segunda-feira, março 31, 2008

Uma hora com Antunes Filho

Entrevistei o diretor Antunes Filho a três dias da estréia de seu mais recente espetáculo, Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta. Durante exatamente uma hora ele falou sobre Nelson, sobre tragédia grega, sobre o curso de formação de platéias que pretende ministrar no segundo semestre e sobre sua incompatibilidade com parte da classe teatral. Seguem abaixo os principais tópicos da entrevista, transcritos em primeira pessoa.

NELSON ANCESTRAL

Esta peça (Senhora dos Afogados) trata do inconsciente coletivo, que são alguns impulsos ancestrais, algo que trazemos no DNA. Não sei se são coisas falsas ou não, mas são reais, todo ser humano tem. Os personagens de Nelson Rodrigues sofrem sempre a conseqüência dos arquétipos, estão sempre à mercê de coisas primordiais. Minha briga foi sempre a de tentar provar que estas características estão presentes em toda a obra do Nelson Rodrigues, e não somente em Senhora dos Afogados. Mesmo quando dizem que grande parte da obra do Nelson seja feita de comédia de costumes, eu insisto que por baixo de cada diálogo há muita coisa pululando. Todas as peças dele têm uma tendência à paranóia, ele escreve coisas que acompanham o ser humano desde os tempos das cavernas.

O APLAUSO CONSCIENTE

Eu faço peças para iniciados em teatro. O que falta é iniciar o público no teatro. No curso para espectadores que eu pretendo dar aqui no CPT, o público vai enxergar o que é um estereótipo, o que é um ator dramático, o que é um ator épico. O diretor tem de encontrar um vínculo para chegar ao entendimento com a platéia, e não mais deixá-la sufocada com cânticos, com cenários que correm e com a frescura dos atores. A palavra é fundamental, por meio da palavra é que se atinge a imaginação do espectador. Os atores e o diretor são apenas um meio, quem faz o espetáculo é cada espectador. Se nós realmente amamos o próximo e honramos a condição humana, temos de iniciar o público, e não usá-lo apenas como pão e circo, como gente que sai de casa só para aplaudir.

CRÍTICAS DA CLASSE

Eu enceno muitos autores brasileiros. Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna, quero fazer Lima Barreto. Por que eu faço isso? Desde que formei o CPT (Centro de Pesquisa Teatral, núcleo de formação de atores que Antunes Filho coordena no prédio do Sesc Anchieta) eu só fiz brasileiros e tragédia grega. O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que faço peças para que o público entenda. Não estou fazendo para ser aplaudido. Embora eu seja muito criticado pela classe teatral, eu tenho um sentido de confraternização com o público. Eu também faço tudo pelos atores, eu morro pelos atores. Como é que a classe teatral pode falar coisas sobre mim se eu sou a pessoa que mais se entrega para os atores? Eu me dou inteiro para que eles possam trabalhar bem. Não tem ninguém no Brasil que faça mais pelos atores do que eu. Sei que falam do exagero da minha técnica, mas minha técnica é para que os atores se desenvolvam e sejam independentes, sejam algo na vida, e não dependentes de diretor. O ator não é objeto, e a platéia não é objeto. Não há quem lute mais por isso do que eu. Por que me criticam? É por que eu não freqüento os barzinhos noturnos?

FORA DO CLUBE

As pessoas dizem que eu sou ditador. Elas são loucas. Eu abro tudo, eu dou total liberdade para que os atores criem. De repente, todo mundo deu de falar em criação coletiva, e eu faço isso desde a década de 80. Por que o CPT é acusado de ser uma merda? É dor de cotovelo? Eu procuro dar tudo que eu posso. Eu abro o CPT e todos dizem que nós somos algo à parte. Somos à parte coisa nenhuma, nós estamos integrados. Eles é que não querem me aceitar, parte da classe teatral não me aceita como sócio.

VENENO NOTURNO


Muitas pessoas têm medo de mim, tenho certeza disso. Elas têm medo do meu conhecimento de teatro. Eu não devia conhecer teatro como eu conheço, e as pessoas não conhecem tão bem quanto eu. Então cria-se uma competição. É como se eu tivesse o cachorro mais bonito do bairro, então as pessoas querem colocar veneno à noite para meu cão morrer.

A CARTILHA DOS GREGOS

Eu fui montar tragédia grega porque ela só lida com os mitos, eu fui para os gregos também porque sempre ouvi que brasileiro não sabia fazer tragédia. Então eu quis resolver este problema, quis conhecer a técnica de fazer tragédia grega. Eu ainda não consegui plenamente, mas consegui uma parte. Eu acho que nós devemos conhecer para procurar fazer depois. A tragédia grega me enriqueceu, não sei em que, mas sei que estou muito mais rico depois de fazer a tragédia grega, bem, mal ou mais ou menos. Mas sei que criei esboços para o meu futuro.

TRAGÉDIA DA ESTERILIDADE


Eu acho que sempre intuí razoavelmente bem o Nelson Rodrigues, mesmo durante os anos que me mantive afastado de sua obra. Mas eu sempre tive medo de Senhora dos Afogados, pois ela pode se tornar enfadonha logo de cara. Há muitas coisas difíceis de serem resolvidas nesta peça, ela traz assuntos delicados de serem tocados. Talvez com os gregos eu tenha ganhado um pouco de coragem para poder enfrentar esta obra. Esta peça sempre foi um caroço na minha vida. Ela tem algo a ver com futebol, que é a frustração. Seu time vai, vai e, lá na frente, perde. Algo que nunca foi dito sobre esta peça é que ela representa a tragédia da esterilidade. Você faz, faz e não consegue. Quando você acredita que atingiu alguma coisa, ela se desfaz na sua mão. Esta peça mostra que todo o nosso esforço pode ser inútil.

6 comentários:

Humberto Alitto disse...

Compreendo coisas que Antunes fala. E suas preciosas observações e conclusões. Atualmente, numa cidade com as megas proporções como a cidade de São Paulo, que encena mais de 500 peças teatrais por ano e mais de centenas de estréias de cinema, encontrar um teatro cujo grupo de atores, diretores, textos sejam de qualidade - e cuja competência faz da obra algo que devemos privilegiar e ver - tornou-se raro. Por isto, considero esta encenação do CPT uma peça belíssima, rica, competente. O texto, como foi dito, é difícil pelo aspecto comentado pelo Mestre. Nelson Rodrigues é o maior dramaturgo brasileiro, seus textos são riquíssimos e, talvez, esteja sendo re-descoberto mundo afora e valorizado pela riqueza, sabedoria e genialidade. "Senhora Dos Afogados" é um dos teus melhores textos e a encenação do CPT é divinamente competente e bela.

Anônimo disse...

Ouvi falar que a peça é um lixo. Uma perda completa de tempo. O que você achou da montagem, Sérgio? Um abraço do fã Cezar Lemos

Só no blog disse...

Oi, Cezar, tudo bem? Olha, eu não acho que a peça seja uma perda de tempo, não. Longe disso. Sei que ela está provocando controvérsias, mas acho que é mais um trabalho de um grande diretor interessado em propor sempre novos caminhos para a dramaturgia brasileira. Dá uma conferida e depois me conta. Abração.

Anônimo disse...

E por que nao seria?

Anna Cecília Junqueira disse...

roveri querido,
que bom que vc publicou esta entrevista no blog. Maravilhosa. Não há outra forma de trabalharmos com arte se não for através do diálogo e da troca. Que ela estimule muito mais polêmicas ainda, pois são essas que gerarão os nossos pensamentos! Bjo enorme!
anninha

Rômulo Augusto disse...

Eu o acompanho desde a década de 90 e digo que ele é um gênio do teatro brasileiro!