sexta-feira, março 23, 2007

Selma Egrei, o menino negro e as fatias de cebola

Noite de quinta-feira. Depois de assistir à pré-estréia da peça O Relato Íntimo de Madame Shakespeare, duas horas de um espetáculo intimista ao longo das quais Selma Egrei dá mais uma prova de que é uma das grandes atrizes brasileiras sem jamais trair seu estilo low-profile, caminho a pé, em companhia do amigo e jornalista Gustavo Fioratti, da sede do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro, até a avenida Paulista. Caminhada vagarosa e despreocupada, um raro prazer de observar o quanto o velho centro pode ser belo se o olharmos com o espírito desarmado - uma atitude cada vez mais rara e arriscada hoje em dia.

Paramos, depois de uma hora de caminhada, em um desses lugares que vendem pizza aos pedaços, na Alameda Santos. Alguém tinha acabado de comprar uma garrafa de Coca Cola e uma fatia de pizza calabresa, revestida de uma infinidade de fatias finas de cebola, para um garoto de rua, um menino franzino, negro, de dedos impressionantemente finos. Ele acomodou-se ao nosso lado e levantou-se na seqüência. Foi pedir para que o atendente lhe conseguisse um copo descartável. Voltou com o copo e o encheu de coca cola. Era coca light. Então, com a paciência de um ourives, começou a tirar, com seus dedos que pareciam pinça, cada uma das fatias de cebola, que ia amontoando sobre um guardanapo branco. Foi um dos gestos mais lindos e elegantes que já vi na vida. Seus dedos colhiam as fatias de cebola com a nobreza de uma rainha que revirava sua caixa de jóias, a nossa pequena my fair lady das ruas. Aquele era o momento dele, provavelmente a única hora do dia em que se permitia tamanho luxo e deleite. Depois, comeu a pizza em quatro ou cinco grandes mordidas, tomou a coca cola que estava no copo e jogou o restante da garrafa fora, junto com o guardanapo das cebolas. Agradeceu o balconista e voltou a mergulhar nas ruas, talvez para passar a noite em um farol, talvez para dormir debaixo de alguma marquise. Mas naqueles segundos em que retirava as cebolas da pizza ele tinha sido o que na verdade ele era: uma criança. E me deu de presente a lembrança, já perdida lá atrás, de quando eu, também menino, tirava as cebolas de cima da minha pizza. Mas eu acho que nunca fui tão elegante quanto ele.

5 comentários:

Anônimo disse...

Massa, Massa!
Surpreendendo sempre com suas observações perspicazes...
Lindo momento, linda atriz, lindo garoto e lindas a cebolas!!!

Só no blog disse...

Viu como eu reparo em tudo, João. Por isso, se comporte da próxima vez, hein. Ou eu conto tudo aqui...

Flávia disse...

Ei, que texto bacana. Gosto dessas narrativas contadas a partir de coisas que aparentemente são banais e que poucas pessoas observam. Falando em observar, te vi no Satyros na sexta! ;-) Beijo!

Só no blog disse...

Oi,Flávia, valeu pela mensagem. Na sexta eu fui ver o espetáculo do Marcelo Mansfield nos Parlapatões e depois passei no Satyros para uma cervejinha. Beijão

alberto disse...

lindo, tocante. teu olhar, de que eu tanto gosto. luv