Algumas semanas atrás, o Alberto Guzik escreveu em seu blog um imenso, carinhoso e revelador comentário sobre Phedra de Córdoba, a diva que Cuba exportou para o Brasil pouco antes da revolução de Fidel Castro e que hoje é uma das estrelas do Satyros, aquele pequenino espaço de céu na Praça Roosevelt em que as estrelas não precisam ser muito convencionais. Eram impressões precisas de quem conhecia Phedra de perto, de quem trabalhava e viajava com ela, de quem entendia suas manias e excentricidades, de quem sabia, pelo convívio, dos detalhes que a deixavam realizada ou destruída. Guzik aproximou sua lupa de Phedra de uma maneira tão estranhamente dolorida a ponto de revelar seus trajes puídos, seus velhos e reformados vestidos presos com alfinete, sua antiga majestade, enfim, sustentada por alinhavos e colchetes. Fiquei impressionado com o que li. Era uma grande homenagem a Phedra, mas sem concessões, destas que devem provocar no homenageado um misto de contentamento e nudez.
De todas as histórias que ouvi a respeito de Phedra, e não foram poucas, existe uma da qual não consigo esquecer, e que me volta à mente vez ou outra, talvez por ter ouvido diretamente dela. Naqueles dias em que nossa carteira torna-se folgada demais para guardar o pouco dinheiro que temos, Phedra me disse, ali na frente do Satyros, que estava com apenas 20 reais no bolso. O que, no caso dela, pode ser entendido como 20 reais na vida. Era tudo de que dispunha para passar vários dias. Antes que eu falasse qualquer coisa, ela continuou. "Mas destes 20 reais eu tenho de tirar 18 para a ração do meu gatinho. Vão me sobrar apenas dois reais. Mas eu sei me virar, o gatinho não". Pensei em quantas pessoas no mundo seriam capaz de colocar em risco o próprio estômago para que um bichinho de estimação não passasse fome. Naquele dia sim, para mim, Phedra revelou seu lado de rainha.
Ontem, num início de noite gélido na cidade, Phedra me contou, exatamente no mesmo lugar em que, meses atrás, falara da história dos 20 reais, que seu gatinha havia morrido minutos antes. Ela levou o bichinho para tomar vacina e, no consultório, amparado por ela e pela veterinária, o gatinho teve uma parada respiratória e morreu. A cena, segundo ela, durou alguns segundos. De repente as patinhas, antes retesadas, decerto temerosas com a picada iminente, relaxaram totalmente e o resto do corpo fez o mesmo. Seu amiguinho acabava de partir. A veterinária ficou perplexa, desmanchando-se em desculpas. Elegante à sua maneira, Phedra aceitou todas as explicações científicas sobre a morte súbita do animal e voltou para o Satyros. E ali, contava esta história para um ou outro disposto a ouvi-la. Eu fui um deles. "Nas noites de frio", disse Phedra, "ele dormia no meu pescoço".
Saí de lá e fui me divertir com amigos, tomar vinho, jantar, falar de histórias muito mais divertidas, saber dos projetos de cada um, um cenário, enfim, que combinava melhor com as noites de sexta-feira. Quando voltei para casa, quase cinco da manhã, percebi o quanto fazia frio. E, na hora de me deitar, me lembrei de que na casa de Phedra talvez o frio estivesse ainda um pouquinho mais forte, sem o gatinho para aquecer seu pescoço. Segundo a meteorologia, foi a noite mais fria do ano. E a mais triste para se despedir de um bichinho tão amado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário