho
MARIDO: Embora as outras cores...
MULHER: O vermelho, nós compramos vermelho
MARIDO: Sim, nosso carro é vermelho
MULHER: Nós compramos juntos
MARIDO: Nós compramos juntos um carro vermelho
MULHER: Você sabe, nós sempre gostamos de vermelho
MARIDO: Havia tantas outras cores
MULHER: Mas, você sabe, o carro que nós compramos é vermelho
MARIDO: Vermelho...
Silêncio
MULHER: Oi?
MARIDO: O quê?
MULHER: Você disse alguma coisa?
MARIDO: Eu...bem, eu...
MULHER: Sim?
MARIDO: Eu estava me referindo ao nosso carro
MULHER: Ah, sim, o nosso carro vermelho
MARIDO: Isso, a ele. Nós compramos um carro vermelho....
MULHER: Talvez nós devêssemos....
Silêncio.
MULHER: Talvez nós devêssemos...
MARIDO: Sim?
MULHER: Não, melhor não.
MARIDO: É, talvez seja melhor não.
MULHER: Eu preciso ir
MARIDO: Como?
MULHER: Eu disse que talvez eu precise ir...
MARIDO: Ir? Ah, é claro, ir...Você sempre costuma ir, não costuma?
MULHER: Sim...
MARIDO: Agora?
MULHER: Melhor sim... Você sabe, eu preciso ir...
MARIDO: Ok
MULHER (indecisa, olhando a porta): Bem, talvez eu...
MARIDO: Sim?
MULHER: É, você sabe, eu preciso ir...

Vai embora de uma vez e deixe a gente em paz, pelo amor de Deus. Não acho que o teatro tenha a obrigação de reproduzir a nossa fala cotidiana - uma de suas grandes dificuldades, aliás, é a de retratar com um mínimo de verossimilhança justamente a nossa incapacidade de comunicação. Mas, a continuar assim, em pouco tempo sairemos de casa para ver no palco algo como Mim Tarzan, You Jane. O mais engraçado é que, sobre esta peça que está em cartaz na cidade, há algo de bom nela: há tantas repetições que nos sobra tempo de contar quantas pessoas estão bocejando, quantas já caíram no sono, quantos estão olhando no relógio, quantas estão ligando o celular dentro das bolsas para ver se do lado de fora do teatro está chegando algo mais interessante do que aquilo que vem do palco. Depois, quando o espetáculo termina, todo mundo aplaude de pé, calorosamente. E sai falando sobre a tal da musicalidade do texto, das repetições precisas, da entrega dos atores a um diálogo tão seco e, como diria matreiro o meu amigo Ivam Cabral, do mergulho na verticalidade proposto pelo autor e cumprido com perfeição pelo elenco. Vixi Maria.

Há um livro chamado O Náufrago, do genial Thomas Bernhard, lançado pela Companhia das Letras. Ali eu aprendi, com admiração incondicional, como se dá a repetição de idéias, palavras e pensamentos no sentido de tratar o texto como se este fosse uma partitura musical. Praticamente toda a história de O Náufrago é contada durante os poucos minutos em que um personagem espera para ser atendido numa pousada européia. O Náufrago nos ensina, acima de tudo, a distinguir o abismo que existe entre uma verdadeira sinfonia e um disco furado. Infelizmente, todos os aplausos nos últimos tempos têm sido para os discos furados.

12 comentários:

Viralata disse...

hahuahuauaua!!!! vermelho e kosher! ahahuhahuahua!!!!! fale mais de teatro, please Serginho e mergulhe na verticalidade... kkkkkk
bj, adorei

Unknown disse...

Muito bom,querido.Áfe,algém teve coragem pra dizer isso.Coragem eu até tinha,mas não a sua autoridade.Fale sempre de teatro,e muito!Beijos!

Anônimo disse...

sergio do céu. muitas coisas a dizer. primeiro, que você precisa falar mais de teatro. depois, que você escreveu um lindo texto, este "vermelho", que eu pensei, inclusive, em encenar no nosso "show de boate". que tal? achei os diálogos profundos, contundentes e extremamente precisos. isso na mão de bons atores resultaria numa experiência pós-dramática. se você permitir, "vermelho" estréia nas satyrianas deste ano. hehehe.

Barbara disse...

Ai, Massa, eu tbém não agüento esse tipo de texto no teatro, no cinema,na vida!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Serginho, demais o texto. Você consegue expressar em palavras aquilo que eu só consigo mostrar com esse meu velho e torto corpo. Quando vamos trabalhar juntos? um beijo

Anônimo disse...

Eu não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais revanche. Gostei, cara. Você toparia fazer uma letra de música para o meu próximo disco? Deverá se chamar "O Segredo de Boris (Casoy)"

Anônimo disse...

Parapatipiraparapitirapirapatata. Grande mestre, abraço do Bosco

Rafinha! disse...

É realmente aquele diálogo monótono do dia a dia quando não temos nada a dizer (e com o tudo, nada dizemos), mas não conseguimos apreciar o silêncio.

Agora, a mocinha lá em cima, fala bonito, não? rs!

Só no blog disse...

Fala, Rafa, tudo certinho por aí? Bom, desde que a gente não comece a falar assim, tá tudo bem, né? Já imaginou como seria chato?

Anônimo disse...

É isso aí, Sérgio, tem coisa que não é nada, não é nada... e não é nada mesmo!
bjs,
Clara.

Anônimo disse...

É, acho quem quem começou com essa história foi o insuportável do Harold Pinter.