quinta-feira, julho 19, 2007

Dicionário

Quando, há mais ou menos três anos, um imenso maremoto devastou as ilhas do sudeste asiático, eliminando mais de 200 mil pessoas, aprendemos a usar a palavra tsunami. No ano passado, após a queda do avião da Gol no Mato Grosso, passamos a conviver com o termo transponder. E, desde a trágica tarde de terça-feira, quando o avião da Tam se espatifou em Congonhas, estamos aprendendo a conviver com a palavra grooving. Infelizmente, parece que esta tem sido a única lição que as grandes tragédias nos ensinam: a de aumentar o nosso parco vocabulário com uma palavrinha nova que, esquecido o desastre, ela também cairá em desuso. A memória, a dor e a saudade passarão a ser privilégio então - triste privilégio - daqueles que viram alguém querido sair tragicamente de suas vidas para que nós aprendêssemos uma palavrinha nova.

Eu fico assustado com a rapidez com que a vida volta ao normal neste país. Há pouco tempo, apareceu um cadáver na praia de Ipanema. Era um lindo dia de sol e um corpo, um corpo morto, é óbvio, não poderia competir com tamanha beleza natural do Rio de Janeiro. Cobriram o corpo com um saco de plástico preto e continuaram a tomar sol, pegar onda e jogar futebol de areia ao lado do morto. Nas fotos, crianças apareciam tomando picolé ao lado daquele incômodo entulho que, até poucas horas atrás, tinha nome e profissão. Se a memória não está me traindo - nos últimos tempos ela resolveu me boicotar nos momentos mais delicados - o corpo foi recolhido somente oito horas após ter dado na praia. Oito horas - e não estamos falando de uma praia deserta no sul da Bahia. A praia era Ipanema, alguma coisa entre o poisto seissx ou douze - como eles adoram dizer.

Desde terça-feira, logo após o desastre com o avião da TAM, eu tenho passado muito mais horas do que de costume na frente da televisão. Não sei se isso faz parte daquele estranho fascínio pela tragédia - o mesmo que faz todos nós, motoristas, reduzirmos a velocidade para ver um carro simplesmente com o pneu furado - ou se é algum resquício da minha época de repórter de jornal diário, que ainda me obriga a ficar atento a qualquer coisa que possa cheirar a notícia. É impossível estabelecer um ranking da imagem mais trágica, da cena mais dolorida, do depoimento mais pungente. Tudo é absolutamente terrível. Mas o que mais me chocou foi uma cena leve, corriqueira, que mostrava como o cotidiano já estava se apoderando da dor: um repórter chegou a Congonhas por volta das seis da manhã de quarta-feira, para documentar as primeiras partidas do aeroporto, os novos passageiros chegando, a fila do check-in, os carrinhos com malas. A alguns metros dali, corpos carbonizados ainda estavam sendo retirados, o cheiro da fumaça ainda se fazia sentir em toda região, os parentes não haviam derramado uma centelha das lágrimas que durante anos ainda correrão por seus rostos - e a vida, a vida dos que sobreviveram, já voltava ao normal. Congonhas aberto, aviões subindo e descendo, esteiras rolantes levando e trazendo bagagens, todas as engrenagens do destino funcionando novamente, a vida seguindo seu fluxo, pisando dolorosamente em que ficou queimado pelo caminho.

Além de tsunami, transponder e grooving, os tempos atuais - com a providencial ajuda deste governo que não precisa mais de nenhum adjetivo - estão nos ensinando uma nova lição sim: a do salve-se quem puder. Se o seu avião segue em vôo de cruzeiro, ensinam a filosofia e a ética de Brasília, não olhe para trás nem para baixo: encha seus bolsos, abra um sorriso hipócrita, afirme que não sabia de nada, coloque a culpa em seu subordinado e, sempre que der, relaxe e goze. Se no meio do caminho houver uma vaia, finja que está triste e diga que foi tudo orquestrado. E boa viagem.

Um comentário:

flávia coelho disse...

É isso mesmo Sérgio, infelizmente.