Fiquei em dúvida entre escrever ou não alguma coisa sobre Paulo Autran. Eu sempre tive medo desta linha fina, muito fina, que separa a homenagem do oportunismo. Nestas horas, continuo achando que o silêncio, o respeito e a saudade sincera são os maiores tributos que podemos prestar a alguém que se vai, mesmo que este alguém tenha a dimensão gigantesca de um Paulo Autran. Tanto se falou sobre ele nestes dias, de sua colossal importância ao teatro brasileiro e de sua insubstituível presença nos palcos, que qualquer depoimento extra pode soar redudante. Mas há uma história, pequena na verdade, que eu gostaria de deixar registrada aqui, como prova da imensa generosidade deste ator que se recolheu naquela coxia misteriosa que um dia irá nos receber a todos.
Um dia, encontro Paulo Autran no saguão de um teatro - e qual seria o lugar mais provável para encontrá-lo? Ele veio me perguntar o que eu andava fazendo. Respondi que estava escrevendo para jornais e revistas. Ele disse que isso não tinha a menor importância para ele. "Eu quero saber de teatro. O que você anda escrevendo para o teatro, isso sim me interessa. O resto eu não ligo". Eu disse que tinha algumas coisas inéditas em casa, algumas peças, pequenas cenas, algumas idéias... "Imprima tudo e mande para mim. Eu quero ler".
Obedeci, é claro. Imprimi três peças, coloquei-as num envelope branco e deixei na portaria do prédio em que ele morava, numa rua dos Jardins. Duas ou três semanas depois, encontro um recado na secretária eletrônica. "Oi, Sérgio. Aqui é o Paulo. Liga para mim, preciso falar com você". Paulo Autran, ator consagrado, um dos poucos brasileiros acima do bem e do mal em seu ofício, isento de qualquer obrigação profissional com quem quer que fosse, havia lido minhas três peças e queria conversar sobre cada uma delas. Era uma sexta-feira à tarde e ficamos um bom tempo no telefone. Ele havia lido O Encontro das Águas, O Funil do Brasil e A Vida que eu Pedi, Adeus, estas duas últimas ainda inéditas. Falou com carinho sobre cada uma delas, elogiou o que considerava seus pontos altos, criticou o que julgava falho e me incentivou a continuar escrevendo.
Num desses rompantes de coragem que a gente tem algumas vezes na vida, eu disse que dali a dois dias, no domingo, os atores José Roberto Jardim e Pedro Henrique Moutinho iriam ler a peça num teatro, para tentar conseguir uma pauta. "Quem vai dirigir esta leitura?", ele perguntou. Eu disse que não havia pensado nisso ainda. "É uma peça cheia de pausas e silêncios. Estes atores precisam ser bem dirigidos", completou. Respirei fundo, tomei coragem e fiz o convite. Você não gostaria de dirigi-los, Paulo? Então ele me perguntou: quando mesmo será a leitura? Eu respondi que no domingo. "Então temos apenas um dia para ensaiar. Quero vocês amanhã aqui em casa, às três da tarde. Temos de caprichar, o tempo é curto".
Às três em ponto do sábado estávamos lá, tocando a campainha de seu apartamento, com o texto impresso nas mãos. Sem muitas cerimônias, Paulo Autran nos conduziu até uma grande mesa de madeira, em sua sala de jantar. Pediu um cigarro para o Pedro Moutinho e então começou a pilotar os meninos. Como eles, eu também não acreditava no que estava acontecendo ali. Com paciência e um carinho indescritível, Paulo Autran ia mostrando aos atores a melhor maneira de pronunciar cada palavra, a pontuação mais precisa, a respiração mais exata, o tom mais confiável, a emoção mais apropriada. Disse a eles que, ao contrário do que os jogadores de futebol fazem com a bola, o ator não podia ter pressa em passar a palavra adiante. Cada palavra tinha de sair no seu tempo exato, acariciando a garganta do ator, pois só assim ela acariciaria o ouvido do público - se fosse o caso de acarinhar.
Passamos três horas na companhia de Paulo Autran. Em vários momentos, eu senti vontade de chorar. Ainda que O Encontro das Águas jamais viesse a ser encenada, ainda que nenhuma outra peça minha chegasse aos palcos, aquela tarde já seria, por si só, suficiente para dar sentido à minha breve carreira de autor. Quando saímos de lá, atordoados com o grau de entendimento de texto e a compreensão teatral de Paulo Autran, o Zé Roberto Jardim disse que naquela tarde ele havia aprendido tanto ou mais do que nos três anos que passara na Escola de Arte Dramática. Pedro Moutinho, o sacana mais adorável que eu conheço, completou com a seguinte frase: "Não sei o que eu ainda tenho pela frente, mas, não importa o que eu venha a fazer, esta tarde vai abrir a minha biografia".
Quando cheguei em casa, Paulo Autran ligou. "Esqueci da última recomendação. Caso vocês consigam a pauta no teatro, não quero que digam que eu ajudei na direção da leitura. O mérito é todo de vocês, vocês vão chegar lá sozinhos".
Conseguimos a pauta e Paulo Autran foi à estréia. Chegou sozinho, de táxi, dizendo que não perderia aquilo por nada. Esperou para cumprimentar os atores, elogiou muito a direção do Alberto Guzik, posou para as fotos e, antes de ir embora, chamou a gente num canto para dizer que ficava sempre muito feliz quando via um trabalho que o agradava. "Eu tenho a impressão de que o teatro vai ficar em boas mãos".
Tomara, grande mestre e amigo querido. Tomara mesmo.
segunda-feira, outubro 15, 2007
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Um comentário:
Olá, Sérgio Roveri. Que pena ter perdido mais da metade de Encontro das Águas. Acidentalmente, em plena meia-noite de hoje (ou melhor, agora ontem) coloquei no canal SESC-TV e assisti ao final da peça, talvez uma filmagem mais recente, com os atores ao lado de um rio, algo semelhante a uma usina. Adorei a temática, a forma como é contada, a interpretação dos atores (que já não são os mesmos citados acima, se não me engano), e vim à net procurar mais sobre a peça, quem sabe encontrá-la em texto ou mesmo vídeo, e assim encontrei seu blog.
Vim aqui apenas parabenizá-lo, e dizer que gostaria de assistir novamente, ou ao menos ler do início ao fim :)
Boa noite e bons trabalhos!
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