sexta-feira, outubro 15, 2010

Tateando

Noite dessas, zapeando pelos canais a cabo da televisão, coisa que raramente faço, parei para ver um documentário sobre uma cientista inglesa envolvida em trabalhos ambientais nas florestas da Indonésia. A insônia e a prostração realmente nos empurram para alguns programas que provavelmente evitaríamos em dias de juízo perfeito. Mas eu sempre tive interesse nestas pessoas que, sabe-se lá se por vocação, engajamento ou desilusão amorosa, abandonam a família, os amigos e o burburinho da civilização para se esconder em alguma floresta onde seus dias serão ocupados na observação de pássaros exóticos, grandes primatas e na ação perversa de caçadores. O objeto de estudos desta cientista, cujo nome não me recordo, eram os orangotangos.

O documentário exibiu uma foto da cientista de 30 anos atrás – quando ela chegou à floresta. Era uma morena bonita e de olhos claros, a quem não deveriam faltar pretendentes e uma vida social mais agitada em sua Londres natal. Mas ela preferiu passar a vida – ou os chamados melhores anos da vida – em meio a filhotes de orangotangos que estão aprendendo a subir em árvores. Já no fim do programa, ele encarou a câmera e disse. “Foi para isso que eu nasci, para estar aqui e cuidar destes animais”.

Ninguém precisa dizer muito mais do que isso para ganhar o meu respeito, a minha admiração e, confesso, a minha inveja. Sou realmente fascinado pelas pessoas que sabem por que motivo elas nasceram. Eu provavelmente já gastei mais da metade do meu tempo nesta vida e ainda continuo tateando – acho que sei tanto da vida quanto naquele momento em que o médico me ergueu, olhou para minha mãe e disse: é menino. Gosto realmente das pessoas que encaram um trabalho (ou alguma outra atividade parecida) como se fosse uma missão – e que procuram cumpri-la de uma maneira que parece não haver dúvidas de que se trata realmente daquilo ali e não outra coisa. Como eu poderia ter uma certeza assim tão grande na vida se eu sou daquele tipo de pessoa que, numa doçaria, depois de ter dado a primeira mordida num brigadeiro, se arrepende na mesma hora, achando que deveria ter pedido o quindim.

Creio que eu não sinta inveja da vida que aquela cientista leva na selva – eu acho que voltaria correndo para a cidade depois de dormir a primeira noite numa barraca . Mas o que me atraiu nela – e em outros casos semelhantes – é a convicção de estar fazendo algo no que realmente se acredita. A maioria de nós não poderia dizer a mesma frase sem correr o risco de esbarrar na hipocrisia. Faço uma série de coisas das quais gosto, sou levado a fazer outras tantas por necessidade de sobreviver, mas a coisa em si, a coisa suprema, sobre a qual eu poderia dizer que é nela que a minha existência se ampara, esta ainda, infelizmente, eu não encontrei.

Sinto quase o mesmo tipo de admiração por aquelas pessoas que passaram por uma experiência que mudou suas vidas – em épocas de mineiros soterrados e resgatados, dispenso as experiências traumáticas. Falo de coisas mais prosaicas, de gente que diz assim: puxa, a natação mudou minha vida, depois que comecei a nadar, sou outra pessoa. Ou sou outra pessoa por que parei de fumar, ou por que li determinado livro que abriu todas as portas da minha percepção, ou por que descobri Deus em determinada religião, ou por que eu fui tocado pelo bem...

Eu olho para mim e me vejo como uma pessoa que também faz várias e diferentes coisas, que também procura algum conforto nas artes, na convivência, na natureza e na realização profissional. Mas que guarda, para o bem ou para o mal, uma espécie de disco rígido no fundo da alma – que funciona direitinho mas é difícil de ser tocado – seja por uma poesia de Fernando Pessoa seja pelo prazer de ver um orangotango escalando sozinho a primeira árvore de sua vida.

2 comentários:

Anônimo disse...

Feliz por passar aqui e ver postagem nova!
Então... mesmo que não seja algo animador de se dizer, é bom saber que não estamos sozinhos em certos sentimentos.
Queria ter mais certezas do que dúvidas. Queria poder dizer como algumas pessoas: "ah, amo o meu trabalho, ele me realiza". Ou algo do tipo: "se voltasse no tempo, não mudaria uma linha do que vivi".
Pobre de mim, simples mortal, cuja única certeza é a de que me faltam certezas...
Abraço!

Vera Lúcia Ribeiro disse...

Nossa! "Vejo vc se debatendo, avaliando" é a imagem. Mas, muito mais do isso, gosto de ver como vc escreve, como se coloca enquanto observador, reflexivo.
Gostei muito desta parte: "Como eu poderia ter uma certeza assim tão grande na vida se eu sou daquele tipo de pessoa que, numa doçaria, depois de ter dado a primeira mordida num brigadeiro, se arrepende na mesma hora, achando que deveria ter pedido o quindim."
Estou começando a escrever no meu blog, mas confesso que meu português não é bom, reescrevo muitas vezes, e ainda depois encontro alterações necessárias.
Estou adorando ler seu blog.