domingo, abril 08, 2007

Se eu fosse um teórico...

Há alguns momentos na minha vida, e este é um deles, em que eu gostaria sinceramente de ser um teórico. De ter a capacidade que alguns teóricos têm de traduzir em frases concisas algumas idéias e impressões que eu tenho e que insistem em não combinar bem com as palavras. De ser dotado de uma capacidade quase cirúrgica de traduzir a vida e os fatos. Sempre acho que, se tivesse estudado mais, em quantidade e afinco, talvez eu pudesse ter me transformado em um teórico. Mas a vida me jogou muito cedo nas redações dos jornais, ambiente em que raramente a pressa permite o exercício de uma escrita muito elaborada.

Há dois anos, durante um almoço no Festival de Teatro de Curitiba, a amiga Marici Salomão, respeitada no meio teatral por sua habilidade de transitar entre a produção artística e a análise desta própria produção, me deixou com o garfo parado entre o prato e a boca ao me dirigir a seguinte questão: "Roveri, você não tem medo de estudar mais? Não tem medo de adquirir um conhecimento teórico que, em vez de ajudar, pode vir a bloquear os seus escritos? Eu tenho", ela me confessou. Como toda boa lição, a gente precisa de algum tempo para assimilar. Se eu pudesse responder hoje para a Marici, eu diria: "Eu também tenho".

No entanto, hoje, exatamente hoje, é um daqueles dias em que eu gostaria de poder escravizar as palavras, de modo a obrigá-las a dizer exatamente aquilo que eu gostaria de dizer. Escrevo tudo isso ainda sob o impacto da estréia de A Noite do Aquário, peça de minha autoria dirigida por Sérgio Ferrara, em cartaz às sextas-feiras no Teatro dos Satyros Um. Na minha breve carreira de dramaturgo, tive o privilégio de trabalhar com diretores de inquestionável competência. Gente como Luiz Valcazaras, Ruy Cortez, Elias Andreato, Alberto Guzik, Ivam Cabral, Marcelo Mansfield, Paulo Autran, Gabriel Villela (estes dois últimos em leituras dramáticas) e agora com Ferrara. E, embora tenha aprendido a amar o resultado final que eles me apresentaram, não deixo de me perguntar: em que exato momento se opera o milagre de colocar em pé alguma coisa que, originalmente, nasceu deitada no papel? E quais os detalhes, as dificuldades e, principalmente, as opções que eles adotam neste complicado trabalho de parto? Que mistério é este, ou talvez fosse melhor dizer que sensibilidade é esta, que os induz a remover uma frase de um determinado lugar para colocá-la na íntegra, lá na frente, em um lugar novo para ela? E também para quem a escreveu. Que "escolhe de sofia" é esta que os obriga a, entre centenas de frases de um texto impresso, apontar aquelas que não são dignas de chegar ao palco? E, acima de tudo, que truque de ilusionismo os diretores empregam para que, ao final de um espetáculo, a gente se seduza por algo que deveríamos ter sido os primeiros a ver - e não fomos. Eu não os entendo: e talvez por isso os admire e respeite tanto. E nem quero conhecer os seus mistérios. Eu os prefiro assim, sacerdotes medievais que andam de ônibus, têm e-mail, tomam cerveja e jamais, jamais me revelam sua caixa de truques. Ainda que eu pedisse. Mas aprendi a não pedir.

É por isso que eu gostaria de ser um teórico. Se fosse, talvez eu entendesse melhor esta apropriação que os diretores fazem daquilo que escrevemos para nos devolver em forma de espetáculo vivo. Por outro lado, se fosse um teórico, um grande teórico, talvez não sentisse a indescritível surpresa que acompanha cada estréia, o peso na garganta e a vontade de chorar. E de sair por aí, feito um louco pela cidade, a distribuir rosas e charutos para os estranhos, anunciando que uma criança nasceu. Uma criança que talvez não venha a mudar o mundo e talvez nem seja lembrada daqui a algum tempo. Mas que já operou um pequeno milagre: concebida em papel, ela nasceu gente. A todos estes diretores, meu carinho e meu respeito eterno, pela paciência com que abriram as cortinas da minha casa, para que a luz e os convidados pudessem entrar.

Se eu fosse um teórico, talvez eu tivesse escrito isso de maneira muito mais clara e inteligível. Mas meus amigos, meus amigos queridos, sabem do que estou falando.

6 comentários:

Anônimo disse...

Se vc fosse um teórico, talvez não escrevesse com tanta poesia. ;-) Parabéns pelo espetáculo. Beijo!

Só no blog disse...

Muito obrigado pelo carinho de sempre, querida.
Beijão

Anônimo disse...

Esse texto falou ao meu coração. Do seu pro meu. É assim que se escreve. Parabéns por tudo. Adorno.

Anônimo disse...

Caramba, Serginho, você traduziu aquilo que eu sempre penso: em que momento se dá a mágica, a concepção? Em que instante fecundo o papel ganha vida?
Outro dia, saindo de um ensaio do Amor do Sim, eu comentei com Flavia e Otávio: "Sabe como eu me sinto? Como o pai que sai do ultrasom do filho. Você vê o corpo, o rostinho, as mãos, mas ainda não é. Vai nascer daqui a pouco e aí, sim, virar gente". A Flavia disse que achou lindo...
Mas é essa relação autor-diretor-atores-som-luz-público que dá graça à loucura do teatro, né? É o que realmente vicia.
bjs

Anônimo disse...

geraldthomas.blog.uol.com.br

leia isso! sobre a peça de ontem....
beijinhs
i.

Anônimo disse...

serginho, seu blog tá o máximo.
uma delicia passear por ele ler e reler alguns trechos. Tem humor, lirismo, poesia.
Cada dia que passa fico mais seu fã ( ainda bem que já tenho vários autógrafos seus em cheques em branco..ainda bem )