quarta-feira, abril 01, 2009

A jovem e a foca

Duas notícias publicadas esta semana nos jornais e revistas atraíram especialmente minha atenção. Talvez os visitantes deste espaço estranhem, sintam-se ofendidos até, pelo fato de eu ter procurado por semelhanças entre estes dois casos, geograficamente tão distantes mas análogos em sua essência. Ocorre que, quando penso em um, o outro me vem automaticamente à cabeça, já que ambos parecem ser frutos de um tipo específico da maldade humana. Acho perigoso discorrer sobre a maldade, pois centenas de estudiosos já se debruçaram sobre este assunto com uma competência infinitamente superior ao que eu estou prestes a dizer. Em todo caso, peço licença aqui para minha pequena, inútil, provavelmente sem fundamento e descabida dissertação sobre a maldade. Espero, apenas, que ela não resulte pretensiosa e, acima de tudo, que conserve a digital de um leigo, que é o que sou. Neste e em tantos outros assuntos.

Mas vamos às duas notícias, afinal. A primeira delas é sobre a jovem carioca que foi baleada na nuca porque pediu ao assaltante que estava levando sua bolsa que ele lhe devolvesse a bíblia e o crachá de estagiária da Caixa Econômica. A segunda não era exatamente uma notícia, e sim a fotografia de um caçador, munido com uma espécie de porrete, prestes a abater um filhote de foca nas imensidões geladas do Canadá. O assaltante baleou a jovem na cabeça – e ela teve morte instantânea. O caçador golpearia o filhote de foca também na cabeça, segundos após o click do fotógrafo, tingindo de vermelho aquela aparente beleza branca do Canadá.

As notícias eram estas e, além dos dois golpes fatais terem sido desferidos na cabeça das vítimas, parece não haver mais nenhuma ponte unindo a jovem carioca ao filhote de foca canadense. A princípio, pode parecer até revoltante continuar com as comparações, mas é que eu acredito, de verdade, que existe alguma coisa muito mais sutil (e assustadora) ligando estes dois casos. A jovem e a foca foram, a meu ver, vítimas daquele instante em que a maldade se torna absolutamente desnecessária. Não pretendo dizer com isto que exista alguma maldade necessária, mas acredito que parece haver um tipo de maldade que seja ao menos justificada. Que exista, em algum momento e em alguma instância, algo que possa validar um ato extremo de resultado tão desastroso. Matei para me defender. Roubei porque meu filho tinha fome. Mas a jovem e a foca foram vítimas de algo que não precisaria efetivamente ocorrer – pois para os dois casos existem alternativas mais humanas. Ou no mínimo mais inteligentes.

O ladrão já havia se apoderado da bolsa da jovem – e não me parece sensato que ele fosse fazer algum uso tanto da bíblia quanto do crachá. O ato do roubo, enfim, estava consumado com êxito – e este ato eu sou, sinceramente, capaz de compreender. Poderíamos apontar aqui dezenas de razões que induziram aquele jovem ao roubo. Mas ao se apoderar da bolsa da garota, a sua função de ladrão já estava concluída de forma eficaz. O que viria depois, o tiro na nuca da jovem, é o que eu entendo como aquela fração da maldade para a qual não parece haver mais justificativa possível.

Vejamos o caso da foca, então. Leio que elas são abatidas para renovar o guarda-roupa das mulheres ricas (e completamente idiotas) da Noruega, Rússia e China. Leio também que o governo do Canadá, numa declaração que só pode ser interpretada como ironia, proibiu os caçadores de retirar a pele dos bebês focas enquanto eles ainda estão vivos. É mais humano, recomenda a nobre legislação canadense, que se espere pela morte dos filhotes, algo que não deve demorar assim tanto tempo dada a violência do golpe com que são atingidos. Não sei se as consumidoras dos casacos de pele de foca estariam interessadas em ver o tamanho da devastação e da bestialidade promovidas por seu guarda-roupa. Mas, como no caso da jovem, o que eu imagino é o seguinte: elas não precisam mesmo dos tais casacos, como de resto ninguém precisa. Não estamos abatendo outras espécies para nos alimentar, para incrementar nossas pesquisas médicas ou mesmo para nos agasalhar em caso de alguma necessidade extrema: estamos abatendo apenas para ornamentar a nossa vaidade e mostrar o nosso domínio e intolerância absoluta sobre todas as outras espécies vivas deste planeta, sejam elas um filhote de foca ou uma jovem religiosa da zona norte do Rio.

O ladrão que atirou na garota deve ter pensado o seguinte: eu não preciso fazer isso, mas eu posso. Da mesma maneira que o caçador canadense, ao avançar sobre uma indefesa e assustada foca, deve saber, no seu íntimo, que o único ser para quem aquela pele macia e quentinha é absolutamente essencial é a própria foca, e ela vai perdê-la, junto com a vida, em questão de segundos. Mas ele abate o filhote e pensa: eu não preciso fazer isso, mas eu posso. É neste segundo exato, neste instante dolorido em que a bala fere a nuca da jovem carioca e o porrete avança sobre a cabecinha da foca, que a maldade revela uma faceta que foge a qualquer compreensão ou perdão possíveis.

Nas últimas semanas, tenho ouvido com especial atenção duas pessoas sensatas que estão me ensinando sobre o valor da calma e a importância de enxergar o mundo não por aquilo que ele tem de absurdamente dolorido – o mundo, eles me ensinam e eu tento aprender, comporta também milhares, talvez milhões de experiências muito mais gratificantes do que estes dois casos isolados aqui citados. Mas é que estes dois casos, e não sei por que eles, são tão incompreensíveis e tão representativos destes episódios que eu resolvi batizar de “a maldade desnecessária”, que não pude evitar de falar sobre eles. Fica aqui a promessa de, já no próximo post, eu tentar voltar os olhos para as outras coisas que nos mostram o quanto pode ser gostoso estar vivo, neste mundo e nesta época.

6 comentários:

Mário Viana disse...

Serginho, mwelhor que qualquer filósofo de orelha de livro, você sintetizou nosso espanto diante "disso" tudo. Quando a vida do outro - seja uma jovem religiosa ou uma foca nenê - se torna sem valor é sinal, um tristíssimo sinal, que a vida do agressor também já não vale nada. abçs

Só no blog disse...

Brigado, queridão. Você vai ganhar meu cartão fidelidade. A cada dez comentários, você tem direito a um sanduíche de pernil do Estadão. beijo grande

Anônimo disse...

aquela foto da foca me chocou muito. fiquei por um bom tempo olhando aquela foto e tentando entender a razão das mulheres que sonham com as peles da focas. Pensei, também, no desespero daquele ser diante do seu carrasco, tal como a menina do Rio. Tempos de maldade sim, Sergio.Abraços Rachel

Só no blog disse...

Rachel, querida. Então somos dois. Fiquei um tempão olhando para aquela foca e imaginando que duelo estranho estava se processando ali, né? beijão

Escritor disse...

Sérgio,
Beleza de texto. Raciocínio claríssimo sobre dois fatos tão chocantes. Vivemos tempos sombrios em que a vida, de humanos ou animais, nada significam. E não há nada que justifique essa brutalidade. Você deveria estar escrevendo em nossos jornais. Falta vida inteligente nessas páginas que mancham nossos dedos de tinta e sangue...
Grande abraço

Só no blog disse...

Meu querido, muito obrigado pelo carinho e pela leitura do blog. Falta você dizer seu nome, para que eu possa agradecê-lo de forma mais pessoal. abração, sérgio