Tenho alguns amigos que acabam de realizar um trabalho artístico em uma comunidade carente fora do Estado. Tudo indica que foi um destes trabalhos com potencial para mudar a visão de mundo de uma pessoa. Ou, ao menos, para apresentar a ela uma nova maneira de ver o mundo - infelizmente não muito melhor do que aquela com que estamos acostumados até o momento. Eles passaram quase um mês convivendo com os moradores daquela comunidade: gente que perdeu pais e irmãos vítimas da violência, garotas que se entregaram à prostituição quando ainda deveriam estar brincando de boneca, rapazes que aprenderam as duras leis do tráfico antes de aprender a somar e dividir, gente que foi abandonada na infância e agora anda pelos becos da comunidade a alardear que até os cães são mais felizes, gente que passa um dia inteiro às custas de um sanduíche de mortadela que chegou até ali por meio de doação e gente disposta a eliminar desafetos mediante uma quantia que, aqui em São Paulo, daria apenas para pagar uma boa refeição num restaurante bacana. Eles voltaram de lá tocados pelo horror e, talvez mais ainda, por uma resquício de humanidade e esperança que parece se esconder atrás de cada um desses casos.
Eles me contaram várias histórias e, aqui, acho que seria o caso de reproduzir apenas uma: na semana passada, uma garota daquela comunidade, viciada em crack, foi morta por uma gangue rival. O motivo do crime, aparentemente segundo seus mandantes, é que ela sabia demais e estava muito perto de começar a dar com a língua nos dentes. A cada vez que cheirava uma pedrinha, ela começava a falar mais do que devia, mais do que era permitido e desejado. Por isso, ela se converteu em um arquivo que tinha de ser apagado com urgência. Ela tinha nove anos.
Tento imaginar como seria seu rosto, se havia algum esboço de sorriso em sua face, se algum dos seus gestos ainda denunciava uma infância que talvez resistisse àquela brutalidade toda. Tento imaginar se ela voltava para casa de manhã, se havia uma casa para ela voltar e, caso houvesse, se havia ali alguém à sua espera. Tento imaginar se ela tinha uma boneca, se às vezes sentia vontade de colo, se tinha medo do escuro e dos trovões, se iria haver um bolo em seu aniversário de dez anos. Não perguntei como ela foi morta, pois este é o tipo de caso em que os detalhes pouco têm a acrescentar diante do conjunto da bestialidade. Esta história me fez lembrar da garotinha arremessada - ou não - do sexto andar do prédio aqui em São Paulo. As duas estão aí para provar que as crianças já podem ser assassinadas também sem muita cerimônia. Sempre o foram, é verdade. Mas a proximidade entre um caso e outro (talvez elas tenham sido mortas no mesmo dia) me faz crer que abrimos um precedente assustador. Isabela e a garotinha do outro estado tinham menos de dez anos e morreram como gente grande. Cada época tem a fábula que merece.
sexta-feira, abril 04, 2008
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