sexta-feira, maio 14, 2010

A vida é sonho

Sou uma pessoa que sonha muito. Não aquele tipo de sonho com o sucesso, dinheiro ou uma vida longa e feliz. Os sonhos aos quais me refiro são aqueles que ocorrem à noite, enquanto durmo. Acredito que todas as noites. Muitos sonhos. Já li que todas as pessoas sonham todas as noites – e mesmo os animais sonhariam. A diferença é que algumas pessoas se lembram dos seus sonhos, enquanto que outras não. Sou um digno representante do primeiro time. Me lembro de tudo com tanta clareza que, às vezes, meu estado de humor durante determinados dias parece estar intimamente ligado aos sonhos que tive à noite. De tão mirabolantes que são, evito contar meus sonhos aos amigos, com medo de ouvir deles que estou inventando tudo. Nos meus sonhos há lugar para todo mundo, desde os amigos mais íntimos, passando pelos conhecidos até chegar em gente como George Clooney, Madonna e Brad Pitt. Nos meus sonhos, eles falam português fluentemente e moram todos em Jundiaí, cidade em que nasci e que até hoje é o cenário de quase todos os meus sonhos, embora eu tenha saído de lá há mais de vinte anos.

Ao lado da casa em que passei a infância, havia um bar, com uma mesa de sinuca. Em um destes sonhos, passei uma tarde inteira jogando sinuca com a Julia Roberts. O problema do sonho é que ninguém sabia quem ela era, só eu. E todos os outros fregueses só queriam que a gente desocupasse logo a mesa. Em outro sonho, chegou um circo bem mambembe na cidade, e instalou sua lona puída no fim da rua, em um grande terreno baldio de terra vermelha. Eu gastei toda a lábia que tinha para tentar convencer o dono do circo a dar uma chance para um amigo meu, que era cantor e estava disposto a se apresentar ali, de graça. De tanto implorar, o dono do circo concordou com que meu amigo cantasse apenas duas músicas – e nem aplaudido ele foi. Meu amigo era o Caetano Veloso. Como estes, há dezenas de outros. Até com o papa eu já sonhei. No meu sonho, cansado e com dor de cabeça, o papa sai na janela do Vaticano e atira um balde de água nos milhares de fiéis que estavam ali só para vê-lo. Depois, pega o microfone e manda todo mundo à merda.

Se eu fosse um paciente que gastasse as sessões de terapia apenas para contar os sonhos, eu não teria tempo de conversar sobre mais nada. Só menciono os meus sonhos para o terapeuta quando eles fogem demais da minha compreensão. Mas demais mesmo. Daí eu peço alguma ajuda, pois acredito que talvez eles estejam querendo dizer alguma coisa que foge à minha compreensão. Como no caso de três sonhos recorrentes, que me acompanham há vários anos e eu ainda sofro para decifrar os seus enigmas.

No primeiro deles, eu estou de volta ao exército. Eu realmente servi o exército, passei um ano inteirinho lá e dei baixa como cabo. No sonho, eu estou de volta ao meu primeiro dia no exército, justamente na hora de receber a farda. Tento explicar a todos que eu já prestei o serviço militar, que não tenho mais idade para ser recruta e que minhas obrigações com os milicos estão quitadas. Ninguém acredita em mim e me obrigam a ficar. Terei, então, mais um ano pela frente para marchar, prestar continência e disparar tiros para lugar algum.

No segundo sonho, existe uma casa imensa, praticamente um palacete, bem na frente da casa em que eu vivia na infância. No sonho, esta casa gigantesca pertence à minha família, mas não podemos nos mudar para lá. Da janela da casa pequena em que eu nasci, eu passo horas observando aquela mansão à nossa espera. Só há uma rua a nos separar dela, podemos quase tocá-la – mas nem eu e nem ninguém da minha família tomamos posse da casa. Estamos condenados (e conformados) a viver na casa pequena. Em algumas situações, recebemos a visita de parentes e amigos. Então, os levamos até o portão e exibimos, orgulhosos, aquela bela casa da frente que nos pertence. Mas, como nós, é na casa pequena que as visitas também entram.

O terceiro sonho é o mais angustiante. Estou conversando com alguém, qualquer alguém, e de repente os ânimos vão se alterando e a conversa dá lugar a uma discussão absurda e violenta. Neste momento, na hora de defender meu ponto de vista e meus interesses, eu perco a voz. Quero falar, quero brigar, quero discutir e minha garganta não emite um único som. Acordo dilacerado diante daquela mudez tão inoportuna e dolorida.

Sei que deve haver algumas explicações para estes sonhos, das mais banais às mais complexas. Na minha cabeça, já tentei interpretá-los de todas as maneiras. A prova de que eu falhei é que estes sonhos continuam me visitando com uma imensa frequência. Mas não me aborreço mais. Porque, quando estes sonhos chatos dão uma trégua, eu posso jogar sinuca com a Julia Roberts e agendar shows para o Caetano Veloso. Não é pouca coisa.

11 comentários:

Andréa Beheregaray disse...

Muito bacana teu blog.
Teus escritos.

Gostei muito do texto sobre Clarice.

Abraço.

Anônimo disse...

Que engraçado seus sonhos e principalmente os frequentes. Comigo acontece algo que no meu sonho que não é nada normal. Meus sonhos tem intervalo. Plim, Plim.!!! Eu sonho, acordo e quando volto a dormir o sonho volta da onde tinha parado. Loucura!!! Não conheço ninguém que sonha como eu. Vc conhece? Gosto de sonhar e pelo jeito vc tb.

Só no blog disse...

Nossa, sonho com intervalo para mim é novidade! Gostei de saber disso, valeu pela visita. abração

Só no blog disse...

Olá, Andréa, muito obrigado pelo carinho. abraço grande

Julia Mendes disse...

Um psicanalista poderia dizer que você está sofrendo por alguma repressão inconsciente brava em sua vida; desejo reprimido que é expresso nesses seus sonhos recorrentes em que você é sempre impedido ou fadado à uma situação: ficar no exército, não poder falar, não ter acesso à mansão etc; ou que você está frequentemente querendo voltar à casa da infância ou para o útero de sua mãe já que todos os seus sonhos passam em Jundiaí... Um Junguiano acharia um tremendo significado para a Mansão, o Exército, o Circo e todos os símbolos presentes. Já eu acho pelo menos boas histórias para serem contadas, e peço, por favor, quando for jogar sinuca com a Julia Roberts, agendar shows para o Caetano uma outra vez, ou qualquer coisa parecida, gostaria de ser convidada!

Beijão

Só no blog disse...

Pode deixar, que eu te chamo, sim. Eu li que a Julia Roberts teve filho recentemente. Acho que é por isso que ela anda sem tempo de jogar sinuca comigo. Vou ver se arranjo outro parceiro do mesmo quilate. beijão

Julia Mendes disse...

Aahaha, ótimo! Bjs

Kiko Rieser disse...

Nossa, o mais desesperador me parece ser o do quartel. Credo! Sempre tive pavor de ser recrutado. Mas eu tive por toda minha infância e adolescência um parecido com esse último, mas era pior. No pesadelo, eu estava dormindo ao lado da minha mãe e acordava com o barulho de um cara entrando no quarto. Era o nosso vizinho (que de fato era perigosíssimo), armado, e eu não conseguia me mexer nem emitir sons. Queria acordá-la e partir pra cima dele, mas eu só conseguia tornar a morte cada vez mais iminente. Eu acordava suado, era terrível.

Só no blog disse...

Kiko, se eu fosse psicólogo infantil, eu diria assim: muda logo de casa. Mais pelo vizinho do que pelo sonho! beijão

Kiko Rieser disse...

Mudei de casa, não posso mais sonhar que estou ao lado da minha mãe, porque não moro mais com ela. E agora ganhei você como vizinho. Acho que não evoluí muito... Hahahaha.

Só no blog disse...

Imagina, Kiko. Sua vida progrediu muito. Agora que você não sonha mais com o vizinho misterioso, pode sonhar com a fama, o sucesso, as bebidas e as mulheres. Pode inverter a ordem, se você preferir. beijão