segunda-feira, janeiro 25, 2010

Quando eu morrer, me enterrem na Lapinha...

A capa deste mês da revista Super Interessante traz uma manchete de um otimismo assustador. Aplicado na foto de um garoto, surge o título “Ele Pode ser Imortal”. Embaixo, a explicação: em 50 anos é possível que ninguém mais morra de velhice. A ciência está preparando um arsenal de drogas e tecnologia que permitem manter você vivo para sempre. E com o corpo que sempre quis.

Eu teria ficado bem menos preocupado se a manchete da revista fosse: Confirmado o Fim do Mundo para 2012. Não consigo imaginar uma civilização capaz de extinguir a idéia da morte – ou sua existência, como propõe a revista. Este tipo de previsão só não me deixa mais alarmado porque eu tenho certeza de que, se tudo der certo, em 50 anos eu já estarei morto, enterrado e esquecido. E digo isso com muita alegria e um alívio maior ainda. Eu creio que só existe uma coisa pior do que a morte: é não morrer. Por mais otimista que eu esteja, e mesmo naqueles dias de alegria intensa e absoluta, me anima a ideia de que um dia as coisas vão terminar para mim e que a gente vai poder ir embora, sabe-se lá para onde. É sério.

Falo isso sem qualquer traço de morbidez ou depressão: tenho certeza de que um dia vai ser muito bom levantar acampamento deste planeta, mesmo sem saber se existe alguma coisa do lado de lá. Eu não gostaria que a ciência nos transformasse numa legião de Nosferatu: gente vivendo até os 200 anos de idade só para dizer que agora tudo é uma bosta e que bom mesmo era no tempo da juventude. Porque é isso que iremos fazer, tenho certeza. Reclamaremos destes anos extras como almas ranzinzas aprisionadas em corpos plastificados. Não sei como será o ser humano sem a ideia da finitude. Penso que continuaremos a morrer de acidentes aéreos, de desastres naturais, vítimas da violência urbana e outras dezenas de causas que seguramente surgirão. E tenho certeza, também, de que nos mataremos muito mais: aposto que, aos 120 anos, por exemplo, não agüentaremos uma nova desilusão amorosa e vamos nos atirar do primeiro prédio que encontrarmos com as janelas abertas. Porque eu acho que não fomos programados para tanta vida. Sei que odiamos a ideia da morte, da nossa e a dos nossos entes queridos. Mas odiaremos muito mais a ideia de que viveremos para sempre ao lado dos nossos entes a quem o tempo se encarregará de tornar menos queridos a cada década: a imortalidade é uma prisão que nós não merecemos.

E isso sem falar no planeta, que não aguentará este excesso de população imorredoura, e nos planos sociais de todos os governos do mundo, ensandecidos com a perspectiva de que nos aposentaremos aos 70 anos e receberemos o nosso benefício até os 350 anos, mais ou menos...Não haverá comida para tanta gente, nem habitação, nem serviços sociais e muito menos afeto: já que não vamos morrer mesmo, danem-se a culpa e a civilidade. Vou fazer o que eu quero, do jeito que eu quero e te dizer o que eu quero, na lata. E se você virar a cara para mim, tudo bem: daqui a uns 80 anos eu te procuro e, se Deus quiser (putz, como imortais, não acreditaremos mais nele!), você vai ter se esquecido da ofensa e seremos amigos novamente, andaremos de ônibus sem pagar passagem, seremos atendidos na fila preferencial do banco e do cinema e gastaremos com bebida e droga o que antes gastávamos com fraldas geriátricas.

Não sabemos de onde viemos, para onde vamos e nem o que estamos fazendo aqui. E agora vem a ciência disposta a acabar com a única certeza que a gente tem nesta vida: a de que vamos morrer.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Vinde a mim a imprensinha

A gente vive dizendo que não tem mais idade para fazer determinadas coisas. Felizmente, na maioria das vezes não passa de força de expressão. A gente diz que não faz, mas dali a pouquinho está fazendo. O que talvez seja bom, por demonstrar que a idade, no fundo, não é empecilho para algumas das nossas ações. Eu digo – e nestes casos levo a sério – que não tenho mais idade para apenas duas coisas: usar drogas e pegar fila em casa noturna. Nem idade e nem paciência. A experiência e os anos me ensinaram que no dia seguinte a gente costuma se arrepender das duas coisas – então as evito com imenso prazer.

Hoje, ao ler os jornais, descobri uma terceira coisa para qual eu não tenho – ou não teria – mais idade. Se eu trabalhasse em alguma redação de jornal e o editor me mandasse correr atrás do modelo Jesus Luz na São Paulo Fashion Week, é muito provável que eu, ainda que estivesse atolado em dívidas, chamasse o editor num canto para perguntar o que eu tinha feito para merecer tamanho mico profissional. Com todo respeito aos meus colegas que cobrem moda, eu já acho um castigo passar uma semana no pavilhão da Bienal tentando encontrar alguma qualidade e ousadia naquelas roupinhas mequetrefes que eles chamam de tendência. Confesso que não entendo de moda e, ainda que tivesse dinheiro para torrar nas vitrines, não compraria nada do que eu vejo nestes desfiles. Mais do que apontar caminhos, eu sempre acho que estes desfiles funcionam apenas para o galã da novela das oito exibir seus músculos diante de moçoilas e bibinhas embasbacadas com tudo – menos com as roupas.

Mas até aí, tudo bem. Todo trabalho é honesto e merece respeito. Agora, ter de correr atrás do Jesus Luz pra cima e pra baixo, como se a celebridade fosse ele e não a cantora que ele namora, é dar atestado de que nossa imprensa é uma das mais caipiras do mundo. No fundo, eu admiro o Jesus Luz, justamente porque ele não dá declaração alguma. Os jornalistas correm atrás dele e ele corre dos jornalistas, pois deve saber que não tem muito mesmo o que dizer. Dizem que como DJ ele é bem fraquinho e, como modelo, não parece ser muito melhor. Seu grande feito – e ele deve ter isso muito claro – é dividir o colchão com a cantora mais famosa do planeta. Sendo assim, falar sobre o quê? Eu acho que ele tem de continuar fugindo mesmo e rindo muito de quem corre atrás dele.

O que me deixa mais intrigado é que, ao ler os textos dos coleguinhas que passaram um dia todo na cola do Jesus, a gente percebe que houve um grande prazer nesta tarefa. É como se todos eles encontrassem uma certa nobreza e muito frisson em seguir os passos do moço. Quando eu era repórter, passei dias e noites correndo atrás de gente como o Michael Jackson, a Madonna, o Mick Jagger e o Bono durante suas turnês por São Paulo. E confesso que fazia isso com o maior prazer do mundo, porque se tratava de gente talentosa, carismática e, apreciem ou não, detentora de uma obra na maioria das vezes genial. Correr atrás do Jesus Luz, agora, só demonstra que a gente anda muito mal de ídolos e de celebridades, ainda que instantâneas. Quando eu estudava catecismo, os padres viviam falando que Jesus voltaria no começo do século 21. Nossa imprensa acreditou nisso.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Os três porquinhos

CONSIDERAÇÃO UM: Nos dois meios que frequento com mais assiduidade, o jornalismo e o teatro, nunca conheci ninguém que tivesse conseguido emprego por meio de favores sexuais. É sério. Fofocas sempre houve, mas eu nunca soube de ninguém, comprovadamente, que tenha obtido trabalho nas redações ou papel em alguma peça por ter dormido com um editor ou um diretor. No ano passado, dei uma palestra para jovens atores em uma cidade do interior. No meio de tantas perguntas sobre vocação e talento, alguém levantou o braço para saber se no teatro rolava mesmo o teste do sofá. Risos na plateia. Respondi na palestra o mesmo que escrevi nas duas linhas iniciais deste texto: se há, eu desconheço. É provável que haja, porque tanta lenda sobre este tema talvez tenha algum fundo de verdade. Mas, como eu nunca vi, nunca fiz e não conheço ninguém que efetivamente tenha feito, prefiro continuar acreditando no talento, na dedicação e no empenho pessoal. E eis que então a gente sai de casa, numa noite calorenta e desconfortável, para ver a estreia de uma peça badalada. E fica constrangido ao ver em cena alguém tão ruim, mas tão ruim que deveria ser preso por exercício ilegal da profissão de ator. A gente volta para casa, demora para dormir como sempre, pede licença para o preconceito e vocifera no quarto escuro: porra, ali rolou cama, não é possível!

CONSIDERAÇÃO DOIS: Vejo uma pesquisa que aponta que, se pudessem, 55% dos moradores de São Paulo deixariam a cidade. Sei que São Paulo é uma cidade difícil, mas não me vejo morando em outro local do País. Eu fugiria do Rio de Janeiro e de Florianópolis como um camundongo foge de um gato faminto. Por razões que eu próprio desconheço, não me vejo morando numa cidade de praia. Eu até gosto de praia. Mas, para mim, o melhor dia da praia sempre foi o dia de voltar para São Paulo, sentir um pouco de frio (claro que esta semana não conta), tomar água sem medo de pegar diarreia e comer paõzinho francês que tenha sido feito no mesmo dia. Depois de ler a pesquisa, sem querer ser arrogante e prepotente, descubro um jeito fácil de melhorar nossa cidade: se quem quisesse ir embora realmente fosse atrás do seu sonho de viver na praia ou no interior, São Paulo seria um paraíso para os 45% que resolvessem ficar por aqui. Eu estaria entre eles.

CONSIDERAÇÃO TRÊS: Sei que pode parecer cruel, mas já estou parando de ler as notícias sobre o terremoto do Haiti. Nos primeiros dias, li praticamente tudo que os jornais e revistas publicaram a respeito. Cheguei a ficar em casa, comovido, lágrimas nos olhos, ao presenciar o gigantesco sofrimento vivido por aquela população já tão historicamente castigada. Mas depois os nossos olhos, cansados de escombros, dor e miséria, começam a procurar paisagens mais amenas. É crueldade? Sim. É indiferença diante da dor humana? Sim. Mas, como eu já escrevi neste mesmo espaço há alguns meses, penso que o fastio é um mal dos nossos tempos. Parece não haver alegria ou dor no mundo que segure nossa atenção por mais de uma semana. As coisas podem ainda estar muito quentes, que nosso desejo é virar a página e ver qual é a próxima atração. É bem provável que todos nós tenhamos nos transformado em uma sociedade de avestruzes: chega uma hora que a gente quer por a cabeça no buraco e não ver mais nada. Ou, na melhor das hipóteses, enfia a cabeça no buraco em busca de uma cena mais bonita. Nem sempre encontra, mas a tentativa continua válida.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Uma mãe com microfone

A caminho do cinema, na noite de terça-feira, ouço no rádio um programa comandado por João Marcello Bôscolli. Se não me engano, o nome do programa é Música Urbana, transmitido pela Rádio Eldorado. Sempre que escuto o nome de João Marcello no rádio ou vejo sua imagem na televisão, me lembro da primeira vez em que o entrevistei. Eu trabalhava no Jornal da Tarde e fui conversar com ele para uma reportagem especial sobre o aniversário de morte de Elis Regina. Não me lembro agora se eram 15 ou 20 anos da morte – o que só reforça a minha suspeita de que o tempo anda passando mais depressa do que eu gostaria.

Ele me recebeu em sua casa, no Morumbi. Me recordo somente de que era uma sala bem decorada, sóbria e com poucos móveis. Confesso que achei o ambiente um pouco frio, como também me pareceram frias, de início, as declarações de João Marcello sobre sua mãe cantora. Ele falava de Elis Regina com um distanciamento que eu não conseguia identificar se era prudência ou uma maneira de manter a saudade sob controle.

Em nenhum momento da entrevista, que foi bem longa, ele empregou a palavra mãe. Ele se referia a Elis como se fosse um fã um pouco mais íntimo. Me lembro da Elis fazendo isso, me lembro da Elis falando aquilo, me lembro da Elis cozinhando... Suas frases eram sempre assim, cotidianas, mas estranhamente calculadas. Contou de um músico da banda da cantora que estava enfrentando sérios problemas financeiros, com risco de perder a casa em que morava. Elis, no relato de João Marcello, saiu de casa uma manhã sem avisar ninguém de onde iria. Ao voltar, algumas horas mais tarde, procurou o músico e disse: fique tranqüilo, todas as suas dívidas foram quitadas. Elis era assim, contou ele, fazia o que achava que tinha de fazer sem avisar ninguém. Enquanto eu anotava suas declarações, lembrava que nem eu e nem ninguém que eu conhecia se referia à mãe pelo nome, e não como minha mãe. Talvez porque nem eu e ninguém que eu conhecia fôssemos filhos da Elis Regina. Vai saber.

Na hora de ir embora, a surpresa. Quando eu já tinha guardado a caneta e o bloco de anotações, João Marcello quis saber se ele podia me fazer uma pergunta. “Claro”, eu respondi. E então a coisa veio: “Sérgio”, ele falou, desta vez com a voz mais acalorada, “você gostava da minha mãe?” Respondi que sim. Ele prosseguiu: “Minha mãe era boa, não era?” Então eu disse que fazia parte daquele time para quem a mãe dele havia sido a melhor de todas. Ele sorriu desarmado, me abraçou e se despediu desejando que eu escrevesse uma matéria inspirada.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Rindo e aprendendo

De menino, por influência dos meus pais ou da igreja católica que frequentei regularmente até os 14 anos, aprendi que a dor e o sofrimento traziam sabedoria. Era justamente dos períodos mais tristes de nossas vidas que emergeríamos mais fortes e sábios, mais preparados até, acredito eu, para enfrentar de pé novos períodos de tristeza e dor. Não me lembro de ter sido ensinado a desfrutar do prazer e da alegria. Era como se a felicidade fosse um acidente de percurso, uma exceção em vidas que deveriam ser talhadas para conviver com o infortúnio. E, se prazer houvesse, era o prazer de sofrer.

Dito assim, parece que fui criado na Idade Média. Não é o caso. Como também não é o caso de dizer que este tipo de ensinamento caiu em desuso. Ainda hoje ouço, de bocas diversas, que é só na dor que se aprende. Devo ter sido sempre, e continuo sendo, um péssimo aluno então. Pois, em geral, minhas dores são sempre reprises de dores antigas. Todo meu sofrimento tem um sabor de revival e em todas as deprês que enfrento, quando penso nelas, localizo uma origem comum. Ou seja, meu repertório da dor é muito restrito e foi ele sempre o responsável pelos períodos tristes que enfrentei e enfrento na vida. Conclusão: a dor nunca me ensinou absolutamente nada. Talvez alguém levante a voz para dizer que fui eu quem nunca quis aprender. Pode ser. O certo é que não me lembro de lições muito proveitosas advindas da dor. A única coisa que eu consigo fazer bem nesta vida é me esquecer de um erro para, no mês seguinte, cometê-lo de novo. Às vezes com até mais galhardia.

Este post é decorrência do fato de eu ainda estar pensando, com insistência, nas famílias que perderam tudo neste período de chuvas. Imagino o casal que perdeu as filhas no deslizamento de terras em Angra dos Reis. Imagino as mães que tiveram seus filhos mortos em discussões banais. E então me pergunto: existe dor maior que enterrar um filho jovem? Acredito que não. E o que se aprende com esta dor brutal? Absolutamente nada. A não ser seguir em frente muito mais doloridos e despedaçados. Eu sei que talvez saiamos um pouco mais fortalecidos de uma grande tragédia, mas continuo acreditando que o benefício não compensa as lágrimas e o peito em frangalhos. Eu acho que a dor da perda e a saudade só nos ensinam, no fim, a perceber o quanto é difícil viver sem alguém querido. Nos ensinam que podemos viver, mas, meu Deus, a que custo? Confesso que é um aprendizado que eu dispenso. Sei que todos nós iremos aprender isso em algum momento, mas, enquanto for possível, continuo dispensando.

Há alguns dias eu postei, neste mesmo espaço, uma relação de dez frases que eu não gostaria de ouvir em 2010. Abro espaço para colocar mais uma. Trata-se desta aqui: “eu não gostaria de ouvir que é na dor que se aprende”. A felicidade também deve nos ensinar muita coisa. E, ainda que não nos ensine nada, ela é uma professora muitíssimo mais agradável que a dor. Então, se nosso destino é mesmo patinar na ignorância e no desconhecimento da vida, prefiro ser um burrinho feliz com meus dentões à mostra.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Adeus, twitter

Primeira resolução do ano novo: deletei minha conta no twitter.
Um problema a menos.
Já estou me sentindo bem melhor.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Ensaboa, mulata, ensaboa....

Acho que de tanto ouvir dizer que estes dias que cercam o Natal e o réveillon são uma época de amor, que eu acabei me lembrando de uma história de amor. Não chega a ser exatamente uma história de amor, muito menos uma história com final feliz. Mas é uma história em que o amor ocupou o centro da discussão, embora ele (o amor) deva ter se envergonhado de ver seu nome e sua função tão profanados.

Aconteceu comigo. Numa época bem complicada da minha vida, final dos anos 90. Um período em que os dias se arrastavam, a vida tinha se transformado num interminável filme em preto e branco com um roteiro perverso e meu maior desejo era ver meu corpo fundir-se às molas e espumas do meu colchão – até que não houvesse mais distinção possível entre dormir e viver. Um amigo, hoje um profissional bem-sucedido que trabalha no Exterior, ao me ver tão amante das sarjetas me indicou uma psicóloga cujo consultório, um casarão arejado e surpreendentemente silencioso, situava-se numa rua muito movimentada e barulhenta da região central da cidade. Ao chegar para a primeira consulta percebi que difícil não seria falar sobre minha vida e meus problemas, difícil seria entrar com o carro na minúscula garagem que a psicóloga me oferecera. Cheguei a pensar que aprender a estacionar o carro ali já deveria fazer parte do tratamento. Quem vence este obstáculo, imaginei, tira de letra qualquer complexo de Édipo ou fixação na fase oral.

Ela atendia no segundo andar do casarão, aonde se chegava depois de vencer uma escada em caracol, com degraus escorregadios de uma madeira escura. “Tome cuidado aqui”, ela me preveniu. “Na semana passada um paciente caiu”. Na tentativa de provocar uma intimidade prematura, perguntei se a queda havia se dado antes ou depois da consulta. Ela não respondeu.

Ela atendia em uma sala espaçosa, com duas mesas. A primeira, e maior, ocupava o centro do consultório. Foi ali que ela pediu meus dados pessoais. A segunda, praticamente uma mesinha de café, ficava embaixo de uma janela, com vista para duas árvores imensas no quintal. Ela me perguntou se eu não me incomodaria de realizar as sessões ali, ao lado da janela. Descobri, em seguida, que a janela não estava ali para arejar meus pensamentos, e sim dar vazão à fumaça dos incontáveis cigarros que ela consumia com sofreguidão durante as sessões. Fingi que tanta fumaça também não me incomodava.

E assim, entre degraus lisos, cantos de passarinhos e nuvens de nicotina, teve início minha história com ela. Uma história, vejo hoje, de pouca intimidade e confiança. Eu sentia que as sessões não evoluíam, que as perguntas que ela me fazia eram inconsistentes, que seus exemplos eram inverossímeis e suas metáforas, pobrezinhas. Até que um dia ela fez o tipo de pergunta que, ao meu ver, deveria representar a cassação do registro de qualquer profissional da análise por exercício irregular dos clichês: “Você se ama?” . Talvez por ver a expressão de frustração estampada em meu rosto, ela procurou evoluir: “Você diz diariamente a você mesmo que você se ama?” Dei uma chance a ela, perguntando sobre o que exatamente ela estava querendo falar. E aqui eu transcrevo, entre aspas, tudo o que ela me disse:

“Eu quero saber se, durante o banho, quando você ensaboa seu braço, por exemplo, você diz assim: braço, eu te amo. Braço, você é uma parte muito querida do meu corpo e é essencial ao meu bem-estar e por isso eu te amo muito. E quero saber se depois você faz a mesma coisa com as pernas, com as mãos, com os pés. Eu quero saber se você declara seu amor incondicional a cada parte do seu corpo, enquanto as acaricia com água morna e sabonete... As partes do seu corpo precisam saber que são amadas por você. E assim, ao declarar seu amor a cada parte sua, um dia você vai se descobrir apaixonado por você mesmo”.

Por uma dessas graças divinas, a sessão acabou na sequência e eu não precisei responder nada. Saí do consultório e vim a pé para casa, me perguntando se eu não seria capaz de encontrar uma maneira mais inteligente de gastar meu dinheirinho suado.

Nunca mais voltei ao consultório dela, mas continuo tomando banho diariamente, dois por dia nestas semanas mais quentes. Na véspera do Natal, embaixo do chuveiro, me lembrei desta história e pensei em dizer o seguinte: “Braço, como você foi bonzinho para mim o ano inteiro, esta noite o papai Noel vai te trazer um lindo presente”. Mas achei melhor ficar calado: já imaginou se o outro braço, as duas pernas, as duas orelhas e os vinte dedos ouvissem a promessa e também exigissem uma lembrancinha de Natal...Achei melhor que eles se contentassem com a água morna e a espuminha. E já está bom demais!