Eu devia ter 15 anos quando li Cem Anos de Solidão e me vi imediatamente encantado por aquele mundo fantasioso – e paradoxalmente familiar – de Gabriel Garcia Márquez. Por um longo tempo, eu não queria fazer mais nada da vida a não ser ler tudo que o escritor colombiano houvesse publicado e, assim, me tornar mais íntimo daqueles personagens que viviam mais de cem anos e se reconheciam pelos cheiros, que cruzavam desertos misteriosos em caravanas improvisadas, ou que, de tão sedutores, conseguiam despertar paixões ainda que já estivessem mortos. Naquela época, se alguém me oferecesse uma viagem, eu diria, sem hesitar, que meu sonho era conhecer Macondo, a cidade imaginária fundada pela família Buendia em Cem Anos de Solidão, indiscutivelmente meu livro de cabeceira, de escrivaninha, de sofá, e de todo resto da mobília.
Algum tempo depois, conversando com uma amiga mais velha, já formada em jornalismo, sobre minha paixão pela obra de Garcia Márquez, ela se revelou sabiamente impiedosa: “Eu não acho Garcia Márquez tão bom assim”, ela me disse. “Toda família tem a sua Macondo, ele só foi perito em descobrir isso antes dos outros. Quem nasceu numa cidade pequena, pode dizer, sem medo, que também nasceu em Macondo. E isso não faz de ninguém um grande escritor”.
Fiquei muito tempo com este diagnóstico a me assombrar a cabeça – e hoje, muitos e muitos anos depois daquela conversa, me vejo obrigado a dar um pouco de razão a ela. Abandonei o gosto por Garcia Márquez na mesma época em que a adolescência me abandonou. Li outras coisas dele, é claro, mas nunca mais sua obra me causou impacto considerável. Para mim, seu último grande livro foi o pequeno Crônica de Uma Morte Anunciada – mas ainda assim ficou longe de iluminar em mim aquela Macondo eclipsada pelos anos.
Às vezes, me pego pensando se havia realmente algo de Macondo no lugar em que nasci – e talvez a amiga jornalista estivesse certa sobre isso também. Havia Iracema, sobre quem já falei aqui, a mulher de uma brancura fantasmagórica que era espancada pelo marido sempre que saía de casa para cantar; havia o Zé da Hélia, o louquinho boa praça que entrava em surto psicótico toda vez que ouvia a palavra chuva; havia o Dito Cruz, em cuja boca sempre risonha despontavam apenas os caninos superiores, que se perdia em passeios solitários que nunca duravam menos de três dias, deixando sua única irmã, tão velha e solteira quanto ele, em pânico; havia o homem que se enforcou em uma árvore de quintal a quatro casas da minha; havia a mulher que encharcou seu corpo em álcool e riscou um palito de fósforo – e foi enterrada com os cabelos terrivelmente vermelhos e o rosto cheio de sulcos; havia o funcionário de uma fábrica de cadeiras, moreno e calvo, do qual todas as mães mantinham seus filhos afastados – ninguém falava em pedofilia na época, mas todo cuidado em se tratando dele parecia pouco; havia o seu Domingos, o homem carrancudo e solitário que, quando jovem, matou a facadas um primo da mesma idade por causa de uma mulher; havia Lúcia, a guardiã da moral de todo bairro, a jovem freirinha que um dia fugiu do convento para se casar com um motorista de ônibus, enfraquecendo um pouco a fé de cada um de nós; havia uma família de anões; havia um menino que ficou cego com a bicada de um passarinho que fora presente do seu pai; havia os bêbados, havia os cachorros loucos, havia os jovens que morriam cedo de meningite ou tiro e havia ainda todos nós, os outros, um grupo mais ou menos coeso e que parecia não reunir, assim à primeira vista, qualquer particularidade para esperar um papel de protagonista caso alguém um dia resolvesse escrever esta história. Seríamos uns figurantes simpáticos, não mais que isso. A menos que o tal escritor fosse suficientemente talentoso para descobrir aquilo que nós, tão habilmente, passamos a vida a esconder.
Se ainda penso nisso tantos anos passados, é sinal de que a obra de Garcia Márquez se aconchegou em algum canto da minha memória. Talvez os escritores não precisem nos acompanhar para sempre. Basta que tenham sido nossos confidentes, em algum momento das nossas vidas, e toda obra já estará justificada.
quinta-feira, fevereiro 26, 2009
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9 comentários:
roveri esse texto , essas memórias " daquela " jundiaí de outrora ( não tanto assim )bem que podia virar um roteiro ( teatro, cinema, sei lá )
Já tá um bom caminho andado.
Consegui ver as cenas.
Manda bala, vai !
Fica dando idéia, fica... um dia eu baixo aí para você produzir e divulgar esta nova Saramandaia!!!!
Pensei nisto também QUERIDO !!!! Que maravilha seria transformar todas essas estórias verídicas num roteiro de ficção PARA UM FILME !!! .... Lendo seu texto a gente consegue viajar contigo em seus pensamentos e lembranças .... QUE PODER FANTÁSTICO ESTE QUE VC TEM !!!
Salve querido ! Abs !
E o que é a arte senão descobrir uma maneira nova de olhar para tudo que já conhecemos? Ele nem precisava ter chamado de Macondo, podia ser Jundiaí ou Piraporinha do Norte mesmo, isso não diminuiria em nada a qualidade da obra dele.
Ôba, de Jundiaí para o mundo, então! Tomara que o prefeito de lá não fique bravo se eu colocar uns seres estranhos nesta produção - se ele ficar, eu digo que são todos eleitores do PSDB, o partido que governa a cidade há uns 200 anos....
Bem Roveri.
Seu Blog me foi indicado pelo amigo em comum Paulo Marra.
Realmente esse texto tem todos os ingredientes para virar um bom roteiro... Inclusive tenho algumas histórias da minha "Macondo" lá no interiozão do paraná... onde somos conhecidos por "pé vermeio"... é assim mesmo que se escreve e se fala por lá... rs... Tem a história do meu amigo zézinho, que com 15 anos depois de ter voltado de uma festança daquelas, quando chegou no sitio de manhãzinha foi atingido por três raios... Essa e tantas outras.. rsrs... Nós do interior crescemos cada um em suz "Macondo" particular.
Parabéns pelo seu trabalho.
Abraços
Paulo Letier
Fala, Paulo, tudo certo por aí? Que legal que tenha curtido o texto - e até contribuído com uma historinha particular. Um dia eu ainda vou escrever um post completo sobre cada um desses personagens...super abraço, sérgio
"Talvez os escritores não precisem nos acompanhar para sempre. Basta que tenham sido nossos confidentes, em algum momento das nossas vidas, e toda obra já estará justificada."
Ao ler isso, muito pensei, e por fim fiz as pazes com Richard Bach. Obrigado.
Infelizmente, minha Macondo era meio coxa. Ainda que distante, se perdeu em retratos outros. Ou, então, talvez, perdeu-se foi meu olhar em frente a uma televisão e um video game.
Dê uma chance, na meia idade, para O Amor nos Tempos do Cólera. Talvez você se reconcilie com Garcia Marquez. Isso, enquanto a sua própria Macondo não encarna.
abraço,
Aimar
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