É incrível a capacidade que a ciência tem de estipular a dose exata para tudo. Sabemos até que ponto o consumo de álcool é uma atividade prazerosa e a partir de que dose ele já se transformou em vício; sabemos quantas porções de carboidratos podemos consumir diariamente sem que a balança nos recrimine no dia seguinte; sabemos (ainda que não damos bola para isso) se o cigarrinho de maconha é um prazer compartilhado com os amigos ou se já estamos atravessando alguma fronteira arriscada, quanto de doce podemos comer (se é que podemos), quantos minutos podemos passar na esteira sem lesionar nossas articulações, quantos poucos minutos podemos ficar sob o sol com ou sem protetor 30, quantos copos de água temos de ingerir por dia, quantas vezes por mês podemos tomar comprimidos para dormir sem entrarmos na mais profunda das dependências e quantas horas a mais podemos ficar naquela festa tão boa sem que o trabalho do dia seguinte esteja irremediavelmente comprometido. Com o tempo, aprendemos a ver o nosso corpo como uma grande máquina, a quem podemos alimentar com doses exatas do que bem entendermos, ou extrapolar as medidas e sofrer com as prováveis consequências. Só não sabemos o quanto de verdade somos capazes de tolerar.
Para isso, a ciência ainda não inventou nenhum delicado mecanismo de medição. Nem os amigos, nem a família, nem as relações que vamos criando ao longo da vida têm a receita - com este ingrediente, a verdade, ainda nos comportamos como velhos alquimistas ou cientistas pioneiros sempre expostos a doses mortais daquilo que sai das nossas bocas - ou entra pelos nossos ouvidos. A verdade continua sendo um elemento químico de propriedades desconhecidas: sabemos mais ou menos como ela é, em que situações ela se apresenta ou não, que cara ela tem, que efeitos produz (e aí reside o grande risco, já que alguns deles, a exemplo de vírus traiçoeiros, podem manter-se incubados ao longo dos anos, aprisionando o nosso peito e apertando a nossa garganta, mas sem nos matar de imediato). Clamamos pela verdade, mas quando ela chega, às vezes preferimos bater em retirada. Ainda mais se ela chega disposta a nos apontar seu dedo esquálido.
Até que ponto podemos dirigir aos nossos amigos palavras e pensamentos que traduzam aquilo que, sob o nosso ponto de vista, mais se aproxima da verdade? Até que ponto podemos dizer que não, definitivamente eles não ficaram bem com aquela roupa, com aquele corte de cabelo, que a passagem do tempo não está sendo generosa com eles, que o último trabalho ao qual estão se dedicando não é tão bacana como os anteriores, que o namorado que arranjaram é um puta chato e que a gente só o tolera por educação e...por...justamente não termos coragem de dizer a verdade. E o mais triste é saber que eles podem agir exatamente assim em relação a nós. É saber que se eles disserem qualquer uma dessas coisas ao nosso respeito, no fundo vamos ficar magoados e uma vozinha lá no fundo vai dizer que eles não foram nossos amigos, que não souberam respeitar o nosso momento e nem o tanto de anos que compartilhamos juntos.
Só sei que a verdade dá um trabalho imenso. E que uma mentirinha, ainda mais quando sabemos tratar-se de uma mentirinha, nos engana tão bem quanto um doce diet. E assim vamos seguindo com a nossa vida, cutucando com uma verdade aqui, soprando com uma mentirinha ali, fazendo sangrar com as críticas, alisando com os elogios. Não é uma receita de hipocrisia - talvez seja apenas um método ancestral que encontramos para viver na companhia dos outros até que a ciência nos salve com um aparelhinho que mostre o quanto de verdade cada um de nós tem capacidade de dar e receber, sem que nos tornemos seres radioativos a vagar por um mundo solitário. E queira Deus que este aparelhinho custe bem baratinho.
segunda-feira, maio 21, 2007
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2 comentários:
Massa, vc tá a fim de dizer umas verdades para alguém? entao começa começa por mim! amigo é pra isso mesmo!
Noosa homenagem ao Samba, espero que goste.
http://www.youtube.com/watch?v=Fbhy_erNI7U
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